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Mário de Miranda Quintana (Alegrete RS 1906-1994)
O maior modernista gaúcho se equipara, como personalidade, a Drummond ou
Bandeira, na minha opinião. No caso do soneto, com uma vantagem: estreou
quase duas décadas depois da Semana desafiando a ruptura de 22 com um
livro de sonetos (quase) ortodoxos, A RUA DOS CATA-VENTOS, que sem favor
comparo, na consagração, a PAULICÉIA DESVAIRADA de Mário ou a FERVOR DE
BUENOS AIRES de Borges livro que só não teve igual projeção porque a
cidade à qual é dedicado (Porto Alegre) não tem o cosmopolitismo de
Buenos Aires ou de São Paulo (ou do Rio, que sedia a Academia). Em todo
caso, Quintana também deixou excelentes exemplos de sonetos
rigorosamente (ou irrigorosamente) modernistas, bem desconjuntadinhos e
falsamente displicentes. Destes vão alguns logo abaixo, seguidos dos da
RUA DOS CATA-VENTOS, meus preferidos:
O AUTO-RETRATO No retrato que me faço traço a traço às vezes me pinto nuvem, às vezes me pinto árvore... às vezes me pinto coisas de que nem há mais lembrança... ou coisas que não existem mas que um dia existirão... e, desta lida, em que busco pouco a pouco minha eterna semelhança, no final, que restará? Um desenho de criança... Terminado por um louco! LUNAR As casas cerraram seus milhares de pálpebras. As ruas pouco a pouco deixaram de andar. Só a lua multiplicou-se em todos os poços e poças. Tudo está sob a encantação lunar... E que importa se uns nossos artefactos lá conseguiram afinal chegar? Fiquem armando os sábios seus bodoques: a própria lua tem sua usina de luar... E mesmo o cão que está ladrando agora é mais humano do que todas as máquinas. Sinto-me artificial com esta esferográfica. Não tanto... Alguém me há de ler com um meio sorriso cúmplice... Deixo pena e papel... E, num feitiço antigo, à luz da lua inteiramente me luarizo... MUNDOS Um elevador lento e de ferragens Belle Époque me leva ao antepenúltimo andar do Céu, cheio de espelhos baços e de poltronas como o hall de qualquer um antigo Grande Hotel, mas deserto, deliciosamente deserto de jornais falados e outros fantasmas da TV, pois só se vê, ali, o que ali se vê e só se escuta mesmo o que está bem perto: é um mundo nosso, de tocar com os dedos, não este onde a gente nunca está, ao certo, no lugar em que está o próprio corpo mas noutra parte, sempre do lado de lá! não, não neste mundo onde um perfil é paralelo ao outro e onde nenhum olhar jamais se encontrará... VIDAS Nós vivemos num mundo de espelhos, mas os espelhos roubam nossa imagem... Quando eles se partirem numa infinidade de estilhas seremos apenas pó tapetando a paisagem. Homens virão, porém, de algum mundo selvagem e, com estes brilhantes destroços de vidro, nossas mulheres se adornarão, seus filhos inventarão um jogo com o que sobrar dos ossos. E não posso terminar a visão porque ainda não terminou o soneto e o tempo é uma tela que precisa ser tecida... Mas quem foi que tomou agora o fio da minha vida? Que outro lábio canta, com a minha voz perdida, nossa eterna primeira canção?! EU SOU AQUELE Eu sou aquele que, estando sentado a uma janela, a ouvir o Apóstolo das Gentes, adormeci e caí do alto dela. Nem sei mais se morri ou fui miraculado: consultai os Textos, no lugar competente o que importa é que o Deus que eu tanto ansiava como uma luz que se acendesse de repente, era-me vestido com palavras e mais palavras e cada palavra tinha o seu sentido... Como as entenderia eu tão pobre de espírito como era simples de coração? E pouco a pouco se fecharam os meus olhos... e eu cada vez mais longe... no acalanto de uma quase esquecida canção... UM DIA ACORDARÁS Um dia acordarás num quarto novo sem saber como fosse para lá e as vestes que acharás ao pé do leito de tão estranhas te farão pasmar, a janela abrirás, devagarinho: fará nevoeiro e tu nada verás... Hás de tocar, a medo, a campainha e, silenciosa, a porta se abrirá. E um ser, que nunca viste, em um sorriso triste, te abraçará com seu maior carinho e há de dizer-te para o teu assombro: Não te assustes de mim, que sofro há tanto! Quero chorar apenas no teu ombro e devorar teus olhos, meu amor... SAUDADE Que me dizias, Augusto Meyer, naquele tempo que não passa, na mesa, junto à vidraça, naquele bar que era um barco? Por ela passavam mares, passavam portos e portos, ali que os ventos ventavam, dos quatro cantos do mundo! O que dizíamos? Sei lá! não falemos em nossas vidas... nem, por nós, se salvou o mundo... Mas, Amigo, eu sei que tenho naquelas horas perdidas o meu ganho mais profundo! ESTE QUARTO... (para Guilhermino César) Este quarto de enfermo, tão deserto de tudo, pois nem livros eu já leio e a própria vida eu a deixei no meio como um romance que ficasse aberto... que me importa este quarto, em que desperto como se despertasse em quarto alheio? Eu olho é o céu! imensamente perto, o céu que me descansa como um seio. Pois só o céu é que está perto, sim, tão perto e tão amigo que parece um grande olhar azul pousado em mim. A morte deveria ser assim: um céu que pouco a pouco anoitecesse e a gente nem soubesse que era o fim... OS PARCEIROS Sonhar é acordar-se para dentro: de súbito me vejo em pleno sonho e no jogo em que todo me concentro mais uma carta sobre a mesa ponho. Mais outra! É o jogo atroz do Tudo ou Nada! E quase que escurece a chama triste... E, a cada parada uma pancada, o coração, exausto, ainda insiste. Insiste em quê? Ganhar o quê? De quem? O meu parceiro... eu vejo que ele tem um riso silencioso a desenhar-se numa velha caveira carcomida. Mas eu bem sei que a morte é seu disfarce... Como também disfarce é a minha vida! PARA TELMO VERGARA Era uma rua tão antiga, tão distante que ainda tinha crepúsculos, a desgraçada... Acheguei-me a ela com este velho coração palpitante de quem tornasse a ver uma primeira namorada em todo o seu feitiço do primeiro instante. E a noite, sobre a rua, era toda estrelada... havia, aqui e ali, cadeiras na calçada... E o quanto me lembrei, então, de um amigo constante, dos que, na pressa de hoje, nem se usam mais como essas velhas ruas que parecem irreais e a gente, ao vê-las, diz: "Meu Deus, mas isto é um sonho!" Sonhos nossos? Não tanto, ao que suponho... São os mortos, os nossos pobres mortos que, saudosamente, estão sonhando o mundo para a gente! IMEMORIAL À noite pervaguei pelo Beco do Império que há cinqüenta anos não existe mais e as horríveis mulheres, nos portais, estavam belas de eu sonhar com elas. Um bêbado me olhava, muito sério. "Ó meu velho Condessa, como vais?" Porém, agora eu é que era o velho e ele nem me conhecia mais... Tolice!... Ele, afinal, disse o meu nome! Ah, sempre que se sonha alguma coisa tem-se a idade do tempo em que as sonhamos: Me esqueci do futuro... e lá nos fomos e a luz da Lua eterna, intemporal juntava numa as duas sombras gêmeas. A RUA DOS CATA-VENTOS: I Escrevo diante da janela aberta. Minha caneta é cor das venezianas: Verde!... E que leves, lindas filigranas Desenha o sol na página deserta! Não sei que paisagista doidivanas Mistura os tons... acerta... desacerta... Sempre em busca de nova descoberta, Vai colorindo as horas quotidianas... Jogos da luz dançando na folhagem! Do que eu ia escrever até me esqueço... Pra que pensar? Também sou da paisagem... Vago, solúvel no ar, fico sonhando... E me transmuto... iriso-me... estremeço... Nos leves dedos que me vão pintando! II Dorme, ruazinha... É tudo escuro... E os meus passos, quem é que pode ouvi-los? Dorme o teu sono sossegado e puro, Com teus lampiões, com teus jardins tranqüilos... Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro... Nem guardas para acaso persegui-los... Na noite alta, como sobre um muro, As estrelinhas cantam como grilos... O vento está dormindo na calçada, O vento enovelou-se como um cão... Dorme, ruazinha... Não há nada... Só os meus passos... Mas tão leves são Que até parecem, pela madrugada, Os da minha futura assombração... III Quando os meus olhos de manhã se abriram, Fecharam-se de novo, deslumbrados: Uns peixes, em reflexos doirados, Voavam na luz: dentro da luz sumiram-se... Rua em rua, acenderam-se os telhados. Num claro riso as tabuletas riram. E até no canto onde os deixei guardados Os meus sapatos velhos refloriram. Quase que eu saio voando céu em fora! Evitemos, Senhor, esse prodígio... As famílias, que haviam de dizer? Nenhum milagre é permitido agora... E lá se iria o resto de prestígio Que no meu bairro eu inda possa ter!... IV Minha rua está cheia de pregões. Parece que estou vendo com os ouvidos: "Couves! Abacaxis! Caquis! Melões!" Eu vou sair pro Carnaval dos ruídos, Mas vem, Anjo da Guarda... Por que pões Horrorizado as mãos em teus ouvidos? Anda: escutemos esses palavrões Que trocam dois gavroches atrevidos! Pra que viver assim num outro plano? Entremos no bulício quotidiano... O ritmo da rua nos convida. Vem! Vamos cair na multidão! Não é poesia socialista... Não, Meu pobre Anjo... É... simplesmente... a Vida!... V Eu nada entendo da questão social. Eu faço parte dela, simplesmente... E sei apenas do meu próprio mal, Que não é bem ou mal de toda a gente, Nem é deste Planeta... Por sinal Que o mundo se lhe mostra indiferente! E o meu Anjo da Guarda, ele somente, É quem lê os meus versos afinal... E enquanto o mundo em torno se esbarronda, Vivo regendo estranhas contradanças No meu vago País de Trebizonda... Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças, É lá que eu canto, numa eterna ronda, Nossos comuns desejos e esperanças!... VI Na minha rua há um menininho doente. Enquanto os outros partem para a escola, Junto à janela, sonhadoramente, Ele ouve o sapateiro bater sola. Ouve também o carpinteiro, em frente, Que uma canção napolitana engrola. E pouco a pouco, gradativamente, O sofrimento que ele tem se evola... Mas nesta rua há um operário triste: Não canta nada na manhã sonora E o menino nem sonha que ele existe. Ele trabalha silenciosamente... E está compondo este soneto agora, Pra alminha boa do menino doente... VII Avozinha Garoa vai contando Suas lindas histórias, à lareira. "Era uma vez... Um dia... Eis senão quando..." Até parece que a cidade inteira Sob a garoa adormeceu sonhando... Nisto, um rumor de rodas em carreira... Clarins, ao longe... (É o Rei que anda buscando O pezinho da Gata Borralheira!) Cerro os olhos, a tarde cai, macia... Aberto em meio, o livro inda não lido Inutilmente sobre os joelhos pousa... E a chuva um'outra história principia, Para embalar meu coração dorido Que está pensando, sempre, em outra cousa... VIII (a Dyonélio Machado) Recordo ainda... E nada mais me importa... Aqueles dias de uma luz tão mansa Que me deixavam, sempre, de lembrança, Algum brinquedo novo à minha porta... Mas veio um vento de Desesperança Soprando cinzas pela noite morta! E eu pendurei na galharia torta Todos os meus brinquedos de criança... Estrada fora após segui... Mas, ai, Embora idade e senso eu aparente, Não vos iluda o velho que aqui vai: Eu quero os meus brinquedos novamente! Sou um pobre menino... acreditai... Que envelheceu, um dia, de repente!... IX (a Emílio Kemp) É a mesma ruazinha sossegada, Com as velhas rondas e as canções de outrora... E os meus lindos pregões da madrugada Passam cantando ruazinha em fora! Mas parece que a luz está cansada... E, não sei como, tudo tem, agora, Essa tonalidade amarelada Dos cartazes que o tempo descolora... Sim, desses cartazes ante os quais Nós às vezes paramos, indecisos... Mas para quê?... Se não adiantam mais!... Pobres cartazes por aí afora Que inda anunciam: ALEGRIA RISOS Depois do Circo já ter ido embora!... X Eu faço versos como os saltimbancos Desconjuntam os ossos doloridos. A entrada é livre para os conhecidos... Sentai, Amadas, nos primeiros bancos! Vão começar as convulsões e arrancos Sobre os velhos tapetes estendidos... Olhai o coração que entre gemidos Giro na ponta dos meus dedos brancos! "Meu Deus! Mas tu não mudas o programa!" Protesta a clara voz das Bem-Amadas. "Que tédio!" o coro dos Amigos clama. "Mas que vos dar de novo e de imprevisto?" Digo... e retorço as pobres mãos cansadas: "Eu sei chorar... Eu sei sofrer... Só isto!" XI (à maneira de Antônio Nobre) Contigo fiz, ainda em menininho, Todo o meu Curso d'Alma... E desde cedo Aprendi a sofrer devagarinho, A guardar meu amor como um segredo... Nas minhas chagas vinhas pôr o dedo E eu era o Triste, o Doido, o Pobrezinho! Amava, à noite, as Luas de bruxedo, Chamava o Pôr-de-Sol de Meu Padrinho... Anto querido, esse teu livro "Só" Encheu de luar a minha infância triste! E ninguém mais há de ficar tão só: Sofreste a nossa dor, como Jesus... E nesta Costa d'África surgiste Para ajudar-nos a levar a Cruz!... XII Tudo tão vago... Sei que havia um rio... Um choro aflito... Alguém cantou, no entanto... E ao monótono embalo do acalanto O choro pouco a pouco se extinguiu... O Menino dormia... Mas o canto Natural como as águas prosseguiu... E ia purificando como um rio Meu coração que enegrecera tanto... E era a voz que eu ouvi em pequenino... E era Maria, junto à correnteza, Lavando as roupas de Jesus Menino... Eras tu... que ao me ver neste abandono, Daí do Céu cantavas com certeza Para embalar inda uma vez meu sono!... XIII Este silêncio é feito de agonias E de luas enormes, irreais, Dessas que espiam pelas gradarias Nos longos dormitórios de hospitais. De encontro à Lua, as hirtas galharias Estão paradas como nos vitrais E o luar decalca nas paredes frias Misteriosas janelas fantasmais... Ó silêncio de quando, em alto-mar, Pálida, vaga aparição lunar, Como um sonho vem vindo essa Fragata... Estranha Nau que não demanda os portos! Com mastros de marfim, velas de prata, Toda apinhada de meninos mortos... XIV Dentro da noite alguém cantou. Abri minhas pupilas assustadas De ave noturna... E as minhas mãos, velas paradas, Não sei que frêmito as agitou! Depois, de novo, o coração parou. E quando a lua, enorme, nas estradas Surge... dançam as minhas lâmpadas quebradas Ao vento mau que as apagou... Não foi nenhuma voz amada Que, preludiando a canção notâmbula, No meu silêncio me procurou... Foi minha própria voz, fantástica e sonâmbula! Foi, na noite alucinada, A voz do morto que cantou. XV (a Érico Veríssimo) O dia abriu seu pára-sol bordado De nuvens e de verde ramaria. E estava até um fumo, que subia, Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado. Depois surgiu, no céu azul arqueado, A Lua a Lua! em pleno meio-dia. Na rua, um menininho que seguia Parou, ficou a olhá-la admirado... Pus meus sapatos na janela alta, Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta Pra suportarem a existência rude! E eles sonham, imóveis, deslumbrados, Que são dois velhos barcos, encalhados Sobre a margem tranqüila de um açude... XVI (a Nilo Milano) Triste encanto das tardes borralheiras Que enchem de cinza o coração da gente! A tarde lembra um passarinho doente A pipilar os pingos das goteiras... A tarde pobre fica, horas inteiras, A espiar pelas vidraças, tristemente, O crepitar das brasas na lareira... Meu Deus... o frio que a pobrezinha sente! Por que é que esses Arcanjos neurastênicos Só usam névoa em seus efeitos cênicos? Nenhum azul para te distraíres... Ah, se eu pudesse, tardezinha pobre, Eu pintava trezentos arco-íris Nesse tristonho céu que nos encobre!... XVII Da vez primeira em que me assassinaram Perdi um jeito de sorrir que eu tinha... Depois, de cada vez que me mataram, Foram levando qualquer coisa minha... E hoje, dos meus cadáveres, eu sou O mais desnudo, o que não tem mais nada... Arde um toco de vela, amarelada... Como o único bem que me ficou! Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada! Ah! desta mão, avaramente adunca, Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada! Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai! Que a luz, trêmula e triste como um ai, A luz do morto não se apaga nunca! XVIII (a F. Soares Coelho) Esses inquietos ventos andarilhos Passam e dizem: "Vamos caminhar. Nós conhecemos misteriosos trilhos, Bosques antigos onde é bom cismar... E há tantas virgens a sonhar idílios! E tu não vieste, sob a paz lunar, Beijar os seus entrefechados cílios E as dolorosas bocas a ofegar..." Os ventos vêm e batem-me à janela: "A tua vida, que fizeste dela?" E chega a morte: "Anda! Vem dormir... Faz tanto frio... E é tão macia a cama..." Mas toda a longa noite inda hei de ouvir A inquieta voz dos ventos que me chama!... XIX (a Moysés Vellinho) Minha morte nasceu quando eu nasci. Despertou, balbuciou, cresceu comigo... E dançamos de roda ao luar amigo Na pequenina rua em que vivi. Já não tem mais aquele jeito antigo De rir e que, ai de mim, também perdi! Mas inda agora a estou sentindo aqui, Grave e boa, a escutar o que lhe digo: Tu que és a minha doce Prometida, Nem sei quando serão as nossas bodas, Se hoje mesmo... ou no fim de longa vida... E as horas lá se vão, loucas ou tristes... Mas é tão bom, em meio às horas todas, Pensar em ti... saber que tu existes! XX (a Athos Damasceno Ferreira) Estou sentado sobre a minha mala No velho bergantim desmantelado... Quanto tempo, meu Deus, malbaratado Em tanta inútil, misteriosa escala! Joguei a minha bússola quebrada Às águas fundas... E afinal sem norte, Como o velho Sindbad de alma cansada Eu nada mais desejo, nem a morte... Delícia de ficar deitado ao fundo Do barco, a vos olhar, velas paradas! Se em toda parte é sempre o Fim do Mundo Pra que partir? Sempre se chega, enfim... Pra que seguir empós das alvoradas Se, por si mesmas, elas vêm a mim? XXI (aos amigos mortos) Gadêa... Pelichek... Sebastião... Lobo Alvim... Ah, meus velhos camaradas! Aonde foram vocês? Onde é que estão Aquelas nossas ideais noitadas? Fiquei sozinho... Mas não creio, não, Estejam nossas almas separadas! Às vezes sinto aqui, nestas calçadas, O passo amigo de vocês... E então Não me constranjo de sentir-me alegre, De amar a vida assim, por mais que ela nos minta... E no meu romantismo vagabundo Eu sei que nestes céus de Porto Alegre É para nós que inda São Pedro pinta Os mais belos crepúsculos do mundo!... XXII Vontade de escrever quatorze versos... Pobre do Poeta!... É só pra disfarçar... Andam por tudo signos diversos Impossíveis da gente decifrar. Quem sabe lá que estranhos universos Que navios começaram a afundar... Olha! os meus dedos, no nevoeiro imersos, Diluíram-se... Escusado navegar! Barca perdida que não sabe o porto, Carregada de cântaros vazios... Oh! dá-me a tua mão, Amigo Morto! Que procuravas, solitário e triste? Vamos andando entre os nevoeiros frios... Vamos andando... Nada mais existe!... XXIII Cidadezinha cheia de graça... Tão pequenina que até causa dó! Com seus burricos a pastar na praça... Sua igrejinha de uma torre só... Nuvens que venham, nuvens e asas, Não param nunca nem um segundo... E fica a torre, sobre as velhas casas, Fica cismando como é vasto o mundo!... Eu que de longe venho perdido, Sem pouso fixo (a triste sina!) Ah, quem me dera ter lá nascido! Lá toda a vida pode morar! Cidadezinha... Tão pequenina Que toda cabe num só olhar... XXIV (a Lino de Melo e Silva) A ciranda rodava no meio do mundo, No meio do mundo a ciranda rodava. E quando a ciranda parava um segundo, Um grilo, sozinho no mundo, cantava... Dali a três quadras o mundo acabava. Dali a três quadras, num valo profundo... Bem junto com a rua o mundo acabava. Rodava a ciranda no meio do mundo... E Nosso Senhor era ali que morava, Por trás das estrelas, cuidando o seu mundo... E quando a ciranda por fim terminava E o silêncio, em tudo, era mais profundo, Nosso Senhor esperava... esperava... Cofiando as suas barbas de Pedro Segundo. XXV (a Ovídio Chaves) Ninguém foi ver se era ou se não era. E isto aconteceu lá no tempo da Era. Mas, no teu quarto havia, mesmo, uma Chymera. De bronze? De verdade? Ora! Que importa? Foi quando Quem Será bateu à tua porta. "Entre, Senhor, que eu já estava à sua espera..." (Naquele tempo, amigo, a tua vida era Como uma pobre borboleta morta!) E Quem Será cumprimentou, falou De coisas e de coisas e de coisas, Bonitas umas, tristes outras como loisas... E todo o tempo em que ele nos falou, A Chymera a cismar: "Como é que Deus deixou Haver, por trás do Sonho, tantas, tantas coisas?" XXVI Deve haver tanta coisa desabada Lá dentro... Mas não sei... É bom ficar Aqui, bebendo um chope no meu bar... E tu, deixa-me em paz, Alma Penada! Não quero ouvir essa interior balada... Saudade... amor... cantigas de ninar... Sei que lá dentro apenas sopra um ar De morte... Não, não sei! não sei mais nada!... Manchas de sangue inda por lá ficaram, Em cada sala em que me assassinaram... Pra que lembrar essa medonha história? Eis-me aqui, recomposto, sem um ai. Sou o meu próprio Frankenstein olhai! O belo monstro ingênuo e sem memória... XXVII Quando a luz estender a roupa nos telhados E for todo o horizonte um frêmito de palmas E junto ao leito fundo nossas duas almas Chamarem nossos corpos nus, entrelaçados, Seremos, na manhã, duas máscaras calmas E felizes, de grandes olhos claros e rasgados... Depois, volvendo ao sol as nossas quatro palmas, Encheremos o céu de vôos encantados!... E as rosas da Cidade inda serão mais rosas, Serão todos felizes, sem saber por quê... Até os cegos, os entrevadinhos... E Vestidos, contra o azul, de tons vibrantes e violentos, Nós improvisaremos danças espantosas Sobre os telhados altos, entre o fumo e os cata-ventos! XXVIII Sobre a coberta o lívido marfim Dos meus dedos compridos, amarelos... Fora, um realejo toca para mim Valsas antigas, velhos ritornelos. E esquecido que vou morrer enfim, Eu me distraio a construir castelos... Tão altos sempre... cada vez mais belos!... Nem Dom Quixote teve morte assim... Mas que ouço? Quem será que está chorando? Se soubésseis o quanto isto me enfada! ..E eu fico a olhar o céu pela janela... Minh'alma louca há de sair cantando Naquela nuvem que lá está parada E mais parece um lindo barco a vela!... XXIX (para o Sebastião) Olha! Eu folheio o nosso Livro Santo... Lembras-te? O "Só"! Que vida, aquela vida... Vivíamos os dois na Torre de Anto... Torre tão alta... em pleno azul erguida!... O resto, que importava?... E no entretanto Tu deixaste a leitura interrompida... E em vão, nos versos que tu lias tanto, Inda procuro a tua voz perdida... E continuo a ler, nessa ilusão De que talvez me estejas escutando... Porém tu dormes... Que dormir profundo! E os pobres versos do Anto lá se vão... Um por um... como folhas... despencando... Sobre as águas tristonhas do Outro Mundo... XXX Rechinam meus sapatos rua em fora. Tão leve estou que já nem sombra tenho E há tantos anos de tão longe venho Que nem me lembro de mais nada agora! Tinha um surrão todo de penas cheio... Um peso enorme para carregar! Porém as penas, quando o vento veio, Penas que eram... esvoaçaram no ar... Todo de Deus me iluminei então. Que os Doutores Sutis se escandalizem: "Como é possível sem doutrinação?!" Mas entendem-me o Céu e as criancinhas. E ao ver-me assim, num poste as andorinhas: "Olha! É o Idiota desta Aldeia!" dizem... XXXI É outono. E é Verlaine... O Velho Outono Ou o Velho Poeta atira-me à janela Uma das muitas folhas amarelas De que ele é o dispersivo dono... E há uns salgueiros a pender de sono Sobre um fundo de pálida aquarela. E há (está previsto) este abandono... Ó velhas rimas! É acabar com elas! Mas o Outono apanha-as... E, sutil, Com o rosto a rir-se em rugazinhas mil, Toca de novo o seu fatal motivo: Um quê de melancólico e solene E para todo o sempre evocativo Na frauta enferrujada de Verlaine... XXXII (a Pedro Wayne) Nem sabes como foi naquele dia... Uma reunião em suma tão vulgar! Tu caíste em estado de poesia Quando o Sr. Prefeito ia falar... O mal sagrado! Que remédio havia?! E como para nunca mais voltar, Lá te foste na tarde de elegia, Por essas ruas a perambular. Paraste enfim junto a um salgueiro doente, Um salgueiro que espiava sobre o rio A primeira estrelinha... E, longamente, Também ficaste à espera (quanta ânsia!)... Mas a estrelinha, como um sonho, abriu, Longe, no céu azul da tua infância! XXXIII (a Reynaldo Moura) Que bom ficar assim, horas inteiras, Fumando... e olhando as lentas espirais... Enquanto, fora, cantam os beirais A baladilha ingênua das goteiras E vai a Névoa, a bruxa silenciosa, Transformando a Cidade, mais e mais, Nessa Londres longínqua, misteriosa Das poéticas novelas policiais... Que bom, depois, sair por essas ruas, Onde os lampiões, com sua luz febrenta, São sóis enfermos a fingir de luas... Sair assim (tudo esquecer talvez!) E ir andando, pela névoa lenta, Com a displicência de um fantasma inglês... XXXIV Lá onde a luz do último lampião Uns tristes charcos alumia embalde, Moram, numa infinita solidão, As estrelinhas quietas do arrabalde... Na cidade, quem é que atenta nelas, Na sua história anônima, escondida? São menininhas pobres às janelas, Olhando inutilmente para a vida... Quando ao Centro descemos à noitinha, Penso às vezes o quanto essas meninas No seu desejo triste hão de sofrer Ao ver os bondes que, do fim da linha, Partem, iluminados como vitrinas, Para a doida Cidade do Prazer!... XXXV Quando eu morrer e no frescor de lua Da casa nova me quedar a sós, Deixai-me em paz na minha quieta rua... Nada mais quero com nenhum de vós! Quero é ficar com alguns poemas tortos Que andei tentando endireitar em vão... Que lindo a Eternidade, amigos mortos, Para as torturas lentas da Expressão!... Eu levarei comigo as madrugadas, Pôr-de-sóis, algum luar, asas em bando, Mais o rir das primeiras namoradas... E um dia a morte há de fitar com espanto Os fios de vida que eu urdi, cantando, Na orla negra do seu negro manto...
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