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Luís Carlos Verzoni Nejar (Porto Alegre RS 1939)
Tendo trocado o Pampa gaúcho pela praia capixaba e a sela por uma
cadeira na Academia, não trocou, porém, seu espírito libertário pela
materialidade literária. Em termos de soneto também não se prende a
metro constante ou rima consoante. Das imagens mais à mão, é o pé e o
sapato o que mais me chama a atenção, claro. Meu preferido é este
sonetilho:
SONETO AOS SAPATOS QUIETOS Os pés dos sapatos juntos. Hei-de calçá-los, soltos e imensos, e talvez rotos, como dois velhos marujos. Nunca terão o desgosto que tive. Jamais o sujo desconsolo: estando postos, como eu, em chãos defuntos. Em vãos de flor, sem o riacho de um pé a outro, entre guizos. Não há demência ou fome. Sapatos nos pés não comem. Só dormem. Porém, descalço pela alma, é o paraíso. Outros exemplos da liberdade nejariana: SOLTOS DE IMENSIDÃO Os anos, Elza, já não gravam nada, porque gravamos nós o tempo todo. O teu cuidar, faz-me animar o fogo e cada dia em nós, jamais se apaga. Provados somos e o provar é um gomo desta romã partida pelas águas. Somos o fruto, somos a dentada e a madureza de ir no mesmo sonho. Os anos, Elza, não consertam mágoas, mas as mágoas não correm, se corremos. Não encanece a luz, onde são remos da limpa madrugada, os nossos corpos. Amamos. No existir estamos soltos, soltos de imensidão entre as palavras. ABANDONEI-ME AO VENTO Abandonei-me ao vento. Quem sou, pode explicar-te o vento que me invade. E já perdi o nome ao som da morte, ganhei um outro, livre, que me sabe quando me levantar e o corpo solte o seu despojo vão. Em toda a parte o vento há de soprar, onde não cabe a morte mais. A morte a morte explode. E os seus fragmentos caem na viração e o que ela foi na pedra se consome. Abandonei-me ao vento como um grão. Sem a opressão dos ganhos, utensílio, abandonei-me. E assim fiquei conciso, eterno. Mas o amor guardou meu nome. OS MEUS SENTIDOS Um dia vi Deus numa palavra e luminosa despontava, argila. E Deus vagueava tudo, aquietava as numinosas letras, quase em fila. E depois se banhava nesta ilha de bosques e bilênios. Clareava as formigas noctâmbulas da fala. E nele os meus sentidos se nutriam. Os meus sentidos eram coelhos ébrios na verdura de Deus entretecidos. A palavra empurrava o que era cego, a palavra luzia nos sentidos. E Deus nas vistas do menino, roda e roda nos olhos da palavra. CLARA ONDA Este amor em meadas e triciclos que nunca se divide, confluindo e torna noite este sapato findo e o firmamento, silencioso ciclo. Este amor em meadas, infinito. Em meadas de orvalho, desavindo, em meadas e quedas, rugas, trincos e rusgas, trinos, pios e sóis contritos. Este amor me retece e configura. Tem pressa de crescer, fogo calado. Apenas queima, quando não se apura. Parece interminável, quando tomba. E só se apura, quando despertado. Dissolvido me solve em clara onda. FIGURANTES Palavras me brincavam de criança, por mim escorregavam turbulentas e saltavam libertas da placenta como ancestrais na sua dor ou dança. Palavras eram vespas e besouros, anjos eram, depois trigais intensos. Palavras tomo: alfaces e repolhos com suas plumas vegetais, alentos. E as vogais modorrentas, as consoantes de cama e de farnel, as ilibadas donzelas, damas, servas, muito antes de alegres respirarem. Calejadas. Palavras alvas, doidas. Figurantes. A mesma cena mas alguém se salva. FORMOSO É O FOGO Formoso é o fogo e o rosto da amada junto a ele. No lume de seu corpo tudo em redor clareia. Depois o que era fogo, é espuma que se alteia. E o mundo se faz novo nas curvas da centelha. Já não existe esboço, mas desenhos, e teimam unos e justapostos. Já não existe corpo: são almas que se queimam no amor de um mesmo sopro. POEMAS E SAPATOS Nada tenho de meu, nem os sapatos que vão acompanhar este defunto. Nem tampouco montanhas e regatos que habitaram o verso, nem o indulto pode valer-me, o soldo, mero extrato de contas. Nada tenho, nem o intuito consome esta vontade ou desacato. Desapareça o nome, seu reduto de carne e bronze, a fome incorporada e mais desapareça onde fecundos são dias e são deuses nesta amada. Não foram nunca meus sonhos e fatos. Nada tenho. Poemas e sapatos irão reconhecer-me noutro mundo. PROA MERGULHADA Com as coisas mais simples, silenciosas, a casa com seus hábitos. A onda que se compraz a descansar na água. Pelo ar inefável, sobem rosas de um jarro: te amo. A mesa tão redonda que, na manhã, é proa mergulhada. O café, junto ao leite quente, quente; sua xícara suspensa na inocência. E o pão cortado, a fala destilada sob a luz. Era o tempo, sua ciência de ir sem ser levado. Segurava no bico do silêncio: amor, amada. Falamos sabiás, folhas e nadas. O sol por dentro, o galo da palavra. A BICICLETA A bicicleta de sóis que pedalava pela calçada de um futuro insano, era um menino que outro carregava na lua, bicicleta pelos ramos. E aquela que no tempo levitava e a outra, de Deus nos desenganos. Bicicleta que aos corpos conjugava e a desta alma, roída nos seus planos, na fera imperfeição. De seu pedal o mar e a preamar forma um só gomo de azuis, velocidades, tombos, mitos. E do seu aro estranho, nasce o sono. Da roldana, a agonia, seu ritual. Os pés na vida, os pés no próprio grito. IMPRONUNCIADO Calemo-nos. O amor se alimenta silêncio. As nossas mãos, os corpos, a alma e estes verdes, que, pelo monte, manam e do cristal o peso que sustamos, nascendo. E o que planos, plantamos. E o só calar é amor. E nós nos depuramos no ileso, no secreto, no mais: aquele espesso, onde não somos nós mas somos o silêncio.
Û Ý ´ ¥ Ü | * e-mail: elson fróes |