O SONETO OBJETO

Num senso mais lato, o fetiche extrapola o contexto sexual para abarcar qualquer faceta do mundo físico. Mas, tal como no âmbito da libido, por trás de cada objeto está o sinal de vida, a presença do ser amado, como indivíduo, ou simplesmente o vestígio do engenho humano, coletivamente falando. Aos sonetistas cabe fazer caber num único poema toda a associação de idéias suscitada por determinado objeto inanimado. Nesta página selecionei exemplos particularmente curiosos, da seringa de injeção ao copo de cristal, do lenço ao lustre, passando, obviamente, pelo sapato. [GM] A JANELA GRANDE [Afonso Lopes de Almeida] Essa janela a casa nos amplia... Por ela, aberta para o panorama, Vê-se nascer, vê-se morrer o dia, No esplendor dos crepúsculos em chama. Dos montes para o plaino, a casaria Ao pendor das vertentes, se derrama; Depois, o mar, que ao longe ulula e brama, Preso na jaula verde da baía. As destras, finas, hábeis mãos de artista, A minha Mãe, em frente a essa janela Urde a trama dos sonhos, imprevista... E eu, vendo-a, penso então, com os olhos nela: Se de dentro de casa é linda, a vista, De fora para dentro, ainda é mais bela! COPO DE CRISTAL [Agripino Grieco] Naquele quarto estreito e abandonado, Onde passo estirado numa rede, Horas de tédio, enquanto o sol despede As setas de ouro sobre o campo ao lado. Esquecido num canto, e, da parede Junto, entre flores, vasos e um bordado, Há um velho copo de cristal lavrado, Em que, às vezes, aplaco o ardor da sede. Contam-me que esse copo pertencera Outrora a uma esquisita e romanesca Jovem, que nele muita vez bebera. E inda hoje a extravagar — cabeça louca! — Se ao lábio o levo, sinto na água fresca O perfume e o sabor daquela boca... O MURO [Alberto de Oliveira] É um velho paredão, todo gretado, Roto e negro, a que o tempo uma oferenda Deixou num cacto em flor ensangüentado E num pouco de musgo em cada fenda. Serve há muito de encerro a uma vivenda; Protegê-la e guardá-la é seu cuidado; Talvez consigo esta missão compreenda, Sempre em seu posto, firme e alevantado. Horas mortas, a lua o véu desata, E em cheio brilha; a solidão se estrela Toda de um vago cintilar de prata; E o velho muro, alta a parede nua, Olha em redor, espreita a sombra, e vela, Entre os beijos e lágrimas da lua. VASO CHINÊS [Alberto de Oliveira] Estranho mimo, aquele vaso! Vi-o Casualmente, uma vez, de um perfumado Contador sobre o mármor luzidio, Entre um leque e o começo de um bordado. Fino artista chinês, enamorado, Nele pusera o coração doentio Em rubras flores de um sutil lavrado, Na tinta ardente, de um calor sombrio. Mas, talvez por contraste à desventura — Quem o sabe? — de um velho mandarim Também lá estava a singular figura: Que arte, em pintá-la! A gente acaso vendo-a Sentia um não sei quê com aquele chim De olhos cortados à feição de amêndoa. POBRES PORTAS [Alexei Bueno] Pobres portas negras das carpintarias Recendendo a cedro... portas das quitandas Pondo sacos sujos no ar entre as lavandas Que sobem das portas das perfumarias... Cheiros a sangrar tão cedo quanto os dias Das portas dos talhos, a alma das viandas, Perfumes de pães se erguendo em nuvens brandas Lácteas quais lençóis, portas das leiterias Com o odor da aurora, portas dos bazares A barbante e a pano, dedos dos manjares Nas portas de pasto, anônimas fragrâncias De outro mundo e mofo a vir dos antiquários, Portas do além, velas, cera, e sob os vários Umbrais, o ar do porto, a porta das distâncias! O SINO [Alphonsus de Guimaraens] Na torre esguia há séculos demoro, Alerta a todo alarma de agonia. Vedeta eril, com que clamor sonoro Sigo as almas na noite erma e sombria! Festivo como um pássaro canoro, Canto às vezes. Sou corvo e cotovia. Saudando a vida e a morte, louvo e choro O despontar e o anoitecer do dia... Sol a pino, quanta algazarra, quanta! Há nos sons que me trinam na garganta, Subindo ao céu para descer depois... Mas com que dor meus crebros dobres planjo, Quando se fina um poeta, ou morre um anjo, Que anjos são afinal ambos os dois! SINOS... [Álvaro Reis] Tal ao bater no pêndulo sonante, Do sino o bronze treme num gemido, À ressonância do metal ferido No silêncio da torre culminante, Num triste canto de saudade ungido, Ao palpitar do coração vibrante, Todo o meu ser desperta soluçante, Suspenso à torre do meu sonho erguido! E os sons se perdem... trêmulo lamento Na merencória paz do descampado, À cinza do crepúsculo nevoento... Perdem-se... e logo o coração, vibrado Pelas nervosas mãos do Sentimento, Sineiro d'alma plange, redobrado. NUM LEQUE [Auta de Souza] Na gaze loura deste leque adeja Não sei que aroma místico e encantado... Doce morena! Abençoado seja O doce aroma de teu leque amado Quando o entreabres, a sorrir, na Igreja, O templo inteiro fica embalsamado... Até minh'alma carinhosa o beija, Como a toalha de um altar sagrado. E enquanto o aroma inebriante voa, Unido aos hinos que, no coro, entoa A voz de um órgão soluçando dores, Só me parece que o choroso canto Sobe da gaze de teu leque santo, Cheio de luz e de perfume e flores! CÍRIO [Avelar e Silva] Firme, ereto, do esquife à beira, o círio guarda O morto; e o coração desfeito em dor, sem norte, Parece indiferente, ouvir-lhe os prantos, arda Embora a luz que o extingue, ora branda, ora forte. Saibo desse torpor que o palácio ou a mansarda Adormece, onde quer que o desalento aporte, Ele, o círio, parece a expressão muda e tarda De um consolo que vem do horror da própria morte. Fitai-lhe a esguia sombra: — emergindo do luto, Ela se extingue numa espiral tênue e baça De fumo, que se esvai, como um sonho incorruto. E a su'alma a desmanchar-se à luz que o derretera, É uma vaga esperança a subir na fumaça, E uma queixa a descer nas lágrimas de cera! A CRUZ [Bastos Tigre] Era o instrumento vil de suplício infamante, Condenava-se à cruz o assassino, o ladrão. Mas ia ter Jesus o atro martírio, diante Do crime de pregar do Templo a destruição. Ele próprio a transporta ao Calvário distante E à medida que vai, pelos calhaus do chão Arrastando-a, a sangrar, — o madeiro aviltante Faz-se leve, transluz, num eterno clarão. E quando nele, enfim, abre os braços Jesus, O corpo do Homem-Deus toma a forma da cruz Desde a cabeça aos pés, e duma à outra mão. Desse instante e, a seguir, pelo tempo infinito O instrumento de morte, oprobrioso e maldito, Com Jesus se confunde; e é Vida e é Redenção. SONETO AOS SAPATOS QUIETOS [Carlos Nejar] Os pés dos sapatos juntos. Hei-de calçá-los, soltos e imensos, e talvez rotos, como dois velhos marujos. Nunca terão o desgosto que tive. Jamais o sujo desconsolo: estando postos, como eu, em chãos defuntos. Em vãos de flor, sem o riacho de um pé a outro, entre guizos. Não há demência ou fome. Sapatos nos pés não comem. Só dormem. Porém, descalço pela alma, é o paraíso. O SEU BONÉ [Cruz e Souza] É um boné ideal, de feltros e de plumas, que ela usa agora, assim como um turbante turco, aveludado, doce como algumas nuvens matinais que rolam no levante. Lembro quando ao vê-lo a rubra marselhesa, lembro sensações e cousas de prodígio e penso que ele tem a máscula grandeza desse sedutor, vital barrete frígio!... Às vezes meu olhar medindo-lhe o contorno e a flácida plumagem que serve-lhe d'adorno, — satânico, voraz, esplêndido de fé! Exclama num idílio cândido e singelo, por entre as convulsões artísticas do Belo, — Oh! tem coração e alma, esse boné!... AOS LUSTRES [Eduardo Guimarães] Suspensos nos salões dos tetos decorados, Que de arabescos orna o gesso alvinitente, Ó lustres de cristal, enganadoramente Ao mesmo tempo sois sonoros e calados. Pesados, emprestais, no entanto, à pompa ambiente, Onde há ricos painéis entre florões doirados, A mais aérea graça, e os olhos deslumbrados Sentem que os cega o vosso encanto reluzente. Que o silêncio em redor guarde a fragilidade Translúcida que sois, e ouçam-se quase a medo Os rumores quaisquer que em torno a vós se formem! Toquem-vos docemente a sombra e a claridade... Nem se turbe, jamais, ó lustres, o segredo Das vibrações que em vós, musicalmente dormem! TRAPO [Emílio de Meneses] Esta que outrora o linho da cambraia Na pompa da ostentosa lençaria, — Folhos e rendas que à secreta alfaia Ornavam com capricho e bizarria — Era camisa — e que hoje a nostalgia Sofre do tempo em que entre a pele e a saia O perfumado corpo lhe cingia, — Era ao possuí-la, a última atalaia. Trapo que encerras o ebriante aroma Do seu colo moreno, poma a poma, Ora em tiras te vejo desprezado. E mais te quero, e mais te achego ao peito Trapo divino! símbolo perfeito De um coração por Ela espedaçado. SONETO 572 MATERIALIZADO [Glauco Mattoso] Na rua abandonado, sujo e roto, um pé de tênis brilha ao sol que nasce. Tamanho tem que um grande pé lhe entrasse, mas pode até ter sido dum garoto. Está tão deformado que, canhoto, é como se ao direito se igualasse. Talvez tenha pisado alguma face, talvez seu par já feda num esgoto. Por dentro, sem palmilha, a sola grossa do dono deixou marca, que inda cheira. Por fora, inda o cadarço um laço esboça. Por baixo, os traços gastos e a poeira de muitas aventuras, onde roça dum bêbado o nariz, por brincadeira. TEU LENÇO (a Alcindo Guanabara) [Guimarães Passos] Esse teu lenço que eu possuo e aperto De encontro ao peito quando durmo, creio Que hei de mandar-to um dia, pois roubei-o E foi meu crime, em breve, descoberto. Luto, contudo, a procurar quem certo Possa nisto servir-me de correio; Tu nem calculas qual o meu receio, Se, em caminho, te fosse o lenço aberto... Porém, ó minha vívida quimera! Fita as bandas que habito, fita e espera, Que, enfim, verás em trêmulos adejos, Em cada ponta um beija-flor pegando, Ir o teu lenço pelo espaço voando, Pando, enfunado, côncavo de beijos! TEU SAPATO [paródia anônima do soneto acima] Este sapato que eu comprei e aperta Os calos meus quando na rua sigo, Creio que um dia hei de brigar contigo, Oh! sapateiro meu, de lábia esperta. Ando a esperar, contudo, a hora certa Para a desforra deste meu castigo. Tu não calculas, com tristeza o digo, Que medo tenho da prisão aberta. Porém, oh sacripanta!, oh salafrário!, Fita e conta teu lucro extraordinário Que tiraste de idiotas como eu, Que enfim verás de volta o teu sapato, Que me disseste que era bom de fato, Mas só foi bom no lucro que te deu! FLOR DE CHAMA [Hermes Fontes] Hastil branco a florir em luz e flama, esguio lírio seco, que o vento aniquilar promete — há uma vela a esvair-se... E isso, deve-o ao pavio, que é a sua alma, que é o eixo, a arder, do espermacete. Mal o pavio esplende, ei-la que se derrete: chama — parece estar tiritando de frio... É uma criatura humana, alanceada das sete dores da Virgem-mãe, lagrimejando, a fio... É um ser anímico esse objeto inanimado: — arde o pavio, e, entanto, o que se esvai é a cera... — dói a alma, e o corpo é que se faz mortificado... É uma agonia humana... Um suor febril escorre... E, tal o humano ser desmaiara e morrera, a vela luz... reluz... vai desmaiando... morre. BEATRIZ [Humberto de Campos] Bandeirante a sonhar com pedrarias Com tesouros e minas fabulosas, Do Amor entrei, por ínvias e sombrias Estradas, as florestas tenebrosas. Tive sonhos de louco, à Fernão Dias... Vi tesouros sem conta: entre as umbrosas Selvas, o ouro encontrei, e o ônix, e as frias Turquesas, e esmeraldas luminosas... E por eles passei. Vivi sete anos Na floresta sem fim. Senti ressábios De amarguras, de dor, de desenganos. Mas voltei, afinal, vencendo escolhos, Com o rubi palpitante dos seus lábios E os dois grandes topázios dos seus olhos! VERSOS A UMA TAÇA [J. G. de Araújo Jorge] Nasceu para servir ao estranho ritual dos festins, — no cristal puríssimo, sem jaça reflete da loucura o cortejo triunfal que alegre, ao seu redor, todas as noites, passa... Quanta dor já entornou! Quanta alma turva e baça já a ergueu na ilusão de esquecer o seu mal... Leva o vinho que apaga a tristeza e a desgraça e põe na boca um riso inconsciente e boçal!... Destino estranho o seu! No seu cristal sem bruma vive num mundo à parte, e insensível parece ao vinho que transborda e ao champanha que espuma... E boêmia há de acabar, num último tinir como as almas que embriaga, e aniquila, e enlouquece, do seu próprio destino... espedaçada, a rir! PIANO DE BAIRRO [J. G. de Araújo Jorge] Na rua sossegada onde eu moro, — à tardinha, quando em sombras o céu lentamente escurece, — um piano solitário, em surdina, — parece acompanhar ao longe a tarde que definha... Nessa hora, em que de manso a noite se avizinha, seus acordes pelo ar têm murmúrios de prece... — Ah! quem não traz como eu também, na alma sozinha, um piano evocativo que nos entristece? Há sempre um velho piano de bairro, esquecido na memória da gente, — e que nas tardes mansas sonoriza visões de outrora ao nosso ouvido. Seus monótonos sons, seus estudos sem cor, repetem no teclado branco das lembranças o inconcluso prelúdio de um longínquo amor! O RELÓGIO [Jorge de Lima] Relógio, meu amigo, és a Vida em Segundos... Consulto-te: um segundo! E quem sabe se agora, Como eu próprio, a pensar, pensará doutros mundos Alma que filosofa e investiga e labora? Há de a morte ceifar somas de moribundos. O relógio trabalha... E um sorri e outro chora, Nas cavernas, no mar ou nos antros profundos Ou no abismo que assombra e que assusta e apavora... Relógio, meu amigo, és o meu companheiro, Que aos vencidos, aos réus, aos párias e ao morfético Tem posturas de algoz e gestos de coveiro... Relógio, meu amigo, as blasfêmias e a prece, Tudo encerra o segundo, insólito — sintético: A volúpia do beijo e a mágoa que enlouquece! CARTAS VELHAS [Júlio César da Silva] Abro os maços de cartas, cinta a cinta, Examino-as, folheio-as, uma a uma; No papel, que um bolor vago ressuma, Mal forma as letras a apagada tinta. Todas elas que valem hoje em suma? Qual delas o passado evoca e pinta, Se a luz, que as aquecia se acha extinta E a alma, que as perfumava, as não perfuma? Perdido todo o seu aroma antigo, O calor que as ditou e o forte encanto, Só por piedade as tenho hoje comigo; Fecho-as de novo e ponho-as no seu canto! Cada maço de cartas é um jazigo E a gaveta em que as guardo um campo-santo. O RELÓGIO [Júlio Maciel] Invadindo a mudez de uma noite sombria O relógio roufenho e soturnal escuto; E não sei que de mau sua voz pressagia, Fazendo-me cismar na tristeza e no luto. Demolidor voraz — impassível, porfia. O pêndulo oscilante é o camartelo bruto: — Todo o Passado já tornou em ruinaria E o Presente faz ruir, minuto por minuto. Com sinistro ponteiro em lâmina sinistra, Marca as horas de dor, moroso, lento e lento, E instantes de prazer precípites registra. E nessa mesma voz, que ouço da noite em meio, Ele, que proclamou meu primeiro momento, Há de um dia anunciar meu derradeiro anseio. O CANHÃO (a Luís Loureiro) [Luís Carlos] Guardando uma expressão de austera indiferença Por tudo que o circunda, atento no Infinito, Queda-se a meditar no destino maldito Que prende a sua glória a uma tragédia imensa. Não há poder algum que tão de vez convença, Traz sempre a boca aberta a sugerir um grito, Deixando, em toda a parte, um pânico inaudito, — Sinistro núncio, que é, da máxima sentença. Mal resiste no peso ao bélico transporte, Na inversão do seu fim, como que, por encanto, Lembrando um condenado a rastros para a morte. E parece, afinal, compenetrar-se tanto Do seu delito atroz que, em repulsão mais forte Quando atira, recua, enchendo-se de espanto! PARA ÉRICO VERÍSSIMO [Mário Quintana] O dia abriu seu pára-sol bordado De nuvens e de verde ramaria. E estava até um fumo, que subia, Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado. Depois surgiu, no céu azul arqueado, A Lua — a Lua! — em pleno meio-dia. Na rua, um menininho que seguia Parou, ficou a olhá-la admirado... Pus meus sapatos na janela alta, Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta Pra suportarem a existência rude! E eles sonham, imóveis, deslumbrados, Que são dois velhos barcos, encalhados Sobre a margem tranqüila de um açude... TAÇA ASTECA [Martins Fontes] Sobre que não terei eu feito versos? E não me lembro, ainda por mero acaso, De ter descrito, ou ter cantado o Vaso, O copo arcaico, de florões diversos. Um possuo, de argila, curvo e raso, Pintalgado nos bordos e reversos De arabescos vermelhos e transversos, Tal qual as taças de Corinto ou Faso. Velhos índios moldaram este tarro, Que revela o retoque dado ao barro Pelos mestres oleiros de Manágua. Veio da antiga América esta bilha; E é nela, útil e humílima vasilha, "Que mato o ardume de uma sede d'água". SINO [Max de Vasconcelos] Sino, boca do Além falando à Vida... Voz do passado orando no presente... Ai compassivo da alma dolorida... Murmúrio em bronze de quem já foi crente... O humano coração que hoje duvida, Ama-te o badalar ao sol nascente; Nas catedrais, na cúpula da ermida, Dobrando pela luz, à hora poente!... Amo-te em toda a parte onde o teu vulto A meus olhos de cético aparece... Porque me lembras que já tive um culto; E porque um dia, de teu bojo forte, Se há de erguer para o azul a única prece Que a Vida rezará por minha morte! HIPODERMIA [Paulo Silva Araújo] Branca serpente na verdade é esta, Cuja língua de ponta de platina Já tem picado muita dama honesta E muita pele clara de menina... Se ela é rija e magoa, também presta Muitos serviços bons à medicina; E quantos sonhos ideais, modesta, Ela conduz, quando contém morfina... Minha Lüer amada, eu te bendigo E, neste instante ao te trazer comigo, Com que tamanho ardor sinto que o faço... Ai! quem me dera fosses uma boca Com que pudesse à minha fome louca Morder a carne de tão lindo braço... TAÇA [Pedro Kilkerry] Aquela taça de metal que, um dia, À Laura, um dia assim, lhe oferecera, Entre relevos delicados de hera, "Saudade" em letras de rubis trazia. E era um riso de amor e de poesia Em cada riso ou flor da primavera... E Laura, a um canto, cruel, por que a esquecera, Laura que soluçou, porque eu partia? Anos derivam. De remorsos presa Não é que vai, acaso, à soledade Da abandonada... Vai por fantasia. Mas, como um choro, vê, vê com surpresa, Desmancharem-se as letras da "Saudade" Que aquela taça de metal trazia.
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Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes