|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Dante Milano (Rio de Janeiro RJ 1899-1991)

Embora participando do modernismo, preferiu esperar que o vendaval vândalo amainasse e só veio a publicar quando o soneto já voltava a ser praticado pelos próprios modernistas e pela Geração de 45. Talvez por isso seus exemplos do gênero se meçam, rimem e acentuem com a exatidão dos parnasianos e a temática oscile do classicismo a um universo de ressaca simbolista à Augusto dos Anjos. Pena que Milano não os tenha deixado em maior quantidade. Eis meus preferidos:


[BILHETE DE SUICIDA]

Sentir aceso dentro da cabeça
Um pensamento quase que divino,
Como raio de luz frágil e fino
Que num cárcere escuro resplandeça.
Seguir-lhe o rastro branco em noite espessa,
Ter de uma inútil glória o vão destino,
Ser de si mesmo vítima e assassino,
Tentar o máximo, ainda que enlouqueça.
Provar palavras de sabor impuro
Que a boca morde e cospe porque é suja
A água que bebe e o pão que come é duro,
E deixar sobre a página da vida
Um verso — essa terrível garatuja
Que parece um bilhete de suicida.


[O AMOR DE AGORA]

O amor de agora é o mesmo amor de outrora
Em que concentro o espírito abstraído,
Um sentimento que não tem sentido,
Uma parte de mim que se evapora.
Amor que me alimenta e me devora,
E este pressentimento indefinido
Que me causa a impressão de andar perdido
Em busca de outrem pela vida afora.
Assim percorro uma existência incerta
Como quem sonha, noutro mundo acorda,
E em sua treva um ser de luz desperta.
E sinto, como o céu visto do inferno,
Na vida que contenho mas transborda,
Qualquer coisa de agora mas de eterno.


[COISAS VERDADEIRAS]

Na treva mais gelada, na brancura
Mais cega e morta, a vida ainda transluz.
Até de dentro de uma sepultura
Brota um soluço trêmulo de luz,
A luz que sua, a luz que desfigura
As pétalas pendidas nos pauis,
A espuma nos penhascos, fria e pura,
As chamas em seus ápices azuis.
Desalentos, angústias e canseiras
Tornam maior, mais tenebroso o olhar
Que lembra o olhar dos mortos: só olheiras.
São existências que se dão inteiras
E sofrem, como o vento, como o mar,
Como todas as coisas verdadeiras.


[CANSAÇOS]

Não sei de que cansaços me proveio
O peso que carrego sobre os ombros.
Sou como quem, depois de um bombardeio,
Se levanta no meio dos escombros
E sente a dor das pedras rebentadas,
Mais alta do que o grito das criaturas,
A dor do chão, dos muros, das calçadas,
De onde o pranto não brota, dores duras.
O único alívio é olhar o céu sem fundo,
O véu de sonho que recobre o mundo
E absorve, esbate, anula a realidade
Sob a expansão do azul intenso e forte.
Cor sem fim, olhar calmo além da morte,
Não desespero, sim perplexidade!


[HOMENAGEM A CAMÕES]

Através de imitado sentimento,
Ao ler-te, quanta vez tenho sentido
Como é muito maior o amor vivido
Em ato não, mas só em pensamento.
Então invento o que amo e amo o que invento
Em coisas sem razão tão comovido
Que o ar me falta e o respiro comprimido
Não sei se dá, não sei se tira o alento.
Sabor de amor é esse alto respirar,
Essa angústia em suspiros mal dispersos.
Em amor, que importância tem o ar,
O ar, cheio de fantásticas ações!
Assim, aquele que imitar teus versos,
Primeiro imite o teu amor, Camões.


[CONHECIMENTO DO AMOR]

Se o fruto já maduro da experiência
Me deu de amor algum conhecimento,
Só sei dizer que o seu entendimento
É saber que transcende toda ciência.
Com que palavras o direi? — "Paciência"
Ou "Impaciência", "Alento" ou "Desalento".
Quereis outra palavra? "Alheamento".
Outra? "Presença" ou sua igual "Ausência".
Esquecimento de si mesmo: olvido.
Quantas vezes morri sem ter morrido,
Sem sentir ao morrer nenhuma dor.
Nem a morte é culpada de tal morte,
Até a deseja o amante em seu transporte:
Só ela é eterna como o seu amor.


METAMORFOSES

Sonho maior que o sonho de quem dorme,
Eu vi, de olhos despertos, fabulosas
Metamorfoses, conexões monstruosas
Entre o olhar e a aparência multiforme.
Eu vi o que a luz expele e a sombra engole.
Vi como na água o corpo em si se enrola,
Quebra-se o torso, a perna se descola
E os braços se desmancham na onda mole.
Vi num espelho alguém cujo reflexo
O transformava noutra criatura.
E num leito de amor já vi perplexo
Seios com olhos! e mudar-se a dura
Nuca em anca, o ombro em joelho, a axila em sexo,
O dorso em coxa, o ventre em fronte pura.


DIVAGAÇÃO

Penso, para esquecer... Apenas vivo
Aquilo que me passa pela mente
E se vai desdobrando interiormente
Em forma de soneto pensativo.
Invento — não existe — algum motivo.
Como quem escrevendo à amada ausente
Imagina maior o amor que sente,
— Oh, tudo o que há no amor de descritivo —
Como o que ama de longe, assim pareço.
E ao me lembrar de tudo quanto esqueço,
(O vôo da ave é uma existência à-toa?)
Escrevo a minha vida que se esfuma
Na distância... — Ah, bem sei que habito numa
Bola que rola e piso um chão que voa...


O TEMPLO

O azul sem fim, a suave luz escura
Onde a vista se extingue, a curva porta
Do templo onde ressoa a mais absorta
Das músicas, a música da altura.
O azul que ao infinito nos transporta.
O céu angelical é uma pintura.
O azul que inspira uma existência pura,
Azul de luz que a sombra não recorta,
Que tem do sonho a diáfana textura,
Do incenso a transcendência espiritual.
Céu onde o olhar humano ainda procura
O antigo paraíso na lonjura.
Êxtase do silêncio vertical
No espaço, imaginária arquitetura.


CÉU E SONO

Antes que me desperte a madrugada
E eu sinta o vago espanto de quem nasce,
E a claridade me deslumbre a face,
A muda face a sonhos habituada,
Deixo-me estar, sombra desacordada,
Embora um torvo espírito me abrace
E por dentro de mim, noturno, passe
O sono, a obscura percepção do nada
Que tento decifrar com o olhar fito
Na negra página em que nada é escrito.
Divago, e os meus sentidos ultrapasso.
Se não houvesse o céu, não haveria
Sonho, nem sono sem a terra fria.
Tenho vontade de dormir no espaço...


UM DIA

Era a manhã uma hora de agonia,
Uma mortalha lívida e suada.
Entreabria-se o espaço, imenso nada,
Ante a face de um sol que não sorria.
O princípio da luz, a luz manchada,
Mostrava de que treva surge o dia.
Era a manhã esquálida e vazia,
Sem luzes, sem estrelas, apagada.
Era o dia sem sonhos. Só se via
O abismo do ar. Um cerro esbranquiçado.
Sobre o cerro, uma nuvem... Parecia
Que eu havia morrido e despertado
Na claridade pálida de um dia
Sem luzes, sem estrelas, apagado.


O ESPECTRO

O canto não imita a realidade
Como as palavras. Fica sobrevoando,
E da boca feroz se libertando,
Como o vôo de um pássaro, se evade.
Desaparece sem deixar saudade,
Perde-se na existência, como quando
A água de uma carranca borbotando
Se irisa em trêmula diafaneidade.
Não quero o sentimento que da treva
Do ser traz qualquer coisa de aflitivo,
Que quer ser voz e a voz profunda eleva,
Despertando um espírito latente
Que estilhaça os cristais num vingativo
Riso de espectro lívido e estridente.


SOL FORTE

De olhos abertos enfrentei o assombro.
Tudo o que existe vem de um vago outrora.
Se contemplo o universo, não me assombro.
E o tempo eterno é para mim esta hora.
Não posso erguer o mundo no meu ombro,
Deixo-o rolar. Ao contemplá-la agora
A terra me parece um rude escombro.
Eu me recordo de que em certa aurora
Quis ver o céu — só vi a imensidade...
Nisto medito, embora pouco importe.
Donde provém tanta perplexidade?
Porque, sobre o mistério, um sol tão forte
Que revela a existência e esconde a morte:
Tanto sonho e tão pouca realidade!


O NÁUFRAGO

Gestos inúteis que não deixam traços
Faço, e as ondas me afogam no seu seio.
Uma parece que me parte ao meio,
Outra parece que me arranca os braços.
Sinto o corpo quebrado de cansaços,
E num exausto, sufocado anseio,
Sem ter a que amparar-me, cambaleio,
Sem ter onde pisar, falseio os passos.
Minha tristeza mede-se por léguas
Que venço, não em terra, mas nadando
No caminho do mar que não dá tréguas,
Batendo-me de peito contra mágoas,
Sôfrego, trôpego, gesticulando,
Como um náufrago em vão se agarra às águas...


HORROR SIMPÁTICO [tradução de Baudelaire]

Deste céu lívido, sombrio,
Estranho como o teu destino,
Que idéia ao coração vazio
Te vem? Responde, libertino.

— Em sondar insaciavelmente
O que é obscuro e incerto, me obstino.
Não serei o Ovídio gemente
Exilado do Éden latino.

Céu lacerado, imenso areal,
O meu orgulho ao teu é igual.
Tuas nuvens vão em cortejo

Sepultar meu sonho no além.
No Inferno, de que és um lampejo,
A minha alma se sente bem.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes