O SONETO PESSIMISTA

Se a filosofia tem mais perguntas que respostas e a religião mais proibições que promessas, a poesia encontra sempre (dependendo do humor do poeta) um meio (que nunca é o meio termo) de responder mais que a filosofia e de prometer mais que a religião. Se o poeta for otimista, a pior das hipóteses é a esperança e a melhor o paraíso; se for pessimista, o inferno é aqui e agora, e sempre pode piorar antes que o soneto acabe. Enquanto as opiniões do sonetista couberem numa perspectiva pascaliana (ou seja: para quem crê, explicações não são necessárias; para quem não crê, não são suficientes), a seleção mais pertinente estaria na página O SONETO SAGRADO ou na página O SONETO FILOSÓFICO. A partir do ponto em que o sonetista se predispõe a pintar com tinta cor-de-rosa ou preta, seu caso se enquadra na página O SONETO OTIMISTA ou nesta que apresento abaixo. [GM] SOLITUDES [A. J. Pereira da Silva] Senhor, meu Deus! não move a minha pena, Vós o sabeis, o impulso da vaidade. A glória deste mundo é bem pequena E não nasci para a imortalidade. Mas não sei por que nada me dissuade E, antes, tudo em meu sangue me condena A dar forma, expressão, plasticidade, Estilo a tudo quanto é dor terrena. É meu tormento. Chamam-lhe poesia, Arte do verso. Chamo-lhe o madeiro, A cruz da minha noite e do meu dia. — Cruz em que verto o sangue verdadeiro E em que minha alma em transes agonia E o coração se crucifica inteiro... NATAL DE UM MENINO POBRE [Alcides Ferreira] Fui menino e você, Papai Noel, Não pôs presentes nos meus sapatinhos!... No entanto, aos muitos outros garotinhos, Você dava brinquedos a granel. Muitos dezembros vi, bebendo o fel De uma infância deserta de carinhos, Enquanto os meus amigos e vizinhos Das flores do Natal sorviam mel. Você, que eu via em todos os recantos Da cidade, tão meigo para tantos, Não teve, para mim, um gesto nobre! Porém, o seu desprezo eu justifico: Você só gosta de menino rico... Você não gosta de menino pobre! DESTINO [Américo Palha] Envolto no aranhol das minhas dores, Abro, convulso, o livro dos meus dias: — Cada folha me traz fundos travores E o veneno letal das nostalgias. Algemado, suporto os estertores De profundas e lentas agonias; — Soluços, funerais dos meus amores E o féretro de glórias fugidias. Se busco um lenitivo ao meu penar, Ouço o eco de uma voz que grita: Não! Viverás e sofrendo hás de chorar! Minha alma, compungida, há de sentir — Pesadelos das horas que se vão, Incertezas das horas que hão de vir... IRONIA DIVINA [Artur de Sales] Na silenciosa catedral vetusta Penetrei; religioso e solitário, Numa concentração de missionário Sublimizado numa fé robusta. De um Cristo macilento e funerário, Braços abertos sobre a cruz adusta, Vinha uma doce claridade augusta, Que iluminava todo o santuário. Aos pés da imagem do Crucificado Chorei, por muito tempo, ajoelhado; Mas, quando o olhar ergui, tremi de espanto: Do altar, por entre as sombras, fugidias, — Oh! ironia atroz das ironias! — Aquele Cristo ria do meu pranto... NUNCA! [Augusto de Lima] "É cedo!" — Ao homem uma voz responde, Quando, recém-nascido, o olhar aberto Pela primeira vez, levanta incerto, Interrogando o fado que se esconde. "É cedo ainda". Do zênite já perto O espírito, por mais que inquira e sonde, A mesma voz, que vem não sabe donde, Repete o cruel dístico encoberto. Fitando o ocaso, afaga uma esperança. "Espera", diz-lhe a voz, e não se cansa De esperar que do ocaso venha a aurora. E a noite vem. No vítreo olhar silente, Morto, ainda interroga avidamente... — Porém, responde a voz: "É tarde agora!" PSICOLOGIA DE UM VENCIDO [Augusto dos Anjos] Eu, filho do carbono e do amoníaco, Monstro de escuridão e rutilância, Sofro, desde a epigênese da infância, A influência má dos signos do zodíaco. Profundissimamente hipocondríaco, Este ambiente me causa repugnância... Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia Que se escapa da boca de um cardíaco. Já o verme — este operário das ruínas — Que o sangue podre das carnificinas Come, e à vida em geral declara guerra, Anda a espreitar meus olhos para roê-los, E há de deixar-me apenas os cabelos, Na frialdade inorgânica da terra! TORTURA LENTA [Aureliano Lessa] Há tormentos sem nome, há desenganos Mais negros que o horror da sepultura; Dores loucas, e cheias de amargura, E momentos mais longos do que os anos. Não são da vida os passageiros danos Que dobram minha fronte; a desventura Eu a desdenho... A minha sorte dura Fadou-me dentro da alma outros tiranos. As dores da alma, sim; ela somente, Algoz de si, acha um prazer cruento Em torturar-se ao fogo lentamente. Oh! isto é que é sofrer! nenhum tormento Vale um gemido só da alma tremente, Nem séculos as dores de um momento! FELICIDADE [Bastos Tigre] Feliz do que foi sempre desgraçado, E só viu, na existência, a desventura, Pois, este, nem por sonhos, conjetura No que consiste ser-se afortunado. Se não teve prazeres no passado, Reviver o passado não procura; Que a vida é sempre má se lhe afigura. E, sem consolo, vive consolado. Triste é os tempos vividos, venturosos, Comparar às agruras do presente; Que mágoas só as tem quem teve gozos. O mal é nada mais que o bem perdido; Não dói tanto a desdita permanente Como o não ser feliz, já o tendo sido. GUERRA [Caio Maranhão] O Gênio Humano tornou-se iracundo E ruge e range a raiva atroz das hienas... E a turba cai do báratro no fundo, Nos vórtices de chama das geenas! E, após a luta, o saque furibundo Com todo o requintado horror das cenas... — Gargalha, Marte! Torna-te jocundo! Já todo um povo geme as suas penas! E assim como Atlas, num penar profundo — Oh! formidando assombro dos assombros! — Foi condenado a sustentar o mundo, Essa gente, que surge dos escombros, Vai palmilhando pelo campo imundo Suportando a miséria sobre os ombros!... PROCURA DA DESVENTURA [Cláudio Manuel da Costa] Continuamente estou imaginando, Se esta vida, que logro, tão pesada, Há de ser sempre aflita, e magoada, Se com o tempo enfim se há de ir mudando: Em golfos de esperança flutuando Mil vezes busco a praia desejada; E a tormenta outra vez não esperada Ao pélago infeliz me vai levando. Tenho já o meu mal tão descoberto, Que eu mesmo busco a minha desventura; Pois não pode ser mais seu desconcerto. Que me pode fazer a sorte dura, Se para não sentir seu golpe incerto, Tudo o que foi paixão, é já loucura! ÚNICO REMÉDIO [Cruz e Souza] Como a chama que sobe e que se apaga, sobem as vidas a espiral do Inferno. O desespero é como o fogo eterno que o campo quieto em convulsões alaga... Tudo é veneno, tudo cardo e praga! E as almas que têm sede de falerno bebem apenas o licor moderno do tédio pessimista que as esmaga. Mas a Caveira vem se aproximando, vem exótica e nua, vem dançando, no estrambotismo lúgubre vem vindo. E tudo acaba então no horror insano — — desespero do Inferno e tédio humano — quando, d'esguelha, a Morte surge rindo... DELIRANDO... [Emiliana Delminda] Musa, deixa-me só. O ambiente que respiro A custo, eivado está de lúgubres sinais: Sobre minha cabeça, ao jeito de um vampiro Paira a sombra da morte. Adeus! Não voltes mais! Não! perdoa-me. Vem, num último suspiro Ouvir-me o cavo som de concentrados ais. Eu sofro; a dor crucia e bem vês que deliro Sonhando o rosicler de auroras celestiais! No azul esplende o sol e eu tenho tanto frio! Pulsa-me acelerado o coração doentio E o tédio de viver a mente me entorpece... O momento supremo aguardo ansiosamente, Não me abandones, vem piedosa e complacente Trazer-me a extrema-unção na esmola de uma prece! A UM PESSIMISTA [Emílio de Meneses] Olhas o céu e o céu, todo em atra gangrena, Se te mostra corroendo as rútilas esferas. Baixas à terra o olhar e a terra, em outras eras, Plena de gozo e amor, ora é de horrores plena. Sangra a etérea região, sangra a região terrena E o horizonte, que as une, inda mais dilacera-as. E as próprias linhas — louco! em que a sânie verberas, Podres vêm ao papel, podres brotam-te à pena. Mas, se ao céu e se à terra, e se ao horizonte e ao verso, Asco e náusea tressuando, a podridão atrelas E nela vês tombar e fundir-se o universo, Sobe do chão o olhar, baixa-o das nuvens belas E volve-o dentro em ti, pois fora o tens imerso Na própria irradiação das tuas próprias mazelas. MELANCOLIA [Emílio Kemp] Vão-se os dias passando e cada dia Que chega, traz consigo as mesmas cores Desta perene e atroz melancolia Que me prende num círculo de horrores! Se desta dor que tanto me crucia, Busco esquecer-me, procurando amores, Neles, somente, encontro — que ironia! — Novos motivos para novas dores!... E assim vivendo, eu vou como um precito Que por estradas lúgubres caminha, Rasgando os pés em pontas de granito. Que importa a mim que a luz do sol se ria, Se é tão profunda esta tristeza minha Que eu já nem sei se fui alegre um dia! MORRER... DORMIR... [Francisco Otaviano] Morrer... dormir... não mais! Termina a vida E com ela terminam nossas dores: Um punhado de terra, algumas flores, E, às vezes, uma lágrima fingida! Sim! minha morte não será sentida; Não deixo amigos, e nem tive amores, Ou, se os tive, mostraram-se traidores, Algozes vis de uma alma consumida. Tudo é podre no mundo. Que me importa Que ele amanhã se esb'roe e que desabe, Se a natureza para mim é morta! É tempo já que o meu exílio acabe... Vem, pois, ó morte, ao nada me transporta! Morrer... dormir... talvez sonhar... quem sabe? MÃE [Gastão Macedo] Naquele tempo, se um tormento vago Empolgava minha alma de criança, Vinhas, ó mãe, numa carícia mansa, Os olhos me secar, com teu afago. Mas tu partiste e, desde então, eu trago Comigo o germe da desesperança. O tédio me atormenta e não se cansa De fazer-me da vida um sonho aziago. Tento chorar mas só minha alma chora, Porque, de minhas pálpebras, agora, Não rola o pranto, amenizando abrolhos, E sofro, mãe... A dor maior é aquela Que, dentro d'alma, eternamente vela Mas que não tomba em lágrimas dos olhos. TRISTEZA [Gilka Machado] O prazer nos embriaga, a dor nos alucina; só tu és a verdade e és a razão, Tristeza! — flor emotiva, rosa esplêndida e ferina, noute da alma, fulgindo, em astros mil acesa. Não te amedronta o mal, o bem te não fascina, és o riso truncado e a lágrima represa; posta entre o gozo e a dor — satânica e divina — moves eternamente um pêndulo — a incerteza. Etérea sedução das longas horas mortas, horas de treva e luz; mistério do sol-posto; mal que não sabes doer e bem que não confortas... Trago dentro de mim, desde que me acompanhas, um veneno de mel, um mortífero gosto, um desgosto em que gosto alegrias estranhas. SONETO 114 PESSIMISTA [Glauco Mattoso] Já não se fazem craques como dantes. Dinheiro a cada dia compra menos. Há mortos, mas os danos são pequenos depois das tempestades alarmantes. Queimadas na Amazônia são gigantes. Em Cuba adubam fumo com venenos. A CIA negocia shows obscenos. Genebra é a capital dos traficantes. "Virão dias piores", diz o povo. O próprio Nostradamus não previa tão cedo esse admirável mundo novo. E eu, cego, faço minha profecia: Já sou imperador, e me comovo por ser de surdos súditos o guia. CARREGADO DE MIM [Gregório de Matos] Carregado de mim ando no mundo, E o grande peso embarga-me as passadas, Que como ando por vias desusadas, Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo. O remédio será seguir o imundo Caminho, onde dos mais vejo as pisadas, Que as bestas andam juntas mais ornadas, Do que anda só o engenho mais profundo. Não é fácil viver entre os insanos, Erra, quem presumir, que sabe tudo, Se o atalho não soube dos seus danos. O prudente varão há de ser mudo, Que é melhor neste mundo o mar de enganos Ser louco cos demais, que ser sisudo. SPLEEN [Guilherme de Almeida] E a vida continua... E continua o mesmo outono e o mesmo tédio... Os galhos vão ficando tão nus, a alma tão nua, e os meus cabelos pretos tão grisalhos! Vem aí Dom Inverno... Vem com sua neurastenia... Uns últimos retalhos de folhas mortas passam pela rua: e passa o bando dos meus sonhos falhos... Triste inutilidade desta vida! Uma árvore ainda espera, aborrecida, uma impossível primavera... E ao ver sua silhueta rendilhando o poente, penso em alguém que espero inutilmente, numa inútil vontade de viver! RENÚNCIA [Heitor Lima] Fugir, deixando um bem que o braço já tocava Pela incerteza atroz de uma fé que redime... Fugir para ser livre, e sentir, na alma escrava, A sujeição fatal de uma paixão sublime. Fugir, e, surdo à voz da consciência, que oprime, Opor diques de gelo a torrentes de lava, Sentindo, na renúncia, o alvoroço de um crime Que a ingratidão aumenta e a covardia agrava. Fugir, tão perto já da enseada, vendo, ao fundo, Gaivotas esvoaçando entre velas e mastros, Na glorificação triunfal do sol fecundo. Fugir do amor — fugir do céu, fugir de rastros, Sufocando um clamor que abalaria o mundo E abafando um clarão que incendiaria os astros. OLHOS TRISTES [Henriqueta Lisboa] Olhos mais tristes ainda do que os meus São esses olhos com que o olhar me fitas. Tenho a impressão que vai dizer adeus Este olhar de renúncias infinitas. Todos os sonhos, que se fazem seus, Tomam logo a expressão de almas aflitas. E até que, um dia, cegue à mão de Deus, Será o olhar de todas as desditas. Assim parado a olhar-me, quase extinto, Este olhar que, de noite, é como o luar, Vem da distância, bêbedo de absinto... Este olhar, que me enleva e que me assombra, Vive curvado sobre o meu olhar Como um cipreste sobre a própria sombra. BUENA-DICHA [Hermes Fontes] Olhou-me a buena-dicha; olhou-me e disse: — Amarás. Brilharás e sofrerás. Eu ia, então, na minha meninice Inquieta, a cerca de vintênio atrás. E, se tal por sabê-lo, eu antevisse O predestino esplêndido e mendaz, Quis amar, quis brilhar, quis que a velhice Não me recriminasse de ações más. Para brilhar, busquei a glória na arte. Para amar, procurei o bem no afeto. Para sofrer, levei a cruz e o andor. Mas, a glória mentiu. Por sua parte, Mentiu-me o amor, tudo mentiu, exceto A doce mãe dos imortais — a dor! A VIDA (II) [J. G. de Araújo Jorge] ..Tem sido assim e assim será... Mais tarde o que hoje pensas chamarás: — quimera! E esse esplendor que nos teus olhos arde, será a visão de extinta primavera... Escondido à traição, como uma fera, bem em silêncio, e sem fazer alarde, o Destino que é mau e que é covarde, naquela sombra adiante já te espera! E num requinte de perversidade faz de cada ilusão, de cada sonho, a ruína de uma dor... e uma saudade... E se voltares, notarás então desesperado, ao teu olhar tristonho que em vão sonhaste... e que viveste em vão!... SONETO PESSIMISTA [José Albano] Poeta fui e do áspero destino Senti bem cedo a mão pesada e dura. Conheci mais tristeza que ventura E sempre andei errante e peregrino. Vivi sujeito ao doce desatino Que tanto engana, mas tão pouco dura; E inda choro o rigor da sorte escura, Se nas dores passadas imagino. Porém, como me agora vejo isento Dos sonhos que sonhava noite e dia, E só com as saudades me atormento; Entendo que não tive outra alegria Nem nunca outro qualquer contentamento Senão de ter cantado o que sofria. DESENGANO [José Maria do Amaral] Uma por uma, da existência as flores, Se a existência que temos é florida, Uma por uma, no correr da vida, Fanadas vi sem viço e vi sem cores. Sonhos mundanos, sois enganadores Alma que vos sonhou, geme iludida; Existência, de flores tão despida, Que te fica senão tristeza e dores? Do mundo as ilusões perdi funestas, Ao noitejar da idade, em amargura, Esperança cristã, só tu me restas! Fujo contigo desta ida impura, Nas crenças que tão mística me emprestas, Transponho antes da morte a sepultura. DIVINA MENTIRA (a Rodrigues de Abreu) [Judas Isgorogota] Pobrezinha da mãe que teve um filho poeta E o viu cedo partir para as bandas do mar... Nunca mais que ele volte à mansão predileta, Nunca mais que ela deixe, um dia, de chorar... É como a água de um lago, inteiramente quieta, A alma de toda mãe que vive a meditar: O mais leve sussurro é-lhe um toque de seta, A mais leve impressão basta para a assustar... Eu, por sabê-la assim, quando lhe escrevo, digo: "— Minha querida mãe, não se aflija comigo. E eu vou passando bem... Jesus vela por mim..." É que assim, ela — a humana expressão da bondade Contente por saber que vou sem novidade, Jamais há de pensar que eu vá mentir-lhe assim... ECCE HOMO [Leopoldo Braga] Saberei perdoar! Sangra-me a chaga, Mas não condenarei quem veio abri-la. Nivelo o Mal e o Bem. Da mesma argila É a mão que dilacera e é a mão que afaga. Saberei esquecer, de alma tranqüila. O turbilhão do Tempo é imensa vaga Que as tristezas recônditas apaga, À proporção que os sonhos aniquila! Sempre o perdão e o esquecimento! Eis todo O ardente sacrifício do meu culto E a suprema razão deste denodo Com que as paixões e as lágrimas oculto E recebo, cantando, o aplauso e o apodo, A esmola e o beijo, a gargalhada e o insulto! O DESTINO [Luís Delfino] O rio vem do mar, para o mar corre: Quem sabe por que nasce e por que morre? Sabe o sol que ele faz a madrugada? Quem fez de um grão de areia este universo? Não podia fazê-lo outro e diverso? Pode cousa qualquer sair do nada? Por que nos fez assim com fome e sede, Selvagem, como a fera da floresta, E não pôs tudo numa eterna festa? Quem deu a vida, não daria a rede Em que se embala o Índio do arvoredo, Mas que ele arranca ao tronco com trabalho? Ruge em torno de nós a dor e o medo. Nada vales, Helena, e eu nada valho?!... TRAVESSIA DAS LÁGRIMAS [Luís Murat] Tudo tentei! Mas tudo inutilmente! O fogo continuou a devorar! É que nas cinzas frias do presente, Havia muito ainda que queimar! Lá vai a folha a revoltões na enchente... Onde irá ter? Que irá por fim achar Entre as urzes de um solo indiferente, Ou nos recifes úmidos do mar? Coração — pobre folha! — a travessia Das lágrimas de estranhos tons matizas, Com outras dores e outro pranto regas! Segue viajor! Hás de chegar um dia... Oh! como dilacera o chão que pisas, Como é pesado o lenho que carregas! O FAROL [Magalhães de Azeredo] Fulge branco o farol no negro oceano, E é como olhar fraterno, é como um grito De luz, conforto humano e sobre-humano Ao coração do nauta errante e aflito. Mas este, apenas fogem medo e dano, Nem cuida já do seu clarão bendito, É a sorte do farol, ano após ano, Sentinela da noite e do Infinito. Assim tu, alma solitária e augusta, Foco de luz, poesia e pensamento, Farol solar na muda treva onusta, Não esperes do vulgo desatento, Nem grato afeto, nem palavra justa; Mas o frio abandono, o esquecimento. RENÚNCIA [Manuel Bandeira] Chora de manso e no íntimo... Procura Curtir sem queixa o mal que te crucia: O mundo é sem piedade e até riria Da tua inconsolável amargura. Só a dor enobrece e é grande e é pura. Aprende a amá-la que a amarás um dia. Então ela será tua alegria, E será, ela só, tua ventura... A vida é vã como a sombra que passa... Sofre sereno e dalma sobranceira, Sem um grito sequer, tua desgraça. Encerra em ti tua tristeza inteira. E pede humildemente a Deus que a faça Tua doce e constante companheira... O REMORSO [Medeiros e Albuquerque] O Deus que num momento de loucura Criou a Terra e fez nascer a Vida, Ao ver a obra de suas mãos saída, Tão má, tão imperfeita, tão impura; — Ao sentir como em cada criatura Existe sempre a queixa dolorida De um sofrer, uma angústia, uma ferida, Que a punge, que a magoa ou que a tortura, — E ao ouvir como a dor de cada peito Soluçava no ar tristonho e baço, — Viu que o que tinha feito era mal feito... E com remorso, como um criminoso, Teve medo de um céu tão tenebroso, E acendeu as estrelas pelo espaço. NOTURNO [Medeiros Lima] Noite amiga, sonâmbula, silente, Muito te quero, muito te desejo, Quando à hora do "Angelus" te vejo Baixando à terra vagarosamente. E se mais negra vens e tão somente, Se não trazes dos astros o cortejo, Deusa das trevas, mais e mais almejo Fazer-te minha eterna confidente. Ao falar-te da dor que me repisa, Do desespero que me tantaliza E gera o pasmo que me petrifica, Negra te quero como o meu desgosto, Para que o mundo me não veja o rosto Se nele a mágoa revelada fica. RESPOSTAS NA SOMBRA [Olavo Bilac] "Sofro... Vejo envasado em desespero e lama Todo o antigo fulgor, que tive na alma boa; Abandona-me a glória; a ambição me atraiçoa; Que fazer, para ser como os felizes?" — Ama! "Amei... Mas tive a cruz, os cravos, a coroa De espinhos, e o desdém que humilha, e o dó que infama; Calcinou-me a irrisão na destruidora chama; Padeço! Que fazer, para ser bom?" — Perdoa! "Perdoei... Mas outra vez, sobre o perdão e a prece, Tive o opróbrio; e outra vez, sobre a piedade, a injúria; Desvairo! Que fazer, para o consolo?" — Esquece! "Mas lembro... Em sangue e fel, o coração me escorre; Ranjo os dentes, remordo os punhos, rujo em fúria... Odeio! Que fazer, para a vingança?" — Morre! HORA DE TÉDIO [Oscar D'Alva] Quando a sós na existência meditando Triste, revivo malogrados dias, Ao recordar mais dores que alegrias, O coração se sente miserando. Punge-me n'alma fundas agonias De uma vida passada o bem pregando Em toda a parte, e apenas encontrando Insolências, insultos, ironias... Os gozos são efêmeros fulgores Que minha alma lembrando hoje revive; O mais são mágoas, lutos, dissabores... Então sinto — ao pensar que não gozei — Saudade de prazeres que não tive, Esperança de bens que não terei! CONTRASTE [Padre Antônio Tomás] Quando partimos no vigor dos anos, Da vida pela estrada florescente, As esperanças vão conosco à frente E vão ficando atrás os desenganos. Rindo e cantando, céleres e ufanos, Vamos marchando descuidosamente... Eis que chega a velhice de repente, Desfazendo ilusões, matando enganos! E é só então que vemos claramente Quanto a existência é rápida e fugaz! E vemos que sucede exatamente O contrário dos tempos de rapaz: Os desenganos vão conosco à frente E as esperanças vão ficando atrás! VOX IN EXCELSO [Paulo Eiró] Nestas noites de outono, quando, intensa, A luz dos astros brilha em céu profundo, E, como um resfolgar de moribundo, Forceja o vento na folhagem densa; Ouço, Fábio, uma voz que dessa imensa Abóbada mal chega aqui no mundo, Qual um suspiro de anjo pudibundo Nos êxtases da eterna recompensa. Ela diz-me: "Insensato peregrino! Não herdaste a humanal felicidade, E o seio furtas a um amor divino". Voz de estrelado céu, falas verdade! Oh que negro e medonho é o meu destino! Oh que velhice é a minha mocidade! CETICISMO [Paulo Maranhão] Viver é andar pela existência afora, Numa continuidade de fracassos, Sentindo e pressentindo, ontem e agora, Todas as esperanças em pedaços. Mas, quanta vez, o coração se enflora De novos sonhos; e os desejos lassos, Refervem, febricitam, na pletora E no arrebatamento dos abraços; Só no êxtase velado da ternura, Viver a vida primitiva e pura Na modéstia feliz do nosso amor! Assim, medita o poeta. E, enquanto pensa, Sente a desolação para a descrença Nesse desequilíbrio para a dor! DESGOSTO [Santa Rita Bastos] Se um tal homem houver, homem tão forte, Que possa ver, em sua casa entrando, Malfeitores cruéis, assassinando A cara filha, a cândida consorte; Se um tal homem houver, que sem transporte Veja o céu rubros raios vomitando, O mar pelos rochedos atrepando, A terra inteira a bracejar com a morte: Apareça esse herói, assim disposto, Que lhe quero mostrar por dentro o peito, E quero lhe não mude a cor do rosto! Há de cair em lágrimas desfeito, Vendo o meu coração pelo desgosto Em mil roturas e pedaços feito... AMARGURA [Stella Leonardos] Por teres sido um dia o meu maior amigo, Um dia me julgaste a tua amiga, apenas... Não sabias então do sentimento antigo Que eu, altiva, ocultava, e contaste-me as penas... Como foi que te ouvi com feições tão serenas?!... É coisa que até hoje entender não consigo: Tu que falavas mal dessas fingidas cenas A que o Destino obriga, e eu que fingi contigo! Se imaginas, porém, que fiquei compungida Quando te vi descrente, amaldiçoando a Vida, Tendo eu tantas razões de me queixar do fel... Jamais meu coração soube guardar rancores: Se a Vida é uma comédia e é certo haver atores, Não na posso culpar por meu triste papel!... NO CAMINHO DA VIDA (à minha mãe) [Tancredo Morais] Coitado de quem vai triste e sozinho, Peregrino, da vida pela estrada, A alma, aos poucos, deixando esfarrapada Nas agudas arestas do Caminho. Já da Esperança a lâmpada apagada, E, às vezes, da Ventura tão vizinho, Mas, sem provar seu capitoso vinho... — Como é triste, meu Deus, esta jornada! Mãe — que não chegue nunca aos teus ouvidos, Que nos meus olhos trago amargo pranto, E no peito um concerto de gemidos! — Ah, minha luz! meu carinhoso abrigo, Este teu filho por quem rezas tanto Só foi feliz quando viveu contigo. TÉDIO [Tarsila Amaral] Linha reta, infinita, onde a vista erradia Em vão busca tatear um relêvo que agrade, Vago traço de união entre o êrro e a verdade, Entre a dôr que compunge e o prazer que inebria... Intérmino bocejo a enodoar a estesia Dos sentidos do Artista... Ao teu contato há de, Certo, quebrar-se a Lyra em queixas de saudade E a alma, tonta, mergulha em funda letargia... Ao teu bafejo hostil uma névoa se adensa, Que amortece, impiedosa, a luz da minha Crença E a faz tombar em cinza, ao léu, de quando em quando... Sinto o horror de sofrer por não poder sofrer... E, cônscia, observo a morte e o lento apodrecer Dos meus sonhos que vão para o Nada rolando... FLORAÇÕES RUBRAS [Ulisses Diniz] Tenho vibrando em mim a ardência das areias, As volúpias pagãs de nômades sedentos. As ondas lacrimais (e eu tenho as vistas cheias!) São lavas de vulcões uivantes e violentos! Sou árabe, talvez. Trago, estuando, nas veias O sangue de ancestrais beduínos maus e cruentos. Eu sigo, triste e só, em terras sempre alheias, Carpindo ao léu da sorte, ao sol e aos quatro ventos. Trago sangrando os pés nas urzes dos caminhos, Onde vejo fulgir as gotas do meu sangue, — Maldita floração de abrolhos e de espinhos... Pesa-me sobre a fronte o universo precito: — Vendo a lua sorrir na podridão do mangue — E o sapo a se mirar no espelho do infinito!... ESPERANÇA [Vicente de Carvalho] Só a leve esperança, em toda a vida, Disfarça a pena de viver, mais nada; Nem é mais a existência, resumida, Que uma grande esperança malograda. O eterno sonho da alma desterrada, Sonho que a traz ansiosa e embevecida, É uma hora feliz, sempre adiada E que não chega nunca em toda a vida. Essa felicidade que supomos, Árvore milagrosa que sonhamos Toda arreada de dourados pomos, Existe, sim: mas nós não a alcançamos Porque está sempre apenas onde a pomos E nunca a pomos onde nós estamos. ASPIRAÇÃO [Zeferino Brasil] Ser pedra! não sofrer nem amar, ó que ventura! Excelsa aspiração que merece um poema! Ser pedra e ter da pedra a consistência dura Que resiste do tempo à corrupção extrema. Alma! sopro de luz que me anima e depura, Antes tu fosses pedra: um diamante, uma gema Não te seria a vida esta insana loucura Do eterno aspirar à perfeição suprema! Homem, não mudarás! És homem, serás homem; Lama vil animada, onde vive e onde medra A venenosa flor das mágoas que consomem. Homem sempre serás, imperfeito e corruto... E melhor é ser pedra e viver como pedra Que ser homem assim e viver como um bruto!... CARNAVAL [Zito Batista] Põe a máscara e vai para a folia, Na afetação de uns gestos singulares, Esquecido dos últimos pesares Que te atormentam todo o santo dia... Homem doente, perdido nesses mares Tenebrosos, da dúvida sombria, Vê que há lá fora um frêmito de orgia, Mesmo através das cousas mais vulgares! Põe-te a cantar, desabaladamente! Vai para a rua aos trambolhões, às tontas, Como se enlouquecesses de repente... Agarra-te à alegria passageira: Olha que o que te espera ao fim de contas, É o triste carnaval da vida inteira...
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