Da mesma maneira que não sou um poeta exclusivamente podólatra e (ao contrário do que muitos supõem) trabalho, as mais das vezes, outros temas, também não sou o único sonetista podólatra. Esta página, da qual me excluo pela obviedade, é uma amostragem de como a poesia brasileira aborda (frontal ou tangencialmente, sexual ou casualmente) a iconografia podólatra, incluindo-se nesse universo o voyeurismo do gesto e a simbologia da humilhação, além do fetichismo propriamente dito, do pé e do calçado. [GM] SOB O TEU SILÊNCIO [Abgar Renault] Não me doeria ser o teu ditado, e só pelos teus olhos tudo ter; sob os teus pés sentir-me derramado como seu chão de afeto e de prazer; ser em teu sonho gesto de passado, buscar teu sol e lua e dissolver- me, pelo seu excesso fulminado; ser fragmento da sombra do teu ser: ainda formas de luz inventaria, frutos no céu, manhãs na ramaria, montanhas de ouro, lira à flor do mar, se o sim nem não, sem letras e sem boca, em que te enterras não me fosse a oca morte onde murcho e cevo a dor de amar. SONETO MONACAL [Amadeu Amaral] Quem me conheça, muitas vezes há de ver que na Dor, como hoje, me enclausuro monge vagando em corredor escuro, alheio aos ecos da comunidade. Mudo e grave e alquebrado como um frade que sonha um sonho religioso e puro, olho, às janelas ogivais do muro, o roxo pôr-de-sol da mocidade. Sinto que a noite vem, cheia de horrores, colher-me neste claustro, onde somente ressoam, pelo chão, minhas sandálias; e que meus gritos de profundas dores hão de perder-se desoladamente na mudez cavernosa das muralhas. OUTRO SONETO MONACAL [Amadeu Amaral] Por entre os claustros da Amargura, arrasto no pavimento minha vil sandália, pondo um ruído no silêncio vasto, que entre as paredes, funeral, se espalha. Eu sei de um monge devotado e casto, que chama a Virgem, para que lhe valha, vendo-a surgir atônito, de rasto no fundo escuro da brutal muralha: assim eu vejo, às vezes, a figura clara e esvelta e formosa duma santa, rompendo a escuridão desta clausura. Santa dum céu ignoto, céu de sonho ao qual toda minha alma se alevanta, nos arroubos dum êxtase tristonho... SONETO AOS SAPATOS QUIETOS [Carlos Nejar] Os pés dos sapatos juntos. Hei-de calçá-los, soltos e imensos, e talvez rotos, como dois velhos marujos. Nunca terão o desgosto que tive. Jamais o sujo desconsolo: estando postos, como eu, em chãos defuntos. Em vãos de flor, sem o riacho de um pé a outro, entre guizos. Não há demência ou fome. Sapatos nos pés não comem. Só dormem. Porém, descalço pela alma, é o paraíso. BÁRBORA [Castro Alves] Erguendo o cálix, que o Xerez perfuma, Loura a trança alastrando-lhe os joelhos, Dentes níveos em lábios tão vermelhos, Como boiando em purpurina escuma; Um dorso de Valquíria... alvo de bruma, Pequenos pés sob infantis artelhos, Olhos vivos, tão vivos como espelhos, Mas como eles também sem chama alguma; Garganta de um palor alabastrino, Que harmonias e músicas respira... No lábio um beijo... no beijar um hino; Harpa eólia a esperar que o vento a fira, Um pedaço de mármore divino... É o retrato de Bárbora a Hetaíra. PÉS [Cruz e Souza] Lívidos, frios, de sinistro aspecto, como os pés de Jesus, rotos em chaga, inteiriçados, dentre a auréola vaga do mistério sagrado de um afeto. Pés que o fluido magnético, secreto da morte maculou de estranha e maga sensação esquisita que propaga um frio nalma, doloroso e inquieto... Pés que bocas febris e apaixonadas purificaram, quentes, inflamadas, com o beijo dos adeuses soluçantes. Pés que já no caixão, enrijecidos, aterradoramente indefinidos geram fascinações dilacerantes! PULVIS [Durval de Morais] Homem, venho do pó fecundo e miserando, Como a flor da lagoa impura e deletéria, E pó será meu corpo airoso e leve, quando A vida abandonar-me ao seio da matéria! Sou feito de poeira e feito de miséria, E, sonhando o esplendor de régias pompas, ando Como se fosse um sol pela amplidão sidérea, Como se fosse um deus o eterno Olimpo entrando! Alguns anos... alguém, depois do meu traspasse, Pisará... sem pensar que pisa na poeira, Meus olhos, minhas mãos, meus lábios, minha face!... ..E à luz do sol poente, e à luz das alvoradas, Quando o vento rufar sua marcha guerreira, Minha alma feita em pó voará pelas estradas!... IGUAÇU [Emiliano Perneta] Ó rio que nasceu onde nasci, ó rio Calmo da minha infância, ora doce, ora má, Belo estuário azul, espelhado e sombrio, Quanto susto me deu, quanto prazer me dá! Quantas vezes eu só, nestas manhãs de estio, Ao vê-lo deslizar, pomposamente, lá, Pálido não fiquei, tão majestoso vi-o, Orgulho do Brasil, glória do Paraná! Companheiro ideal! Durante toda a viagem, Foi o espelho fiel a refletir a imagem, Dos mantos e dos céus, discorrendo através Da floresta, ora assim como um cão veadeiro, A fugir, a fugir alegre e alvissareiro, Ora deitado aqui quase a lamber-me os pés! NOITE DE INSÔNIA [Emílio de Meneses] Este leito que é o meu, que é o teu, que é o nosso leito, Onde este grande amor floriu, sincero e justo, E unimos, ambos nós, o peito contra o peito, Ambos cheios de anelo e ambos cheios de susto; Este leito que aí está revolto assim, Onde humilde beijei teus pés, as mãos, o busto, Na ausência do teu corpo a que ele estava afeito, Mudou-se, para mim, num leito de Procusto!... Louco e só! A noite vai sem termo E, estendendo, lá fora, as sombras augurais, Envolve a Natureza e penetra o meu ermo. E mal julgas talvez, quando, acaso, te vais, Quanto me punge e corta o coração enfermo, Este horrível temor de que não voltes mais!... ÚNICA [Emílio de Meneses] Fruto efêmero e hostil de um efêmero gozo, Esta vida que arrasto, efêmera e improfícua, Sinto-a embalde, e, debalde, entre pasmado e ansioso, Sondo-a, palpo-a, examino-a, estudo-a, verifico-a. E tudo quanto empreende o espírito curioso, E tudo quanto apreende a análise perspícua, É o falso, é o vão, é o nulo, é o mau, é o pernicioso, Por menos que a razão seja perversa ou iníqua. Logo, por que pensar? Logo, por que no Sonho Não havemos deixar correr a vida fátua, Obrigando o Destino a ser calmo e risonho? Por que só não amar: É culpa? Eis-me: resgato-a Agora que a teus pés todo o meu ser deponho, Como um vil pedestal à tua excelsa estátua!... A FLORISTA [Francisca Júlia] Suspensa ao braço a grávida corbelha, Segue a passo, tranqüila... O sol faísca... Os seus carmíneos lábios de mourisca Se abrem, sorrindo, numa flor vermelha. Deitada à sombra de uma árvore. Uma abelha Zumbe em torno ao cabaz... Uma ave, arisca, O pó do chão, pertinho dela, cisca, Olhando-a, às vezes, trêmula, de esguelha... Aos ouvidos lhe soa um rumor brando De folhas... Pouco a pouco, um leve sono Lhe vai as grandes pálpebras cerrando... Cai-lhe de um pé o rústico tamanco... E assim descalça, mostra, em abandono, O vultinho de um pé macio e branco. O CAMARIM [Gonçalves Crespo] A luz do Sol afaga docemente As bordadas cortinas de escumilha, Penetrantes aromas de baunilha Ondulam pelo tépido ambiente. Sobre a estante do piano reluzente Repousa a "Norma", ao lado uma quadrilha; E do leito francês nas colchas brilha De um cão de raça o olhar inteligente. Ao pé das longas vestes, descuidadas Dormem nos arabescos do tapete Duas leves botinas delicadas. Sobre a mesa emurchece um ramilhete, E entre um leque e umas luvas perfumadas Cintila um caprichoso bracelete. MODESTA (II) [Gonçalves Crespo] Um beijo se escutou, E eu via mal seguro A luz que ele traçou No azul do meu futuro. Um beijo se escutou. Depois... teu lábio puro Mais brando suspirou Que a pomba em ermo escuro. Voz doce e piedosa! Não fujas, mariposa, Não tremas, Galatéia! Gwinplaine, extasiado, De um ósculo sagrado Os pés ungia a Déia... ANDO ABAIXO [Gonçalves Dias] Ando abaixo, ando acima, e sempre às solas, Afronto a tempestade, o vento, o frio, Qual se fora ambulante corropio, Seguindo o exemplo enfim de outros patolas. Do meu engenho e arte gasto as molas Em suspiros quebrar que à luz envio; E, já por teima só, render porfio A cabeçuda, por quem rompo as solas. E a amo, ela me adora com loucura, Di-lo ao menos; se a beijo não se espanta; Paga-mo até; se insisto... adeus ternura! Do matrimônio a estátua se levanta, Negro espectro! ela torna-se brandura, Eu a imagem do horror que me aquebranta. DOCE AMOR [Gonçalves Dias] Doce Amor a sorrir-se brandamente Em sonhos me falou com tal brandura, Que eu só de o escutar vida mais pura Senti coar-me n'alma fundamente. Depois tornou-se o tredo fogo ardente Que o instante, o ano, a vida me tortura. Bem longe de gozar tanta ventura, Cresta-me o rosto agora o pranto quente. Homem, se homem és no sentimento, Não zombes, não, de mim tão desditosa, Nem seja o teu alívio o meu tormento. Deixa-me a teus pés cair chorosa, Soltar no extremo pranto o extremo alento, Que eu morrendo a teus pés serei ditosa. CIDADE DA BAHIA [Gregório de Matos] A cada canto um grande conselheiro, Que nos quer governar cabana e vinha; Não sabem governar sua cozinha, E podem governar o mundo inteiro. Em cada porta um bem freqüente olheiro, Que a vida do vizinho e da vizinha Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha, Para o levar à praça e ao terreiro. Muitos mulatos desavergonhados, Trazidos sob os pés os homens nobres, Posta nas palmas toda a picardia, Estupendas usuras nos mercados, Todos os que não furtam muito pobres: E eis aqui a cidade da Bahia. A BORRALHEIRA [Guimarães Júnior] Meigos pés, pequeninos, delicados, Como um duplo lilás, se os beija-flores Vos descobrissem entre as outras flores, Que seria de vós, pés adorados! Como dois gêmeos silfos animados, Vi-vos ontem pairar entre os fulgores Do baile, ariscos, brancos, tentadores, Mas, ai de mim! como os mais pés, calçados. Calçados como os mais! Que desacato! Disse eu... Vou já talhar-lhes um sapato Leve, ideal, fantástico, secreto... Ei-lo. Resta saber, Anjo faceiro, Se acertou na medida o sapateiro: Mimosos pés, calçai este soneto. IN EXCELSIS! [Hermes Fontes] Glória a Ti, que és perfeita em quanto, humanamente, possa alguém atingir à perfeição moral! Glória! Ao desabrochar dessa alma redolente, o incenso do meu culto, o hino do meu ritual! Glória a Ti, só a Ti, pois é de Ti, somente, ó Expressão Natural do Sobrenatural, e é só em Ti, que encontro a invisível semente com que, assim, frutifico em pensamento e ideal! Glória, em Ti, alma-irmã! Milagre, que conferes a todos os que atrais e a mim, que repudias, a alta revelação da maravilha que és! Glória, em Ti, ao Amor! Glória, em Ti, às mulheres! A Ti, que reduziste a glória dos meus dias a degrau do teu Sólio, a escrínio dos teus pés!... POR QUE FALAR DE AMOR? [J. G. de Araújo Jorge] Sonhei fazer-te minha só: rainha! Quiseste ser apenas cortesã. E o desejo a crescer, planta daninha foi tornando este amor sem amanhã. Para mim, não bastava seres minha; quis no céu, pôr a estrela da manhã, e acabei por moldar-me ao que convinha a essa tua paixão de terra chã. Se não deste valor ao coração, mas aos sentidos, em que se consomem restos de um erotismo em combustão, por que falar de amor? Foste lograda: tu não tens aos teus pés o amor de um homem, tens um fauno de rastros... e mais nada! O ECO [Judas Isgorogota] Nas guerrilhas pagãs fui um flagelo. Amasse-a Ou não, era a planura extensa das areias Um bem que a minha fé confiara à minha audácia Contra as hostes cristãs, contra as ganas alheias. E lutei, e venci. E à afoiteza e à tenácia Do meu gênio feroz atacando as ameias, Exultado devi, finalmente, a eficácia Dos meus golpes de encontro às bastilhas mais feias! E o meu nome ressoou sob intensas soalheiras. E houve até quem meus pés beijasse, na doudice Com que a pátria recebe as vitórias primeiras! Ó, quanto podes, fé! Se hoje, em minha velhice, Blasono do que fiz pelas hordas guerreiras, Uma voz além fala atestando o que eu disse! JESUS [Junquilho Lourival] Senhor, ao teu desejo elevo a taça Transbordante de fel do meu tormento! Tua vontade sobre mim se faça E seja o teu amor meu pensamento! Que a minha fé, Jesus, não se desfaça, Das perversões ante o deslumbramento! Por mim passe a maldade como passa O grão de poeira no fragor do vento! Mártir da Cruz, ó símbolo da Mágoa! Dá-me a cumprir sereno a minha pena Chagado o corpo e os olhos rasos d'água. E faze que esta boca humilde e boa Nunca maldiga ao que disser Condena! Mas beije os pés ao que disser Perdoa! À MANEIRA DE BOCAGE [Laurindo Rabelo] De uma ingrata em troféu, despedaçado Meu coração devora amor cruento, Trocando em fero e bárbaro tormento Quantos prazeres concedeu-me o fado. No seio d'alma, já dilacerado, Negras fúrias do báratro apascento! Filtra-me o delirante pensamento De zelos negro fel envenenado. Desprezo, ingratidão, fria esquivança Da cruel por quem morro, em tal procela Apagaram-me a estrela da esperança. E eu (ao confessá-lo a dor me gela) Humilhado a seus pés, minha vingança É carpir, delirar, morrer por ela. SONETO À NADADORA [Ledo Ivo] A meus olhos terrestres, teu sorriso, enquanto existes, fruta de esplendor, não se assemelha às ondas, mas à flor pelo acaso deposta onde é preciso. Entendes o equinócio, no indiviso sulco de luz dormida. E é meu temor que te desgaste o sol, com seu fulgor persuasivo e sonoro como um riso. O verde condenável das piscinas no cântico braçal desenha os prantos que a noite oferta à fímbria de teus cílios. Conformada às marés, como as ondinas, dás a manhã aos céus, e os acalantos de teus pés frios soam como idílios. O MAR [Lindolfo Esteves] A ter de dia o sol em chamas sobre o peito Com que o céu lhe tortura a carne e sem um grito De rebelião, o mar semelha-se a um precito Que, à custa de sofrer, se torna à dor afeito. Mas quando a noite cai, deitado no álveo estreito E sem poder sonhar no horror da treva aflito, O mar se atira contra as rochas de granito Procurando alargar a angústia do seu leito. E ao ver por cima o céu tão rútilo e tão claro, De indigência mendiga um só punhado de ouro, Como o escravo estendido aos pés do seu tirano. Então para o calar, de tédio o céu que é avaro, Deixa apenas cair, abarcando um tesouro Uns farrapos de luz sobre a nudez do oceano... A UNHA DO DEDO MÍNIMO DO PÉ [Luís Delfino] É um gigante, e acaso uma hora excede-o: O seu alto valor se verifica Quando, em noite de amor tão curta e rica, Crê-se tudo acabado e sem remédio. Vence o cansaço e o sono; o sono e o tédio... De ambos a inércia é a morte, e a calma a explica: Vênus de Amor são grupo em bronze, e aí fica... Eco um beijo inda pede... embalde pede-o... Mas esta unha, num dedo escuso, é certo, Roça-te a carne, um nada, aos pés... desperto Logo, logo o teu sangue às armas grita. Ferve dentro de ti toda uma aurora; E vibra a seta, a seta rubra agora De um sol, que o céu, em todo fundo, agita... CAPRICHO DE SARDANAPALO [Luís Delfino] "Não dormi toda a noite! A vida exalo Numa agonia indômita e cruel! Ergue-te, ó Radamés, ó meu vassalo! Faço-te agora amigo meu fiel... Deixa o leito de sândalo... A cavalo! Falta-me alguém no meu real dossel... Ouves, escravo, o rei Sardanapalo? Engole o espaço! É raio o meu corcel! Não quero que igual noite hoje em mim caia... Vai, Radamés, remonta-te ao Himalaia, Ao sol, à lua... voa, Radamés, Que, enquanto a branca Assíria aos meus pés acho, Quero dormir também, feliz, debaixo Das duas curvas dos seus brancos pés!..." AD INSTAR DELPHINI [Manuel Bandeira] Teus pés são voluptuosos: é por isso Que andas com tanta graça, ó Cassiopéia! De onde te vem tal chama e tal feitiço, Que dás idéia ao corpo, e corpo à idéia? Camões, valei-me! Adamastor, Magriço Dai-me força, e tu, Vênus Citeréia, Essa doçura, esse imortal derriço... Quero também compor minha epopéia! Não cantarei Helena e a antiga Tróia, Nem as Missões e a nacional Lindóia, Nem Deus, nem Diacho! Quero, oh por quem és, Flor ou mulher, chave do meu destino, Quero cantar, como cantou Delfino, As duas curvas de dois brancos pés! O MAR [Maranhão Sobrinho] Ouve! O mar, escarpando as rochas, na agonia Do sol, parece ter na voz o humano acento De dor! Reza, talvez. Vai recolher-se. O dia Se ajoelha e a tarde, em sonho, abraça o firmamento! Como nós, pode ser que a tristeza e a alegria O mar sinta também; precisa, em movimento, Trazer um coração... Quem sabe o que irradia, No seu íntimo, em doce e azul recolhimento! Escuta! Uma onda vem beijar-te os pés. Não há de Calma os seios rasgar sobre os basaltos. Quérulas As ondas todas são. Ouve-lhe a voz. Piedade! O mar leva-me a crer que tem paixões mortais Em que rolam, brilhando, as lágrimas das pérolas E palpita, fervendo, o sangue dos corais... PARA ÉRICO VERÍSSIMO [Mário Quintana] O dia abriu seu pára-sol bordado De nuvens e de verde ramaria. E estava até um fumo, que subia, Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado. Depois surgiu, no céu azul arqueado, A Lua a Lua! em pleno meio-dia. Na rua, um menininho que seguia Parou, ficou a olhá-la admirado... Pus meus sapatos na janela alta, Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta Pra suportarem a existência rude! E eles sonham, imóveis, deslumbrados, Que são dois velhos barcos, encalhados Sobre a margem tranqüila de um açude... ESCANDALOSIDADE DISCRETÍSSIMA [Martins Fontes] Penetrei no teu quarto, sorrateiro. Entreabri do teu leito o cortinado. Invejei, morno e fofo, o travesseiro Em que teu sono dormes, perfumado. Delicadezas vi do teu apeiro De prata. E, entre cem jóias, perturbado, Quis beijar-te, beijar-te o corpo inteiro, Como um ávido amante alucinado. E beijei-te! Beijei-te o ombro desnudo, A fronte, a face, o cálice vermelho Da boca em flor, os cílios de veludo... E, a pouco e pouco, fui dobrando o joelho, E alfim beijei, enternecido e mudo, O lugar dos teus pés no teu espelho. SÓ [Olavo Bilac] Este, que um deus cruel arremessou à vida, Marcando-o com o sinal da sua maldição, Este desabrochou como a erva má, nascida Apenas para aos pés ser calcada no chão. De motejo em motejo arrasta a alma ferida... Sem constância no amor, dentro do coração Sente, crespa, crescer a selva retorcida Dos pensamentos maus, filhos da solidão. Longos dias sem sol! noites de eterno luto! Alma cega, perdida à toa no caminho! Roto casco de nau, desprezado no mar! E, árvore, acabará sem nunca dar um fruto; E, homem, há-de morrer como viveu: sozinho! Sem ar! sem luz! sem Deus! sem fé! sem pão! sem lar! AD VENERIS LACRIMAS [Pedro Kilkerry] Em meus nervos, a arder, a alma é volúpia... Sinto Que Amor embriaga a Íon e a pele de ouro. Estua, Deita-se Íon: enrodilha a cauda o meu Instinto Aos seus rosados pés... Nyx se arrasta, na rua... Canta a alâmpada brônzea? O ouvido aos sons extinto Acorda e ouço a voz ou da alâmpada ou sua. O silêncio anda à escuta. Abre um luar de Corinto Aqui dentro a lamber Hélada nua, nua. Íon treme, estremece. Adora o ritmo louro Da áurea chama, a estorcer os gestos com que crava Finas frechas de luz na cúpula aquecida... Querem cantar de Íon os dois seios, em coro... Mas sua alma por Zeus! na água azul doutra Vida Lava os meus sonhos, treme em seus olhos, escrava. VASSALAGEM [Phaelante da Câmara] Ao trote de um normando, estrada fora, Na solidão bucólica da mata, Passeia alegremente, enquanto a aurora Nos ombros traz seu albornoz de prata. No entanto pára e ingenuamente cora, Porque a sedosa trança se desata, E, como um rio, de espumas de ouro ignora O suntuoso solo que arrebata. Nisto um raio de sol que a medo avança Pintalegrando o verde da floresta, Nos seus olhos reluz de azul faiança. Então a natureza faz-lhe a festa: Junto a seus pés um jasmineiro dança E um colibri vem lhe beijar a testa. LUBRICUS ANGUIS [Raimundo Correia] Quando a Mulher perdeu a deleitosa Paz e os jardins da habitação primeva, Chata a cabeça inda não tinha a seva Serpente que a seus pés silva raivosa; Mas a língua trissulca que na treva Falaz vibra, é a mesma venenosa Língua que à luz puríssima e radiosa Do Paraíso, outrora, enganou Eva... Bendita a planta da Mulher, que a esmaga! Bendita! A este vil monstro, de ora avante, Ninguém mais sobre a terra desconheça! E ele a marca indelével sempre traga Do rijo calcanhar firme e possante, Que lhe achatou, impávido, a cabeça! O ANJO DAS PERNAS TORTAS [Vinicius de Moraes] A um passe de Didi, Garrincha avança Colado o couro aos pés, o olhar atento Dribla um, dribla dois, depois descansa Como a medir o lance do momento. Vem-lhe o pressentimento; ele se lança Mais rápido que o próprio pensamento Dribla mais um, mais dois; a bola trança Feliz, entre seus pés um pé-de-vento! Num só transporte a multidão contrita Em ato de morte se levanta e grita Seu uníssono canto de esperança. Garrincha, o anjo, escuta e atende: Goooool! É pura imagem: um G que chuta um o Dentro da meta, um l. É pura dança! O SONETO PODÓLATRA
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