O SONETO POLÍTICO

Se na página O SONETO SATÍRICO há casos de politização acirrada porém espirituosa, nesta a politização chega a ser carrancuda quando o poeta toca em pontos mais suscetíveis como o racismo. Não resta dúvida que o poeta satírico tem mais jogo de cintura (e por isso mesmo mais pontaria) para tratar de questões políticas, mas todo grande sonetista tem seus momentos (bem ou mal-humorados) de indignação contra as injustiças e desmandos cometidos por quem exerce o poder. Eis aqui alguns exemplos. [GM] À LIBERDADE [Antônio Carlos] Sagrada emanação da Divindade, Aqui, do cadafalso, eu te saúdo; Nem com tormentos, com reveses mudo; Fui teu sectário e sou, ó Liberdade! Pode a vida, brutal ferocidade, Arranca-me em tormento mais agudo; Mas das fúrias do déspota sanhudo Zomba da alma a nativa dignidade. Livre nasci, vivi e livre espero Encerrar-me na fria sepultura, Onde império não tem mando severo; Nem da Morte a medonha catadura Incutir pode horror a um peito fero, Que aos fracos tão somente a morte é dura. O EXCELSO INVENTO [Bastos Tigre] Homem! Venceste a terra, o ar e o oceano; Dominaste a água, o fogo, a luz, o vento, Puseste asas no corpo: — o aeroplano; Fizeste o rádio: — asas do pensamento. Foste da ameba ao sol: de arcano a arcano, Traçaste as leis do etéreo movimento, Homem divino, ou semideus humano, Corrigiste a Criação com o teu Invento! Mas, ai das tuas invenções supernas! Vivemos como os homens das cavernas, De morte e roubo, corruções e engodos. Quando farás com que da terra farta, Tudo fraternalmente se reparta E o que a terra produz seja de todos? QUANDO ASSASSINAM CRIANÇAS [Camillo de Jesus Lima] Flameja, olho feroz, um sol de brasa. Voa no céu a lúgubre coorte De asas negras de aviões lançando morte. Troa e atroa a metralha e tudo arrasa. Dir-se-ia que Satã, no roçar da asa, Semeara o mal e o horror, de sul a norte. A terra é tinta de um vermelho forte, — Sangue que de mil veias extravasa. Vozes pedem socorro, desvairadas. Pernas sangrentas... carnes laceradas... Trágicos trismos de mil bocas tortas... E a sirene gargalha, em voz tremenda, — Ogre mau e fatídico de lenda, — Vendo as feridas das crianças mortas... PAI JOÃO [Ciro Costa] Do taquaral à sombra, em solitária furna (Para onde, com tristeza, o olhar, curioso, alongo), Sonha o negro, talvez, na solidão noturna, Com os límpidos areais das solidões do Congo... Ouve-lhe a noite a voz plangente e taciturna, Num profundo suspiro, entrecortado e longo... E o rouco, surdo som, zumbindo na cafurna, É o urucungo a gemer na cadência do jongo... Bendito sejas tu, a quem, certo, devemos A grandeza real de tudo quanto temos! Sonha em paz! Sê feliz! E que eu fique de joelhos, Sob o fúlgido céu, a relembrar, magoado, Que os frutos do café são glóbulos vermelhos Do sangue que escorreu do negro escravizado! ANTES PASTOR QUE IMPOSTOR [Cláudio Manuel da Costa] Se sou pobre pastor, se não governo Reinos, nações, províncias, mundo, e gentes; Se em frio, calma e chuvas inclementes Passo o verão, outono, estio, inverno; Nem por isso trocara o abrigo terno Desta choça, em que vivo, coas enchentes Dessa grande fortuna: assaz presentes Tenho as paixões desse tormento eterno, Adorar as traições, amar o engano, Ouvir dos lastimosos o gemido, Passar aflito o dia, o mês, e o ano; Seja embora prazer; que a meu ouvido Soa melhor a voz do desengano, Que da torpe lisonja o infame ruído. ESCRAVOCRATAS [Cruz e Souza] Oh! Trânsfugas do bem que sob o manto régio manhosos, agachados — bem como um crocodilo, viveis sensualmente à luz dum privilégio na pose bestial dum cágado tranqüilo. Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas ardentes do olhar — formando uma vergasta dos raios mil do sol, das iras dos poetas, e vibro-vos à espinha — enquanto o grande basta O basta gigantesco, imenso, extraordinário — da branca consciência — o rútilo sacrário no tímpano do ouvido — audaz me não soar. Eu quero em rude verso altivo adamastórico, vermelho, colossal, d'estrépito, gongórico, castrar-vos como um touro — ouvindo-vos urrar! VOTO DIRETO [Emílio de Meneses] Enquanto o voto, que é função de crítica Alta função do senso e da moral, Da inteligência lúcida e analítica, For exercido por qualquer boçal, Hão de rir os patifes da política Que ensangüentam esta capital, Explorando a ilusão fasa e jesuítica Do estafado sufrágio universal. Por isso ó caro Gil Vidal, emprega O teu talento e a tua sã razão, A ver se se transforma esta bodega. A não ser isso, faça-se a eleição Para evitar depois o pega-pega, No local apropriado: a Detenção... APELO [Eno Teodoro Wanke] Eu venho da lição dos tempos idos e vejo a guerra no horizonte armada. Será que os homens bons não fazem nada? Será que não me prestarão ouvidos? Eu vejo a Humanidade manejada em prol dos interesses corrompidos. É mister acabar com esta espada suspensa sobre os lares oprimidos! É preciso ganhar maturidade no fomento da paz e da verdade, na supressão do mal e da loucura... Que a estrutura econômica da guerra se faça em pó! E que reinem sobre a terra os frutos do trabalho e da fartura! PÁGINA VAZIA [Euclides da Cunha] QUEM VOLTA da região assustadora De onde eu venho, revendo, inda na mente, Muitas cenas do drama comovente De guerra despiedada e aterradora. Certo não pode ter uma sonora Estrofe ou canto ou ditirambo ardente Que possa figurar dignamente Em vosso álbum gentil, minha senhora. E quando, com fidalga gentileza Cedestes-me esta página, a nobreza De nossa alma iludiu-vos, não previstes Que quem mais tarde, nesta folha lesse Perguntaria: "Que autor é esse De uns versos tão mal feitos e tão tristes?" ESCALADA [Geir Campos] Sinto que te horroriza o tom vermelho do sangue em minhas veias a pulsar, e tudo fazes para o descorar noutro que fora como o teu no espelho. Já por te conhecer, o teu conselho eu não aceito e entramos a lutar por nonadas de tempo e de lugar, quebrando magnitudes no joelho. Sem força ou argumento que te acalme, lanças teu ódio a mim feito napalm a encher de cinza uma escalada vã: imperturbado com teu desvario, retempero ao teu fogo um sangue-frio de guerrilheiro do Vietnã. SONETO 321 ESQUERDISTA [Glauco Mattoso] Enquanto os verdadeiros esquerdistas apelam pra guerrilha e pro terror, os intelectuais se dão valor apenas porque pensam nas conquistas. Cantores, professores, jornalistas, o ator, o padre, o músico, o doutor na feira das vaidades dão à cor vermelha vários tons, marchands marxistas. Prestígio tem aquele que se diz das causas populares paladino. Na prática, o guru se contradiz. Anel, carro importado, vinho fino. Ao cheiro do povão torce o nariz, mas brinda ao seu Guevara, ao seu Sandino. SONETO 323 DIREITISTA [Glauco Mattoso] Enquanto os verdadeiros direitistas dão golpes e se instalam no poder, eunucos patrulheiros do lazer censuram filmes, vídeos e revistas. Se julgam da moral especialistas, ditando o que devemos ou não ler. Masturbam-se, porém, sem poder ser na prática os tais sadomasoquistas. Fascismo pela imprensa é rotineiro. Civismo pretextando, educadores defendem a criança o tempo inteiro. Mal sabem os palhaços ditadores que os filhos não se trancam no banheiro e agora acessam tudo, ao vivo, em cores... SONETO 324 CENTRISTA [Glauco Mattoso] "Extremos nunca! Não me comprometa!" Assim diz quem é neutro e não se alia à febre material da burguesia nem ao materialismo de caneta. "Nem a favor, nem contra!" É uma ampulheta parada, cuja areia entope a via e nunca sai do horário: meio-dia. Não caga nem levanta da retreta. "Nem tanto ao mar, nem tanto à terra", diz. "Nem oito, nem oitenta", diz também, alheio à divisão dos dois Brasis. É vaca de presépio e diz amém, até que a voz das urnas ou fuzis lhe jogue em plena cara quem é quem. NESTE MUNDO [Gregório de Matos] Neste mundo é mais rico o que mais rapa: Quem mais limpo se faz, tem mais carepa; Com sua língua, ao nobre o vil decepa: O velhaco maior sempre tem capa. Mostra o patife da nobreza o mapa: Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa; Quem menos falar pode, mais increpa: Quem dinheiro tiver, pode ser Papa. A flor baixa se inculca por tulipa; Bengala hoje na mão, ontem garlopa: Mais isento se mostra o que mais chupa. Para a tropa do trapo vazo a tripa, E mais não digo, porque a Musa topa Em apa, epa, ipa, opa, upa. HUMILDADE... [Hermes Fontes] Rolar... girar... O Mundo rola e gira constantemente, em torno de seu eixo. Rolam astros e tempos... Eu me deixo rolar, também, sem ambição nem mira. Cantem outros de amor ou rujam de ira. Eu não canto, nem rujo... nem me queixo... e vou, mágoas a fora, como um seixo vai, rio abaixo, na água, que suspira. Vai, rio abaixo, na água: e a água o converte em gota, seixo líquido... E, antes isso do que ser pedra grande — bruta e inerte! Antes ser livre seixo, à correnteza, que ser bloco de mármore... ao serviço de Sua Majestade ou Sua Alteza... O SILVÉRIO [Ildásio Tavares] Meu coração é um metal sonante e se eu tivesse trinta corações eu venderia todos. De ilusões jamais viveu quem é comerciante. Patrão sempre há de haver. A cada instante o mundo está trocando seus patrões. Mas o ouro é quem seduz as multidões e das nações é o doce governante. Quero viver a vida. De que adianta mexer a terra e revolver a messe se a merda a mesma merda ficaria? Só o dinheiro a todo o mundo encanta. Se trinta corações hoje eu tivesse, eu juro, todos trinta eu venderia. FATALISMO [J. G. de Araújo Jorge] Se eu for contar, hão de sorrir talvez... — é o fim de um grande amor sereno e nobre que um fatalismo estranho já desfez com razões torpes que este mundo encobre... Morreu... e que se apague de uma vez! — que dele nada subsista ou sobre... — onde a pureza e o amor?... se a vida fez um nascer rico e o outro nascer pobre? Que guardem esse amor. Eu o desconheço. Não tenho em moedas o seu alto preço e sou feliz por ser tão desgraçado. Que o guardem!... Para os ricos! Para os reis! — o amor que eu quero não tem preço ao lado, não tem correntes, nem conhece leis! ZUMBI [Jorge de Lima] Em meu torrão natal — Imperatriz —, nas serras da Barriga e da Juçara, um homem negro, muito negro, quis mostrar ao mundo que tinha alma clara. E tem o sonho que Platão sonhara: — que um sonho nobre não possui matiz. (O sol d'Egina é o mesmo sol do Saara, da Senegâmbia, de qualquer país). Em mil seiscentos e noventa e sete, galgam o topo da montanha a pique, os homens brancos de Caetano e Castro. E o negro herói que não se curva e inflete, faz-se em pedaços para que não fique com os homens brancos, o seu negro rastro... O SEGUNDO IMPÉRIO [José Paulo Paes] Sejamos filosóficos, frugais, Eruditos, ordeiros, recatados, Um casebre, se digno, vale mais Que palácio de alfaias atestado. Sejamos sobretudo liberais E, ao figurino inglês afeiçoados, Tolerantes, medíocres, legais, Por jeito d'alma e por razões de Estado. Sejamos, na cozinha, escravocratas, Mas abolicionistas de salão: A dubiedade é-nos virtude grata. Com ela se garante bom quinhão Dessa imortalidade compulsória Que é justiça de Deus na voz da História. NA REPÚBLICA [Luís Delfino] Queres saber o que anda de verdade Neste nosso país, e de ano em ano? Nosso país, Helena, eu não profano, Mas o Brasil não sente a liberdade. Bárbaro é o povo, espuma de outra idade; Há vão orgulho num republicano: Nos chefes mesmo há gestos de um tirano, E de um César a cega fatuidade. Helena, te direi, por mais que pense, Estou numa república insensata: Meu tipo à Grécia de Platão pertence. Quisera, esbelta e linda aristocrata, Ao pé de mim o artista ateniense, Moldando o ouro, e num Deus dando alma à prata. POVO [Martins Fontes] O povo és tu, sou eu: nós somos povo. E bendigamos a perfeita graça De pertencer à multidão, à massa, Diante da qual me inclino e me comovo. Dela é que há de surgir o mundo novo. E partícula dessa populaça, Sinto que a prepotência me espedaça, Mas do posto em que estou não me demovo. Esqueço a Torre de Marfim da lenda. E, a clarinar, me envolvo na contenda, Ressangrando às pedradas e aos apodos. Nada de caridade ou de piedade. Mas de união ou solidariedade, Sendo todos por um, sendo um por todos. VILA RICA [Tomás Antônio Gonzaga] Obrei quanto o discurso me guiava, Ouvia os Sábios quando errar temia; Aos bons no gabinete o peito abria, Na rua a todos como iguais tratava. Julgando os crimes, nunca voto dava Mais duro ou pio do que a Lei pedia; Mas, podendo salvar o justo, ria, E, devendo punir ao réu, chorava. Não foram, Vila Rica, os meus projetos Meter em férreo cofre cópia d'oiro Que farte aos filhos e que chegue aos netos: Outras são as fortunas que me agoiro; Ganhei saudades, adquiri afetos, Vou fazer destes bens melhor tesoiro. TRÍPTICO NA MORTE DE SERGEI MIKHAILOVITCH EISENSTEIN [Vinicius de Moraes] Camarada Eisenstein, muito obrigado Pelos dilemas, e pela montagem De "Canal de Ferghama", irrealizado E outras afirmações. Tu foste a imagem Em movimento. Agora, unificado À tua própria imagem, muito mais De ti, sobre o futuro projetado Nos hás de restituir. Boa viagem Camarada, através dos grandes gelos Imensuráveis. Nunca vi mais belos Céus que esses sob que caminhas, só E infatigável, a despertar o assombro Dos horizontes com tua câmara ao ombro... Spasibo, tovarishch. Khorosho.
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Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes