|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Abgar de Castro Araújo Renault (Barbacena MG 1901-1995)

Personificando o verdadeiro poeta político, representou desde o modernismo em Minas até o Brasil na UNESCO. Compativelmente acadêmico e ministro da educação, conciliou no verso a renovação do soneto e sua raiz mais clássica: sua obra-prima é o ciclo de "sonetos antigos" em que, num "portuguez archaico", reconstitui uma "orthographia" que não era "etymologica" nem "phonetica" e uma "thematica" do mais depurado "lyrismo". Alguns exemplos desse "authentico thesouro litterario" que tanto me instigaram na época em que editei o JORNAL DOBRABIL e "adoptei" aquela "anachronica escripta":


III SONETO ANTIGO

Em vam apuro a minha fortitude,
Senhora, por vencer o meu Amor.
Debalde o vosso olhar, que assi me illude,
Ao meu denega o bem de seu fulgor.

Que quanto mais de vós se desillude
Meu tino vam, mais eu chego a suppor
Que tal fereza hum dia se demude,
E que peneis tambem da mesma dor.

Mas he sem cura o mal que anda a pungir-me:
Que, si agora padece este meu ser,
Porque eu vos vejo contra mi tam firme,

O dano de querer-vos sem vos ter,
Em vos sentindo minha, ha de ferir-me
O mal de ter-vos sem vos merecer.


VI SONETO ANTIGO

Se me consume a vossa malquerença,
Em pó volvendo o orgulho de meu ser,
Elle, desvaleroso, se compensa
Na só 'sperança de vos commover.

Que Amor, já surdo e cego de nascença,
Demais de nada ouvir & nada ver,
Ferindo-se a si proprio, nada pensa,
E nada dissuade o seu querer.

Mal que façamos cobra-nos o Fado;
E, embora tanto mal me vós façaes,
Heis-me aqui nesta magoa sepultado.

Senhora, a Deus pedindo, co os meus ais,
Que não pagueis, hum dia, redobrado,
Todo o desprezo com que me mataes.


VII SONETO ANTIGO

He de tal arte a Vida em seus extremos,
E de tal sorte o seu enlevo cansa,
Que do que desejamos nada temos,
E o que temos olhamos sem confiança.

Buscamos sempre o que jamais teremos,
Pois que, materia feita huma esperança,
Do que lográmos nada mais queremos,
Que illusão desillude sem tardança.

Assi que eu sempre traga a alma ferida
Desta, que agora crua me tortura,
Tam despiedosa & tam gravosa dor,

Pois que me val vos ter a vós na Vida,
Sem o poder, Senhora, que he loucura,
De ao Tempo liar huma illusão de Amor?


VIII SONETO ANTIGO

Senhora que fazeis meu perdimento,
Dama do meu Destino de pezar,
Bem sei que embalde soffro & me lamento,
Por esse bem que he o mal de vos amar.

Bem sei que este mofino acabamento,
Vós, que o podeis, não n'o quereis sarar;
E assi, mercê de vós, meu dano augmento,
A minha dor tornando meu sonhar.

Se preso estou agora, & desprezado,
Pezar de mi, pezar de vós, porém,
Ha de morrer Amor tam mal sonhado,

Morto da morte que de vós lhe vem:
Que se bem vos não sabe o meu agrado,
Inda menos a mi vosso desdém.


X SONETO ANTIGO

Se acaso o olhar nos vossos olhos ponho,
E os suprehendo na minha face ruda,
A minha vida toda em luz se muda,
Porém me sinto sempre mais tristonho.

Se cuido que he tambem vosso o meu sonho,
Por mais que o meu pensar engane & illuda,
De alma de todo em todo escura & muda,
Tanto de vós mais longe me supponho.

He que, Senhora, se, qual sois, tam fria,
Assi mudaes o meu Destino féro,
Matando-me de dor, ou de alegria,

Dizei, Senhora: deste Amor sincero,
Da natureza minha que seria,
Se tanto me quizéreis qual vos quero?


XI SONETO ANTIGO

He mester ter de heroe a compostura,
Pera trazer risonho & leve o aspeito,
E a alma leda conter dentro do peito,
Senhora, deante a vossa fermosura.

He mester, por mirar-vos com brandura,
E o ser a vós não n'o sentir sujeito,
A defensão fazer-lhe de tal geito,
Que assi serena seja quam segura.

Que eu, Senhora, de mi, dês a triste hora
Que na alma tive o vosso olhar tam lindo,
Ando tam cégo, tam perdido ando,

De maneira ferido estou agora,
Que nem sei se he em prantos que ando rindo,
Ou se he em risos que ora estou chorando.


XII SONETO ANTIGO

Senhora minha, nunca vos eu disse
Que soffro dês que a vós cheguei a ver-vos,
Quanto o de outr'ora coração felice,
Por mudar-se, mudou meu juyzo & nervos.

Que, em verdade, se acaso vos não visse,
Não sentira o desejo de dizer-vos
Que minha magoa van, minha estultice
Só nascem do meu mal de bemquerer-vos.

Mas ai de mi! se vós soubéreis quanto
Padeço, por querer-vos, & não digo,
E tudo que contenho no meu pranto,

Vós, que vos rides de meu Fado imigo,
Em vendo minha dor & meu quebranto,
Bem certo houvéreis de chorar comigo.


XIV SONETO ANTIGO

Senhora, aqui me heis que, arrependido,
De giolhos ao castigo me offereço,
E que espero, Senhora, sem gemido,
Por meu crime pagar a grave preço.

Se tanto amaro travo hei já eu tido,
Tanto menos de mi me compadeço;
Pois que, 'té mais soffrendo que hei soffrido,
Não soffrêra por vós quanto mereço.

Dae-me, Senhora, móres soffrimentos
N'outro fado mais diro & mais imigo;
E os danos todos que me fôrem dados,

Tresdobrae-os em novos pungimentos,
Que inda assi não terei assás castigo
Da graveza sem fim de meus peccados.


Outros sonetos de Abgar Renault:


ALEGORIA

Em vão busco acender um diálogo contigo:
a alma sem tom da tua boca de água e vento
despede cinza, névoa e tempo no que digo,
devolve ao chão o meu mais longo pensamento,

e entre cactos estira esse deserto ambíguo
que vem da tua altura ao vale onde me ausento,
procurando o teu verbo. O silêncio, investigo-o,
e ouço o naufrágio, o vácuo e o deperecimento.

Sonho: desces a mim de um céu de algas e rosas,
falas às minhas mãos vozes vertiginosas,
e palavras de flor no teu cabelo enastro.

Desperto: pairas ainda em silêncio e infinita:
meu ser horizontal chora treva e medita
tua distância, teu fulgor, teu ritmo de astro.


ENCANTAMENTO

Ante o deslumbramento do teu vulto
sou ferido de atônita surpresa
e vejo que uma auréola de beleza
dissolve em lua a treva em que me oculto.

Estás em cada reza do meu culto,
sonhas na minha lânguida tristeza,
e, disperso por toda a natureza,
paira o deslumbramento do teu vulto.

É tua vida a minha própria vida,
e trago em mim tua alma adormecida...
Mas, num mistério surdo que me assombra,

Tu és, às minhas mãos, fluida, fugace,
como um sonho que nunca se sonhasse
ou como a sombra vã de uma outra sombra...


HUMILDADE

Minha humildade de água me trouxera
ao mais íntimo pó dos pós de ti
e rira à desatada primavera
os ouros e cristais que ela sorri.

Trajada de urze, barro, líquen e hera,
ficara em desbotado e eterno aqui,
marcando, à tinta de ar, pelo ar a espera
de se entreabrirem tempestades e

silêncios para os lumes do teu passo.
Modelara-me em terra ou limo crasso
para ser teu desdém, objeto ou chão.

Vivera no final de selva e furna,
tornara o coração ilha noturna,
século, inverno a dormir o teu clarão.


SONETO DOS OLHOS

Tu és teus olhos cúmplices e graves.
Neles murmuram apagadas vozes,
dormem o tacto dessas mãos velozes
e o peso oculto de pejadas naves

cortando águas convulsas, antes suaves,
cheias de malferidos albatrozes;
e, entre chamas sem cor, passos ferozes,
há uma flor soterrada a sete chaves.

São súbitos teus olhos como facas
desembainhadas fulgurantemente
nos avessos das tênebras opacas.

Atrás de suas pálpebras incertas
tacteia cega luz um poço ardente,
correm abismos, erguem-se florestas.


SONETO DO EQUÍVOCO

Como se eu fosse este ar que atravessaste,
conservo em mim o rastro reticente
de linhas de água, fogo, asa e serpente,
composição de Deus erguida em haste.

Como se fosse o rio que cruzaste,
sonho uma barca de ouro transcendente,
que me navega tempestuosamente
com seus remos de música e contraste.

Como se fosse o espelho em que te viste,
fende-se em minha sombra um cristal triste.
(Flores e ninhos buscam tua mão.)

Como se fosse o deus a quem amasses,
compreendo o fluido rosto de mil faces,
do alto leio a raiz no último chão.


DESESPERO

Fulgura o luar, e lembra-me que existes:
uma lança me fura lado a lado,
e sinto-me deserto e embebedado
das bebidas mais pálidas e tristes.

Doem o ar, o silêncio, a hora pendida
— tal de invisível haste incerta rosa,
e a paisagem copia, silenciosa,
o avesso desta vida numa vida.

Fecho os túneis das noites e dos dias,
neles me morro e enterro sem morrer.
As gastas mãos de tudo estão vazias,

pesam os pés de pedra e a alma cadente,
enchem-se os olhos lancinantemente
da cegueira mortal de não te ver.


SOB O TEU SILÊNCIO

Não me doeria ser o teu ditado,
e só pelos teus olhos tudo ter;
sob os teus pés sentir-me derramado
como seu chão de afeto e de prazer;

ser em teu sonho gesto de passado,
buscar teu sol e lua e dissolver-
me, pelo seu excesso fulminado;
ser fragmento da sombra do teu ser:

ainda formas de luz inventaria,
frutos no céu, manhãs na ramaria,
montanhas de ouro, lira à flor do mar,

se o sim nem não, sem letras e sem boca,
em que te enterras não me fosse a oca
morte onde murcho e cevo a dor de amar.


SONHO DE VERÃO DE UMA NOITE

Se eu encontrasse o til de uma intenção
em resto de unha tua ou num só fio
solto dos teus cabelos, meu vazio
fluíra em ouro sobre a tua mão,

pusera chama à fria imensidão
do teu reinado e mar fizera o esguio
sonho de águas em que arfa o teu navio,
entre âncoras e velas de evasão,

sob a avidez da carga prisioneira;
do fundo dos teus olhos sem desígnios
surgira a grave noite que tu és;

esquecerias a última fronteira
e atirarias aos meus lagos ígneos
o universo que sobe dos teus pés.


SOLIDÃO

O rio se entristece sob a ponte.
Substância de homem na torrente escura
flui, enternecimento ou desventura,
misturada ao crepúsculo bifronte.

Antes que débil lume além desponte,
a sombra, que se apressa, desfigura
e apaga o casario em sua alvura
e a curva esquiva e sábia do horizonte.

Os bois fecham nos olhos os arados,
o pasto, a hora que tomba das subidas.
Dorme o ocaso, pastor, entre as ovelhas.

Sobem névoas dos vales fatigados
e das árvores já enoitecidas
pendem silêncios como folhas velhas.


SONETO AO POETA CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Amo-te o engenho subversivo e grave,
que levedou seu próprio pão de vida
e nele talha a forma apetecida:
tarde de chuva, sol, sal, pouso de ave.

Amo-te o verbo extremo de suicida,
essa implícita música sem clave,
pélago no recôncavo da nave:
tua poesia isenta e acontecida.

Amo-te a destra, que nos ares lança,
de dentro da tua arca, a nua herança:
os teus conflitos de esplendor e bruma,

teus peixes, teus demônios, tua ordem,
— claros enigmas que no tempo acordem
teu cosmos e teu caos de pedra e espuma.


SONETO DA INSÔNIA

Um emergente vértice resiste.
Sua luz contagia a escuridão
onde os teus olhos se consumirão
reconstruindo o silêncio onde subsiste

a furna de que, um dia, tu partiste.
Com tua carga de fulguração,
viajas a treva, e uma conflagração
te arrasta ao mesmo cais aceso e triste.

Quando derivas, lusco e fusco, à borda,
diálogos cindem queda e evanescência,
o desfazer se esfaz em refazer.

No combate que incende a noite e a acorda,
não terás teu quinhão de morte e ausência
e és improvável como o amanhecer.


SONETO ONÍRICO

No rumo do corrupto firmamento
a chuva chove a sua chuva inata
e o cavalo de som de negro vento
verticalmente voa e se arrebata.

Entra a palavra azul num pensamento,
e um silêncio de vozes se desata;
crescem mares no tanque do momento,
surge de cada canto uma cascata.

Sombras intersexuais desfilam nuas,
carregando verônicas de luas
nas caprichosas mãos de lírios e árias.

Prados viúvos se vestem de namoro
e abrem as flores guarda-chuvas de ouro
sob o sol das piscinas planetárias.


A PEDRO NAVA (para Nieta)

Ó caudaloso Nava, que fizeste
do fino fio flébil desta vida?
Quem desvestiu assim a tua veste?
Quem desfez tua fronte maldormida?

Que raio armou a tua mão perdida
para abrir o caminho fundo e agreste
da sem retorno pálida partida,
sem sul, sem norte, sem oeste ou leste?

Mil vozes clamam pela tua volta,
novamente a pedir o vasto rio
do teu verbo; mas que alta e nova ciência,

que portão, que janela sem escolta
traduzirão ao teu ouvido frio
o estandarte de dor da tua ausência?


SOB A ROCHA

Não riscarás no tímido cristal
a sombra de um olhar ou voz ou dedo;
não será devolvido o teu segredo,
nem teu céu, nem a flor de mel e sal

nascida no silêncio mineral
da tua noite de água e de penedo,
— vida que se buscou tão tarde e cedo
na luz do espelho sobrenatural.

O teu rosto, se próximo, escurece
a verde limpidez lunar que desce,
e o teu gesto de posse é velha mão

que sob a rocha tácita sepulta
restos e erros de sol, a concha oculta,
pensamentos de cal, de chuva e não.


ALTA NOITE (II)

Quantos beijos ou passos ou minutos
restarão entre ti e os teus ponteiros?
E que deles farão dedos astutos,
ansiosa boca, pés que andam certeiros?

Das tuas nuvens quem serão herdeiros?
No arco-íris entre relva e ouro de frutos
quem pascerá seus olhos forasteiros?
Terra, folhas e líquens já corruptos

será teu corpo em férias, neutro o sexo,
e desmanchado o involuntário nexo
da insciente máquina de ser e amar.

E que se tornarão teu magro riso,
teu som de sombra, tanto doer sem viso,
suja tristeza de promíscuo mar?


PARÊNTESES

(Mas quatrocentos anos de te doeres
não te dariam fruto, nem coroa,
nem pó sutil dos pés do ser dos seres
ou folha da floresta onde ele voa.

Abrires-te ou fechares-te ou romperes
o frio céu, que as vidas afeiçoa,
não movera pesares, nem prazeres
na estrela, esfinge, pássaro, leoa.

Há infinitos pela estrada morta
entre os olhos e o olhar, e a oclusa porta
é um pensamento de deserto e vento.

Há um pêndulo parando de cansaço,
uma espiral que tenta o esquivo espaço
e, antes do chão, este esvaecimento.)


SONETO DAS PERGUNTAS

Por que uma vária vela vento em fora
me arrasta para além daquela curva,
e esta âncora, revendo atrás e aurora,
prende meu lenho sob uma água turva?

Quando eu não for, como será o mundo?
Houvera o mesmo chão, se eu não houvesse?
A reta mão não toca o céu profundo;
como o tocara a voz de oblíqua prece?

Por que sou mais mortal e mais ausente
na distância fechada à minha frente?
Quem me esvaziou de mim, de hoje e de aqui?

Entre que relva, em que porão nefando
ou absurda cisterna está vagando
aquele que já foi — e que perdi?


PARA ESQUECER

Para esquecer as nuvens cor de fruto,
o acenar do crepúsculo absoluto
e este ficar-me em restos retardios,
a minha sombra escrevo entre dois rios.

Cada minuto é o último minuto,
e com meus olhos e meus dedos luto,
e de cegueira teço ávidos fios
sobre pêndulos, pedras, poços frios.

A vida cabe em minha boca ardente,
e eu a soletro, em fuga, no acidente
de disparadas linhas. E o que existe,

o que de meu mais fundo mim afogo
sob a ilusão de verbo, rosa e fogo
é engano, rastro e som de um homem triste.


CONSTRUÇÃO

Sou de mim o incontável arquiteto:
da matéria de heterogêneo espaço
portas, paredes e alicerces faço,
de tudo e nada crio torre e teto.

Com carne, sonho, penas, cal, projeto
meu fazer-me, pedaço por pedaço,
e inscrevo nas colunas deste paço
as flores do meu íntimo alfabeto.

Aumento-me na sombra, e com o destroço
de cada dia nutro o meu emboço,
pintando-o de altas águas em recuo.

As horas bebo, iludo vale e cimo;
de pedras tristes e de amargo limo
(dôo e) postumamente me construo.


SONETO PÓSTUMO

Após trinta anos, séculos ou dias,
encontro-me, e não mais me reconheço:
as duas sílabas do sonho, frias,
dormem silêncio no meu lábio espesso;

o vento e a chuva contam-me o endereço
de um oblíquo país de alegorias,
em que formas e cores pelo avesso
falam comigo brumas e invernias;

imóveis rios, negros, negros cactos,
carbonizadas fontes, mortos tactos
copio em páginas de gelos ou

soletro as letras do jamais (sem vê-las)
e a solidão do sol e das estrelas:
sem pés caminho e ausentemente sou.


EPÍLOGO

No inverno sem paredes desta vida,
que chuva morta, dentro do ar parada,
e que distância mal anoitecida
pensam meus pensamentos de mais nada?

Talvez esperem o outro meu suicida,
(o que ficou no gume da escalada)
e espelhos da palavra já vivida,
com seu dia, seus olhos, sua espada,

os frutos que tingiram o aço da hora,
sua pronúncia de mistério e aurora.
Saltam corcéis de escuro coração

num galope de nuvens na espessura:
rola todo o desfeito céu da altura
e se organiza em chão de outrora e chão.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes