|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Carlos Souto Pena Filho (Recife PE 1929-1960)

Se Cecília Meireles me levou a defini-la como "rainha da reticência" e Raul de Leoni como "rei das cousas", a Pena Filho caberia o título de "rei do azul", cor com que pinta seus versos e tenta retratar coisas e pessoas entre o banal e o surreal, entre o lírico e o político. Equidistante do modernismo e da geração de 45, seus sonetos oscilam do cânone à pesquisa com surpreendente independência para a idade em que estreou. Não morresse acidentalmente, talvez merecesse maior destaque entre drummondianos e bandeiristas, mas sua obra é suficiente para garantir lugar numa galeria de exímios praticantes do soneto.


A SOLIDÃO E SUA PORTA

Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha),

quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.


SONETO PARA GRETA GARBO

Entre silêncio e sombra se devora
e em longínquas lembranças se consome;
tão longe que esqueceu o próprio nome
e talvez já nem saiba por que chora.

Perdido o encanto de esperar agora
o antigo deslumbrar que já não cabe,
transforma-se em silêncio, porque sabe
que o silêncio se oculta e se evapora.

Esquiva e só como convém a um dia
despregado do tempo, esconde a face
que já foi sol e agora é cinza fria.

Mas vê nascer da sombra outra alegria:
como se o olhar magoado contemplasse
o mundo em que viveu, mas que não via.


RETRATO CAMPESTRE

Havia na planície um passarinho,
um pé de milho e uma mulher sentada.
E era só. Nenhum deles tinha nada
com o homem deitado no caminho.

O vento veio e pôs em desalinho
a cabeleira da mulher sentada
e despertou o homem lá na estrada
e fez canto nascer no passarinho.

O homem levantou-se e veio, olhando
a cabeleira da mulher voando
na calma da planície desolada.

Mas logo regressou ao seu caminho
deixando atrás um quieto passarinho,
um pé de milho e uma mulher sentada.


RETRATO DO PINTOR REYNALDO FONSECA

Mas tanta cor não cabe neste espaço
e arrebenta os limites que a circundam.
As meninas de luto que aqui dormem
dentro do próprio sono se equilibram.

Em tuas mãos, manchadas de ternura,
pousaram brancos pássaros, por isso
falas atrás da sombra, e à luz mais forte
ruminas teu silêncio inquebrantável.

Se o que possui o céu de puro e simples
algum dia cair sobre os teus ombros,
imperturbável, pintarás um anjo.

E, nunca mais palavra além da sombra,
que o que restar de ti será somente
o profundo silêncio inquebrantável.


TESTAMENTO DO HOMEM SENSATO

Quando eu morrer, não faças disparates
nem fiques a pensar: "Ele era assim..."
Mas senta-te num banco de jardim,
calmamente comendo chocolates.

Aceita o que te deixo, o quase nada
destas palavras que te digo aqui:
Foi mais que longa a vida que eu vivi,
para ser em lembranças prolongada.

Porém, se um dia, só, na tarde em queda,
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em vôo se arremeda,

deixa-a pousar em teu silêncio, leve
como se apenas fosse imaginada,
como uma luz, mais que distante, breve.


SONETINHO INFANTIL

Era clara a menina, longe ou perto,
mesmo entre os seus alvíssimos lençóis.
Ria, como se visse caracóis
cantando uma opereta no deserto.

Logo piscou um olho para o coelho
que  dizia  não era bom da bola
e mágicos tirava da cartola
pois vivia ao contrário, atrás do espelho.

Depois ficou olhando uns elefantes
que mantinham conversa acalorada
sobre a lista das dez mais elegantes.

Mas, depressa fechou seus olhos pretos
e adormeceu, para não ser trancada
com a chave de ouro de fechar sonetos.


SONETO

Por seres bela e azul é que te oferto
a serena lembrança desta tarde:
tudo em torno de mim vestiu um ar de
quem não te tem mas te deseja perto.

O verão que fugiu para o deserto
onde, indolente e sem motivos, arde,
deixou-nos este leve e vago e incerto
silêncio que se espalha pela tarde.

Por seres bela e azul e improcedente
é que sabes que a flor, o céu e os dias
são estados de espírito, somente,

como o leste e o oeste, o norte e o sul.
Como a razão por que não renuncias
ao privilégio de ser bela e azul.


SONETO OCO

Neste papel levanta-se um soneto,
de lembranças antigas sustentado,
pássaro de museu, bicho empalhado,
madeira apodrecida de coreto.

De tempo e tempo e tempo alimentado,
sendo em fraco metal, agora é preto.
E talvez seja apenas um soneto
de si mesmo nascido e organizado.

Mas ninguém o verá? Ninguém. Nem eu,
pois não sei como foi arquitetado
e nem me lembro quando apareceu.

Lembranças são lembranças, mesmo pobres,
olha pois este jogo de exilado
e vê se entre as lembranças te descobres.


SONETO DA SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO

Morto. Como também já morre o dia.
Mas continua a ser noutros lugares?
Ou morto diariamente nos altares,
por ser diversa a morte que morria?

O corpo morto: azul melancolia
do mesmo azul perdido pelos ares,
vivo azul sobre os campos, sobre os mares,
sobre a clara manhã e a hora tardia.

Um corpo morto. Um corpo morto de homem,
igual a esses cadáveres da guerra
que as batalhas atraem e consomem?

Ou um que junta o mundo à sua sorte,
contempla a sombra em torno e desce à terra
e morre em solidão e vence a morte?


A CHARLES BAUDELAIRE

Carlos também
embora sem
flores nem aves,
vinho nem naves,

eu te remeto
este soneto
para saberes,
se acaso o leres,

que existe alguém
no mundo, cem
anos após

que não vaiou
e nem magoou
teu albatroz


D. SEBASTIÃO, A CAMINHO DA ÁFRICA

Olhai, Senhor, para estas naus e vede
a quanto obrigam reino e cristandade;
atrás de nós já se ergue esta parede
de vento e mar e tempo e soledade

e à frente nos esperam sol e sede
e mais que sede e sol, crua saudade
que pelas noites sem limites há de
freqüentar nosso abismo impuro. Sede

pois tão piedoso e justo quanto deve
ser um Deus para um servo e um soldado
que a proeza tamanha enfim se atreve
só porque julga ser do vosso agrado.

Mas não deixeis que volte sem vitória:
embora perca a vida, encontre a glória.


ELEGIA PARA A ADOLESCÊNCIA

E enfim descansaremos sob a verde
resistência dos campos escondidos.
Nem pensaremos mais no que há de ser de
nós que então seremos definidos.

No mar que nos chamou, no mar ausente,
simples e prolongado que supomos
seremos atirados de repente,
puros e inúteis como sempre fomos.

Veremos que as vogais e as consoantes
não são mais que ornamentos coloridos,
frutos de nossas bocas inconstantes.

E em silêncio seremos transformados,
quando formos, serenos e perdidos
além das coisas vãs precipitados.


SONETO

O quanto perco em luz conquisto em sombra.
E é de recusa ao sol que me sustento.
Às estrelas, prefiro o que se esconde
nos crepúsculos graves dos conventos.

Humildemente envolvo-me na sombra
que veste, à noite, os cegos monumentos
isolados nas praças esquecidas
e vazios de luz e movimento.

Não sei se entendes: em teus olhos nasce
a noite côncava e profunda, enquanto
clara manhã revive em tua face.

Daí amar teus olhos mais que o corpo
com esse escuro e amargo desespero
com que haverei de amar depois de morto.


SONETO

Por trás do musgo silencioso e espesso,
que cresce no teu ventre desolado,
nasce um mundo obscuro e inusitado
que eu não sei se mereço ou desmereço.

Sei apenas que às vezes, quando teço
canções noturnas do prazer frustrado,
sou, nem sei por que sombras, exilado
para além do meu fim e meu começo.

Esse teu mundo, concha que é morada
de anêmonas e polvos, é mais raro
que a luz de Deus na noite abandonada.

E é por isso talvez que não se entrega
e me deixa a esperar teu corpo claro
de fêmea esquiva que ao prazer se nega.


SONETO AO RECANTO

Num recanto sem data e sem ternura,
e mais, sem pretensão a ser recanto,
descobri em teu corpo o amargo canto
de quem despenca para a desventura.

Há nos recantos sempre uma segura
desvantagem de unir o desencanto
e é por isto talvez que não me espanto
de ali perder teu corpo e a ventura

de viver entre atento e descuidado,
mirando o pardo tédio que descansa
nos subúrbios do amor desmantelado.

E só para ganhar mais espessura
eu resolvi fazer esta lembrança
de um recanto sem data e sem ternura.


ELEGIA AMARGA

Tinha a noite escondida na espessura
de seus cabelos rotos pela aragem
quando a manhã cresceu para a aventura
em seus olhos magoados de paisagem.

E ouviu nas rotas claras da cintura
as confabulações do amor fortuito,
mas não fugiu, embora houvesse muito
desespero em redor da fonte escura.

Antes, em meio ao lúcido abandono
silenciosa ficou, a noite inteira,
louca de tédio e grávida de sono.

Depois, ardendo em chamas invisíveis
deu à fúria do mar a cabeleira
que inventava canções quase impossíveis.


A ROSA, NO ÍNTIMO

Entro em teu breve sono, onde os minutos
são três pássaros líquidos e enormes,
e descubro os gelados aquedutos
guardiães do silêncio, enquanto dormes.

Pouso a cabeça nos teus lábios sujos
de mundo e tempo, e vejo que possuis
em teus seios, dois bêbedos marujos
desesperados, sós, raros, azuis.

Enfim, além (no além de tuas pernas
onde Deus repousou a sua face,
cansado de inventar coisas eternas)

desvendo, ao desespero de quem passe,
a rosa que és, a mística e sombria
a noturna e serena rosa fria.


SONETO

E o tempo desmanchou-se no vestido
que demarca teu corpo imaginário
nem ao menos chegou ao rubro e vário
acidente dos lábios e ao perdido

caminho de teu ventre legendário
que guarda, há muito, o meu olhar partido
e o mar que se inventou sob o vestido
que demarca teu corpo imaginário.

Nesse tempo, onde inquieta e rara voas,
sobre os nossos momentos perturbados,
mais que o azul de setembro nas canoas

são tuas mãos longínquas, litorâneas.
O azul que viu teus seios transformados
em andorinhas cegas e instantâneas.


SONETO DO DESMANTELO AZUL

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.


SONETO SUPERFICIAL E ESGUIO COMO MADAME

Madame, em vosso claro olhar, e leve,
navegam coloridas geografias,
azul de litoral, paredes frias,
vontade de fazer o que não deve

ser feito, por ser coisa de outros dias
vivida num instante muito breve,
quando extraímos sal, areia e neve
de vossas mãos, singularmente esguias.

Que eternos somos, dúvida não tenho,
nem posso abandonar minha planície
sem saber se em vós há o que em vós venho

buscar. E embora em nós tudo nos chame,
jamais navegarei a superfície
de vosso claro e leve olhar, Madame.


SONETO INTENCIONAL

Neste resto de praia estão as marcas
que o teu corpo deixou ficar na areia
no longo tempo em que estiveste alheia
à luz do céu e à solidão das barcas.

Tão leve estavas que nem mesmo o susto
que aos teus cabelos quis fazer o vento
notaste, e preferiste o alumbramento
de vê-los a cair sobre o teu busto.

Que pode haver de mais lene e instantâneo?
Que mais pode existir de encanto leve
neste nítido espaço litorâneo?

Se alguém deixou neste recanto as marcas
do corpo que ficou, sereno e breve,
alheio ao sol e à solidão das barcas.


RETRATO NA PRAIA

Ei-la ao sol, como um claro desafio
ao tenuíssimo azul predominante.
Debruçada na areia e assim, diante
do mar, é um animal rude e bravio.

Bem perto, há um comentário sobre estio,
mormaço e sonolência. Lá, distante,
muitos vagos indícios de um navio
que ela talvez contemple nesse instante.

Mas o importante mesmo é o sol, que esse desliza
por seu corpo salgado, enxuto e belo,
como se nuvem fosse, ou quase brisa.

E desce por seus braços, e rodeia
seu brevíssimo e branco tornozelo,
onde se aquece e cresce, e se incendeia.


SONETO RASPADO DAS TELAS DE ALOÍSIO MAGALHÃES

Aquém do sonho e além dos movimentos
uma nesga de azul perdeu as asas.
Quem a invadir, invade os próprios ventos
que varrem mares e entram pelas casas.

Às vezes, penso: não tem dor nem mágoas
quem se ofertou a tão alegre ofício,
mas a mulher que mora atrás do início,
diz: são meus estes céus, minhas as águas

que dormem neste chão, minhas as cores
que apascentam teus olhos e que vêm
de mim e vão das nuvens ou das flores.

Mas, só pode ir além dos movimentos,
onde, serena, habita há muito, quem
pela nesga de azul entrar nos ventos.


SONETO

Despiu-se dos imensos horizontes
que vestiam seu gesto inacabado
e, envolvendo seus pés em céu molhado
ofereceu-se à fábula das fontes.

Mais que inútil ficou, ao ver que dentre
os olhos e a cintura transbordavam
rosas azuis que as barcas carregavam
para o delta sombrio de seu ventre.

Tão sinuosa estava que esquecidas
ficaram suas mãos, redescobrindo
promontórios e terras proibidas.

Talvez, de novo, rasgue os horizontes
e, vestida de aurora e tempo findo,
se reoferte à fábula das fontes.


SONETO INSTANTÂNEO

Instante nos teus olhos  a vertigem
me arremessa a um losango decomposto,
e me perde nos campos de teu rosto
onde, serena, estanca a minha origem.

O instante de teus olhos dás à fonte
e da fonte recolhes gestos frios,
por isso tens nas mãos esse horizonte
limitado por búzios e navios.

Instante que se parte e se oferece
ao meu silêncio unânime e ao canto
nascido de si mesmo, quando lento

e grave, o sono mais tardio tece
dentro do olhar esse agressivo espanto
de quem se espanta e encanta a um só momento.


UM VELHO SONETO

No pobre e roto azul da tarde antiga
andavas sobre a relva, à beira dágua.
Eras quase uma inglesa, a tua mágoa
era serena e só e doce e amiga.

Não sabias do mundo ou do perigo,
se apascentavas desencantos, era
porque, afinal, é desencanto a espera
entre o verde parado e o azul antigo.

Depois, a noite, a branca toalha, a mesa,
os óculos do pai, a voz do amigo,
a conversa monótona e burguesa.

Enfim, a lua vã, despedaçada,
que entrava pelas frinchas do postigo
no pacífico ardor da madrugada.


PARA FAZER UM SONETO

Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse,
antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza,
ponha tudo de lado e então comece.


SONETO DAS DEFINIÇÕES

Não falarei das coisas, mas de inventos
e de pacientes buscas no esquisito.
Em breve, chegarei à cor do grito
à música das cores e dos ventos.

Multiplicar-me-ei em mil cinzentos
(desta maneira, lúcido, me evito)
e a estes pés cansados de granito
saberei transformar em cataventos.

Daí, o meu desprezo a jogos claros
e nunca comparados ou medidos
como estes meus, ilógicos, mas raros.

Daí também, a enorme divergência
entre os dias e os jogos, divertidos
e feitos de beleza e improcedência.


SONETO DAS METAMORFOSES

Carolina, a cansada, fez-se espera
e nunca se entregou ao mar antigo.
Não por temor ao mar, mas ao perigo
de com ela incendiar-se a primavera.

Carolina, a cansada que então era,
despiu, humildemente, as vestes pretas
e incendiou navios e corvetas
já cansada, por fim, de tanta espera.

E cinza fez-se. E teve o corpo implume
escandalosamente penetrado
de imprevistos azuis e claro lume.

Foi quando se lembrou de ser esquife:
abandonou seu corpo incendiado
e adormeceu nas brumas do Recife.


SONETO À FOTOGRAFIA

Libertar-se ligeiro da moldura
é o desejo da face, onde, o desgosto
emigrado do poço de água impura,
vai se aninhar na hora do sol posto.

Do lugar da prisão vem a tortura,
pois vê, do seu retângulo, teu rosto
e acorrentado na parede escura,
não pode engravidar-te para agosto.

Guarda ainda no olhar instante e viagem
o instante em que foi presa pela imagem
e o roteiro que fez em mundo alheio.

E eterna inveja do seu sósia ausente
que, embora prisioneiro da corrente,
habita num subúrbio do teu seio.


SONETO PRINCIPALMENTE DO CARNAVAL

Do fogo à cinza fui por três escadas
e chegando aos limites dos desertos,
entre furna e leões marquei incertos
encontros com mulheres mascaradas.

De pirata da Espanha disfarçado
adormeci panteras e medusas.
Mas, quando me lembrei das andaluzas,
pulei do azul, sentei-me no encarnado.

Respirei as ciganas inconstantes
e as profundas ausências do passado,
porém, retido fui pelos infantes

que me trouxeram vidros do estrangeiro
e me deixaram só, dependurado
nos cabelos azuis de fevereiro.


SONETO DA BUSCA

Eu quase te busquei entre os bambus
para o encontro campestre de janeiro
porém, arisca que és, logo supus
que há muito já compunhas fevereiro.

Dispersei-me na curva como a luz
do sol que agora estaca-se no outeiro
e assim também, meu sonho se reduz
de encontro ao obstáculo primeiro.

Avançada no tempo, te perdeste
sobre o verde capim, atrás do arbusto
que nasceu pra esconder de mim teu busto.

Avançada no tempo, te esqueceste
como esqueço o caminho onde não vou
e a face que na rua não passou.


SONETO MACEDÔNICO

Em frente ao mar, sonhando levagantes,
Maria fabricava centopéias
e as ofertava às praias escaldantes,
tendo por troca um ramo de azaléias.

Tinha um sonho  entregar-se aos navegantes
que a viriam salvar dos cornos finos
e abandonando seios e meninos
fugir, pra sempre, ao riso dos farsantes.

Por isso imaginava saltimbancos
que a viriam roubar  graves e louros 
de seu pálido e tímido espantalho.

Terminou se entregando aos homens francos:
a um vagabundo triste e a um rei de ouros
esquecido entre as cartas de um baralho.


SONETO DA PUBERDADE

Já cercada de sal e de ondas curvas,
sem ainda ser nauta, se aventura
e descobre na praia, agora escura,
a presença da fonte de águas turvas.

Depois contempla a costa, mais surpresa
ao ver os nunca outrora vistos montes,
diminuindo os longos horizontes.
E aumentando as promessas de incerteza.

E corre ao mar, ligeira, antes que o mar
também se modifique, e silenciosa
descobre um barco e põe-se a navegar.

Mas, que pode fazer? tão só, tão cedo...
e sem rosa dos ventos, sem a rosa
que a podia livrar de algum rochedo.


SONETO PARA CERTA MOÇA ou
HISTÓRIA DA POESIA BRASILEIRA

Roubaste o verde aos impossíveis mares
e o roxo das incautas caravelas.
Por isso, és governada por aquelas
gravíssimas perturbações lunares.

Na fuga que fizeste dos altares
buscando o imponderável das janelas,
trocaste apenas quadros seculares
pelas cores de novas aquarelas.

Daí, eu te dizer que foste, outrora,
habitada por trágicas mudanças
sem nunca te encontrares, como agora.

Também, tu nada sabes de esquivanças
e assistes, frágil e indefesa embora,
dentro de ti saltarem novas Franças.


SONETO DA IMUTÁVEL

Raiz e rosa és no negro asfalto
anunciando o inútil das mudanças
à cidade onde em várias esquivanças
impuseste o silêncio do planalto.

O outrora quando em ti cantou mais alto
transtornando o presente, silenciosa
acorrentaste os pés ao imutável
rompendo um rio e conservando a rosa.

Intransigente foste, e inexorável
afastaste o impecilho, e mais formosa,
voltaste para o antigo, o tempo frágil

onde, gaivota, descobriste abril
na geografia de teu tempo, hostil
a essa mudança que te fez mais ágil.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes