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Luís Antônio Cajazeira Ramos (Salvador BA 1956)
Sem se prender à rigidez mas rigoroso, como seu conterrâneo Ruy
Espinheira Filho, no trato da palavra e das cargas emotivas, responde
pela atualidade do gênero com caligrafia própria. Abaixo uma amostra:
FREUDIANO Entregue ao tédio, tranca-se no quarto. Transverso ao leito, deita sobre o dorso. Do corpo quedo, pende solto um braço. Fixando o teto, vê seu branco fosco. Volve ao decúbito ventral. Embaixo, deixa a cabeça pendular no espaço. Os olhos sacam, com o olhar parado, que o chão de tacos tem um brilho opaco. Gira, deitando sobre o lado esquerdo. Busca as paredes vê-las como um muro. O quarto inteiro permanece quieto. Encolhe as pernas, cruza os braços justo, encurva as costas, cola o queixo ao peito. Talvez quisesse o colo, o cálido útero. MATRICÍDIO Um crime imaculado, anímico álibi, detinha no gatilho o gesto extremo. Transpirava do cenho um "zoom" do medo, desvendado por quem de nada sabe. No coração noturno, o olhar transverso desfrui cosméticos, atrai sorrisos de meio-fio e beira o precipício. Um travesti provoca seus complexos: "Ah, mamãe, que franzino seu pescoço! Como subir na vida sem pisá-lo? Se o não sugar, onde arranjar encosto?" Coitado, a pão sem água, na prisão, cruzado à vida como um cão sem osso para roer e esconder-se pelo chão. PUNHAL Não quero ver, em teu olhar de vítima, o viés de amor que me pretende algoz de um sofrimento vão que ignoro. Atroz, destruo teu desejo com desídia. Meu dia tinge em negro a noite branca de teu sonho, enlutando-o em solidão. Ah esperança de que eu te fosse a pomba que apazigua a dor... Tola ilusão. Nego-te os arrepios de meus dedos provocantes e táteis em teus pêlos e não faço as carícias que precisas. Não digo nada além de meu silêncio. Nem ao menos desprezo teu tormento, pois sigo estátua fria, sem desdita. DRAMALHETE Reflete em seu olhar a dor que sinto, sem romantismo, como flor de plástico: enxovalhada de cocô-mosquito e amordaçada por um frouxo elástico. Varrendo a vida, jogo a flor no lixo. Vendo seus olhos num mercado negro. Ao pôr-lhe a venda, o vil cambista vesgo vaza-lhe as vistas com seu próprio espinho. A sombra cega, em transparente invólucro, enrijecida, amanha os gestos óbvios dançando um singular sonho de valsa. Meu choro gela a seco aos pés do túmulo. E o humor de adubo do papel de embrulho forra de vida e morte a rosa falsa. FADO DE CONTAS Eu não quero chegar em casa nunca, a caminho, no abrigo de teu colo, sonhando... no balanço do automóvel, que nos leva a um destino inalcançável. O tempo pára, o espaço cristaliza-se, e o carro é lar, e leito, e colo, e beijo... No ocaso de teu beijo, eu me infinito e esqueço da procura em que me perco. De encontro aos vidros, saltam fachos vários, como se objetos de desejos vastos, onde meus gestos não se satisfaçam. Aproxima-se o instante em que me apeio, vai a carruagem, dobra a esquina, e sigo noctívago das horas a teus passos. FEMININO No leque de seus múltiplos aspectos, os mais diversos rostos se revelam, a tez e o tino juntam-se nos gestos, e, aberto o abano, as faces se revezam. Num só papel, envolvem-se as varetas, num todo axial como um botão que flora. Na multíplice estampa, mil facetas: mulher, amiga, mãe, trabalhadora... Quisera vê-la ver-se dividida, soprar cada paleta um tom de brisa independente, ao modo do momento. Mas seu leque de tramas e reflexos desdobra-se reunido num só nexo. Inteira: a mesma face a cada aceno. OLHO NO OLHO Quando eu encaro no olho, ele é tão belo. Será que ele é o espelho onde eu me espero? Talvez seja o punhal de meu anelo. Talvez não seja nada além de um olho. Entretanto, há quem olhe sem pupila, desde a gruta secreta do desejo, onde habitam as sendas do segredo das fontes, esbatendo-se na argila. Muito tempo penara na lacuna trespassada entre fúria e maravilha, enquanto se esgaçava a insana escuna. Mas onde o mar? onde o olho? onde eu? onde outro? Eu, estou só: é o outro apenas vento. No olhar, um sopro. Em volta é só silêncio. LABIRINTO Há dias em que chove (há dias chove assim) como se pétalas (ou mais que flores: flores!) lá do céu (além do Universo sem fim) lançassem pólen. Quem joga sobre mim (a luz divina vive?) a chama (no fogo, Belzebu sobrevive?) do olhar (serei guru do apocalipse?) que no amor se anima? Meus castelos de areia (sem cimento), com muralha de aléias (feita a vento), têm janelas pra dentro (porta afora). (É melhor que me cale!) Digo mais: (será sonho ou verdade?) terei paz (tudo bem: tanto faz) se amar agora. O TEMPLO DE LUXOR Gozo em ti como um Sete de Setembro repleto de alvoradas militares, perfilando-nos tesos, corpo e membros, e uma música hipnótica nos ares. A espada, eu arreganho-a para o norte. Meu grito de Moisés divide o rio. Por entre as duas tábuas, desafio meu mandamento: independência ou morte! As flores e as serpentes (só sementes) fecundam o átrio, como tudo abaixo. Crescente procissão galgando altares. Invado teu palácio de prazeres, colho a medusa, esparjo-lhe perfume. Laureado César, impero augusto em êxtase. ÁGUA-FURTADA Estranha primavera em tons pastéis, feito libélulas noturnas pardas, da cor das asas das formigas-de-asas, trazendo tardes outonais à sala. Gelo quente num pálido mormaço, incerta frente fria da Amazônia, calafrios de um suor escasso insólito, sob a febre de insetos no ar sem vento. Um sol leve se arrisca entre os caqueiros, num apelo de vida logo à frente, mas hoje o céu transita aprisionado. Um telefone toca por engano. Um choro de bebê lembra o abandono. Um deus demente vaga e a dor inventa. SOLEDADE Chove lembrança em gotas sobre as árvores. Folhas de orvalho guardam mimo e grilos. Saltam nos galhos micos e suspiros. O jardim é uma lágrima de mármore. Do caderno de pétalas tristonhas, exalam versos soando um suave aroma. Um leve riso azul cerca a redoma onde o idoso adolesce e o jovem sonha da cor do céu com todas as estrelas, da cor do mar com todos os peixinhos, da cor da terra em tons de primavera. Um olho, só, contempla a natureza. E o mundo inteiro o vê chorar baixinho, detrás do vidro triste da janela. MAUSOLÉU Minha sala de ícones sagrados mantém-se aberta para os visitantes. O pó dos corpos, trajos e calçados não toca nas redomas cintilantes. O taumaturgo Deus reluz no centro, para que todos vejam seu fulgor. Em cada jarro circundante, dentro, um venerável ídolo do amor. Em um, meus pais, sorrindo meigo e terno. Em outros, cada amigo acena a mão. Num cálice especial, meu par eterno. Num canto escuro, a poeira toma assento junto aos cacos de um velho vaso vão, de onde escapei, por pouco, há muito tempo. A OUTRA FACE Dentre os últimos seres do planeta, quiçá seu único sobrevivente, a barata (que nojo persistente!) resiste e perambula na sarjeta. Talvez por isso é que me arraste inerme, em meio à escuridão da subserviência, marcado ao brilho e quase transparência da espúria pústula de inseto, ou verme. De tanto que me apego à vida, exposto à cusparada que me rasga o rosto, eu lambo a sangue frio o escarro escuro. Perdôo cada pedra que me atinge, pois, vítima da lama que me tinge, serei herói, quem sabe o Deus futuro. OLHO-DE-BOI Grácil película de bombatom nos lábios cárneos, úmidos à língua, provoca, ao turbilhão de um megaton, vazão que exulta e esvai, de abrupta a exígua. No início da jornada, a jóia é bruta. Ao longo da batalha, a mira é exímia. No frêmito da fúria, a fera é símia. Ao fim do túnel, luz a calma arguta. Um cavalo de Tróia de áurea elena presenteia o delfim do reino augusto, bufando, em turfas, fungos de alma plena. Quarenta séculos contempla o justo, lá do alto da pirâmide serena, enquanto a cabra-cega prega um susto. ALQUIMIA Seguindo o rito desde seu começo, diversos fluidos foram misturados e criteriosamente adicionados durante as várias fases do processo. A bula empunha à fé ritual secreta não somente os reagentes e a seqüência. Ditava a imprescindível procedência, o esmero da ocasião propícia, etc. Em meio à expectativa de sucesso, cercada do receio de fracasso, na tensa liturgia oral do culto, desceu num raio a força do Universo. Logo após a explosão, surgiu, no espaço, o espectro do aprendiz alçado a Bruxo. ESCONDE-ESCONDE Sob a sombra dos pais e das casas, descobriam, com pernas trementes, como as curvas do corpo eram quentes e a inocência da vida era ousada. Bolinavam seus próprios brinquedos, mutuamente esfregavam seus dons, todos juntos no jogo. Ou só dois: mais desejo, mais perto, mais beijos. O segredo dos cúmplices nus desafiava padrões e tabus de seus pais, que esqueceram de tudo: já não sabem brincar de casinha; não notaram na vida a poesia e pecaram por serem adultos. CHICOTINHO-QUEIMADO Não brinco mais de esconde-esconde só, pois quando me procuro é vão: não me acho. Escondo-me tão bem dentro do armário, que o dia passa e não desato o nó. Achar parceiro não é nada fácil. É mais difícil do que o jogo aberto. Aqui do esconderijo, o que é que enxergo? Um mundo de cabeça para baixo! E na hora H? ...Nem sei o que fazer, pois se correr o bicho vai pegar, e se ficar o bicho vai comer. No par-ou-ímpar da picula, em xeque, eu viro papagaio-carcará, que pega, mata e come: ou dá, ou desce! APELAÇÃO Melancia amarrada no pescoço, pintei a bunda de vermelho e fui... Embora quem me visse risse um pouco, faltaram palma e vaia a que fiz jus. Essa gente insensível nem me nota! Sou como um zero à esquerda, sem valor. Mas deixe estar, ingratidão! Não dou bola ao azar, que o mundo dá mil voltas. Meu sucesso fugiu por entre os dedos, a derrota sorriu meio amarelo, mas a vida seguiu seu rumo em frente. Não dou ponto sem nó: depois da queda, sacudo o pó e mando tudo à merda, inconstitucionalissimamente. ÓPERA-BUFA Meu coração tem uma alegre festa, onde cantam e dançam fantasias, requebrando malícia e carne fresca, entre balangandãs e alegorias. Lá vai o carnaval em cada esquina... Morri: não corro atrás do trio elétrico. Algo ruim da cabeça serpentina, meio doente do pé, sou mau sujeito. Passa o cortejo fúnebre do samba... O bumbo marca a vil, vã, chã demência de um povo equilibrista em corda bamba. Atrás de si, as cinzas desse imbróglio catártico, na hipnótica cadência que ascende ao pelourinho do sambódromo. TRANSCORPORAÇÃO Quem sou eu, que este sósia se me inscreve entre as quatro paredes de seus versos? Mas que eu sou eu, que não me caibo nele e de seus versos pulo pro universo? Sou aquele que beija seus amores. E os amores que beijo, serão meus? Eu, que beijo os amores dos leitores, sou o autor? o leitor? ninguém? sou eu? Um eu fantástico eu me sinto agora. Um eu de fato, em fábula ou memória, desentranhado do lugar-comum. ..Não sou é nada além de um eu sem nome, um eu que se constrói de restos do homem, que (seja lá quem for) é qualquer um.
Û Ý ´ ¥ Ü | * e-mail: elson fróes |