|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Maria Rita Rodrigo Octavio Moutinho (Rio de Janeiro RJ 1951)

Sob declarada influência de Drummond, a organizadora da ENCICLOPÉDIA DE LITERATURA BRASILEIRA idealizada por Afrânio Coutinho incursiona no livre território do soneto à moda moderna, revelando-se sensível intérprete da emoção feminina.


SONETO DA PROPOSTA

"Não sob o mesmo teto, unidos sob
o mesmo guarda-chuva, eventualmente,
em passeios de marcha-adágio, doces,
amalgamados, mas não decorrentes,

protegidos dos ímpetos dos ciclones,
fluiremos no tempo, não no sempre.
— Amantes? — Não sabemos. — Que tal pôneis
impúberes, quais são os lestos flertes?"

Assim começa a história, assim prossegue
com décadas de goma e de ostracismo
e com respeito-músculo nos freges.

Perpassamos, sem culpas, o proscrito,
praticando — insensatos? — uma ascese,
porque quem nos designa é o deus Destino.


SONETO DO ENCONTRO DOS SENTIDOS

Almas se fundem. Vinho, sol das horas,
dá calor à palavra unilabiada.
Somos um em dueto, mote e glosa,
lendo nas bocas, sempre defrontadas,

sentidos gemelares de argolas.
Os olhos se defrontam, e nossas sagas
são narradas contando-nos o outrora,
enquanto o hoje é só a madrugada.

Noites a fio ponteiros absortos
nos fazem alheados da escrita:
somos os dois casados, mas com outros.

Nada importa. Estão mortas pré-histórias.
Não nos sentimos ícones de crias
sociais: valem as almas analógicas.


SONETO DOS DESENLACES

São cristais com clivagem os casamentos.
Sabemos sem restauro as alianças
que foram de ouro em dilatado tempo
e hoje são doridas dissonâncias.

Urge rarefazer ares sem esto,
e juntos, amparados, na balança
pesamos o bolor dos desalentos,
cogitamos no abrir nossas ventanas.

Nosso encontro fundava os desenlaces,
mas não nos prometíamos: apenas,
assemelhados com a alma azul das aves,

azulávamos nuvens dos combates
como éramos: sensíveis tais avencas
com raízes/hastes na eternidade.


SONETO DO SUPERAR E DO OPTAR

Passados muitos anos fundeada
nesse charco funesto, a solidão,
fui beijada por príncipe e elevada
do raso ao riso de uma afloração.

Vida nova e uma filha em mim gestada,
reedifiquei tão logo um coração
de uma cor rubra, mas aquarelada,
que convive com os tons pastéis da opção.

Pincelo de zarcão esta corrente
que me ata, mas não fere a liberdade,
grilhão/guarita da destemperança.

Para fechar comportas das torrentes
que te amedrontam a emotividade,
como eu, também te atrelas na aliança.


SONETO DA AUSÊNCIA SELETA

A saudade, hoje, é alvo da pungência
e certa flecha bêbada vagueia
na aura da chama anil da inconsciência,
porque a verdade de hoje escamoteia

realidade avessa, de carência,
que não quero entender porque a meia
estadia na vida, por sua ausência,
faz-me vítima, abate-me e fundeia.

O que queria ver é o que vês,
o que queria ser é o que és,
o que queria ter é o que tens.

Mas nunca para isso haverá vez:
somos aos nossos, não a nós, fiéis
e seleta é a sensata insensatez.


SONETO DO DESADORMECIMENTO

Durante anos, nos víamos rareados,
tensos e espessos como dois moitedos.
Os ápices dos duetos do passado
estavam confortáveis no degredo.

Por vínculos do ofício, amiudado
passamos a nos ver, porém represo
o vestígio de antigos namorados
nos incitou a novos desconcertos.

Em cartas — raros oásis — nos mirávamos,
transmitindo sinais, desassossegos,
e no mesmo cigarro que tragávamos

nos beijávamos úmidos segredos.
De repente, de novo éramos pássaros
e os faróis para vôos foram acesos.


SONETO DA CLAREAÇÃO DO BREU

Anos a fio, busco os ancestrais
desta angústia que sinto — precisão
de entender os contornos de entes duais
que se amam no ar e não no esteio-chão.

Interno-me no breu. Não saturnais,
temos, porém, orgíaca união
quando nos encontramos nos beirais
das palavras melífluas da emoção.

Preciso saber se fui real amada,
se se aplicam os vernáculos "amante"
e "amor" na nossa história. A alma apurada

exige este radar na madrugada.
Depois de anos, — serena concludente —
posso dizer que somos mago e fada!


SONETO DO GRANDE REENCONTRO

Sucessivos encontros, ou viagem
(pois nós nos transladamos pr'outra esfera),
divinaram confrontos sãos: coragem,
carinho, riso, lágrima e quimera

se cingiram a conversas na voragem,
de viver o vigor da primavera.
Brotamos jovens, lá na garimpagem,
da mina rica em amor que há na paquera.

Depois, em sincronia como o maduro
estágio em que estão corpos e almas,
sempre sem dar um rosto pro futuro.

Sulcamos novo traço em nossas palmas:
desígnio de clareiras no ar escuro.
Na praia, as ondas eram águas calmas.


SONETO DE MAIS UM ADEUS

Neste domingo, o céu gris e pesado
há de trazer tristeza a nós, os pássaros,
que em pétalas pousamos no intervalo
da rotina: verão ocluso e diáfano.

Com asas, mas sujeitos a gaiolas,
os pássaros — que outra coisa? — se amaram,
roçando almas, sãos, dias afora,
roçando peles, vãos, em sonhos-navas.

Raras planícies, muitas cordilheiras
são o real da nossa geografia:
as vias para o ardor são muito estreitas.

Parte! Aqui ficarei como nereida,
presidindo o mar, vendo acrobacias
da antítese do pássaro, a baleia.


SONETO DO PROVÉRBIO

Depois da temporada de enlevo,
retorno à condição de submarino.
Ficarei mergulhada, sem relevo,
embalando o silêncio de ser sino.

Sinos só soam em horas muito raras.
São, é certo, instrumentos solitários,
mas plenos, mais plenos que as claras
orquestras que iluminam os cenários.

No recato da sombra, vou vivendo,
sem saber quando o lume se desnubla,
diversa de Penélope, escrevendo.

Sua grande atriz brilha no mundo,
nos bastidores, sou a chã que dubla,
mas, no escuro, o cintilo é mais profundo.


SONETO DO EQUINÓCIO ADIADO

Hoje o silêncio corta o fio do equador
e incomunicáveis os pólos orbitam
desgarrados da esfera terrestre. O calor
e a ardência tropical, mudos, se gelificam.

No equinócio, dia e noite — assim como o amor —
se equivalem e por isso se presentificam
o equilíbrio, a medida-anel do cobertor
e do corpo gelado quando se unificam.

Estamos na distância e no incomunicável
por motivos que nem os astros nos explicam.
Medo? Será o medo que faz dissociável

a junção dos amantes que se estigmatizam?
A nódoa do pecado no imo é implacável.
E, súbito, equinócio e harmonia se adiam.


SONETO DO PODER MORRER

Mais uma vez os olhos se fitaram,
e as íris se abriram para a luz.
Nossas palavras, níveas de vis máscaras,
eram de novo o raio que seduz.

O que me dizes pluga o lume da alma,
o que te digo deixa os freios nus.
Ai como este romance me aclara
o enigma de Bentinho e Capitu!

Só quem viveu uma história misteriosa
com sabor de realismo que é fantástico,
há de saber que dentro dos emboras,

viaja-se no pêlo nu dos ácidos,
incorpora-se a dor de cravo e rosa
e escreve-se: "Vivi!", como epitáfio.


SONETO DOS VELHOS AMANTES

Trinta anos nos amando em intervalos,
em liturgias que temiam Eros,
como Sísifo arcamos com o fardo
de carregar destino acima um credo

que rolava até a base do bizarro.
Poucos trilham caminhos recoletos:
talvez só derradeiros azuis-pássaros,
pássaros cegos frente ao ardor do sexo,

de uma espécie que em fim só se corteja,
com medo da rotina e que uma chave
abra o casulo e mate a luz da seda.

— Oh meu amor, meu doce e terno amor,
comemora comigo a eternidade,
esta rara fortuna: Não se pôr!


SONETO DE INCITAÇÃO AOS ÍMPARES

Que enigmas há no amor, que interdito,
viaja entre os amantes como um fluido,
despeja as emoções em chão de limbo
e faz de um viável viço um delinqüido?

Quantas mulheres e homens se suicidam,
dispendendo seu tempo em paralelas,
sem decifrar o que confluencia
os símbolos que estão em Adão e Eva?

Vítimas do destino ou da emboscada
fixada pelo código dos medos,
quantos sigilam o riso da libido?

Mais tarde será nada e já é nada!
Beijem-se as bocas, entrelacem dedos!
Na cama, sintam o chão do Paraíso!

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes