|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Antônio Carlos Secchin (Rio de Janeiro RJ 1952)

Pondo-se à vontade tanto no ensaio quanto na poesia, Secchin vale-se da tarimba acadêmica ao sonetar entre o rigor parnasiano, a vaguidão simbolista, a displicência modernista e o ecletismo pós-moderno. Consegue assim glosar ou amaneirar poetas vivos e mortos, mesclando toques comoventes e pessoais com tiques satíricos e repiques paródicos. Pela amostra abaixo se tem uma idéia de sua familiaridade com os sonetistas e com o próprio soneto.


CISNE (à memória de Cruz e Souza) (a Iaponan Soares)

Vagueia, ondula, incontrolado e belo,
um cisne insone em solitário canto.
Caminha à margem com a plumagem negra,
em meio a um bando de pombas atônitas.

Encontra um outro, de alvacentas plumas,
um ser sagrado no monte Parnaso,
e enquanto o branco vencendo a bruma
ele naufraga, bêbado de espaço.

Em vão indaga, o olhar emparedado
na vertigem de luz que o sol encerra:
"Se em torno tudo é treva, tudo é nada,

como sonhar azul em outra esfera?"
Negro cisne sangrando em frente a um poço.
Do alto, um Deus cruel cospe em seu rosto.


TRIO (a Rita Moutinho)

Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac,
que no Parnaso ecoa como voz primeira,
já sabe que bem cabe em verso alexandrino
o poeta que logrou vestir-se de palmeira:

Antônio Mariano Alberto de Oliveira,
que esculpe passo a passo exótica colmeia,
inapelavelmente encaixa em doze sílabas
Raimundo da Mota de Azevedo Correia.

Jubilosos na métrica do próprio nome,
aprisionam em seus versos as pombas e estrelas,
apostando que em jaula firme e decassílaba

não haverá qualquer perigo de perdê-las.
Adestram a voz do verso em plena luz do dia.
À noite a fera rosna a fome da poesia.


MULHERES (a Elódia Xavier)

Eugênia sobe à cena, e então recita
cachoeiras de paixão pelo poeta,
enquanto em águas frias de loucura
Ismália ao mesmo tempo é alvo e seta.

Paraguaçu nadando se despede
da terra onde Iracema se perdeu.
Traídas todas elas. São mulheres,
milhares de Marílias sem Dirceu.

Passam, bordam, na beira do improvável.
Clarice aguarda a Luz inabordável.
Madalena combate a morte imensa

infiltrada em seu sonho de jardim.
Guerreiras no desejo e desavença,
multiplicadamente Diadorim.


"A LUZ MACIÇA..." (a Ruy Espinheira Filho)

A luz maciça desse dia se prepara
para deter no corpo vivo de um momento
o que vai nele como coisa inacabada,
desejo ríspido de escuro esquecimento.

Tudo está mais além e aquém do que se fala,
a palavra encaminha ao salto o que é de dentro,
e, atônita, mal e bem minha mão avara
crava marcas de sal no suor de teu centro.

Pétala e puta, dobra de um desejo tenso
na margem do fogo impaciente que dispara
sua fria fumaça nas fissuras do cimento.

Sonhos de sonho de sim e dor misturada,
voragem do gozo de um não à beira-nada,
até tudo virar poeira ou monumento.


"REPARA COMO A TARDE É TRAIÇOEIRA" (a Luís Antônio Cajazeira Ramos)

Repara como a tarde é traiçoeira:
dentro dela se abriga o desengano
desse dia que acabou sendo somente
um resto de boneco, arame e pano.

Previamente me abraçam a noite e o dano
de tudo que não foi compartilhado
senão como um pão velho sobre a mesa
na espera seca e vã do inesperado.

Não me consola a música do mundo,
nada espero que acene em meu socorro;
se a imagem do presente paralisa,

de passado é bem certo que eu não morro.
Indiferente à sorte ou ao inferno,
não tenho tempo para ser eterno.


"A CASA NÃO SE ACABA..." (a Miguel Sanches Neto)

A casa não se acaba na soleira,
nem na laje, onde pássaros se escondem.
A casa só se acaba quando morrem
os sonhos inquilinos de um homem.

Caminha no meu corpo abstrata e viva,
vibrando na lembrança como imagem
de tudo que não vai morrer, embora
as maçãs apodreçam na paisagem.

Sob o ríspido sol do meio-dia,
me desmorono diante dela, e tonto
bato a porta de ser ontem alegria.

O silêncio transborda pelo forro.
E eu já não sei o que fazer de tanto
passado vindo em busca de socorro.


"ESTOU ALI..." (a Alberto da Costa e Silva)

Estou ali, quem sabe eu seja apenas
a foto de um garoto que morreu.
No espaço entre o sorriso e o sapato
há um corpo que bem pode ser o meu.

Ou talvez seja eu o seu espelho,
e olhar reflete em mim algum passado:
o cheiro das goiabas na fruteira,
o murmúrio das águas no telhado.

No retrato outra imagem se condensa:
percebo que apesar de quase gêmeos
nós dois somos somente a chama inútil

contra a sombra da noite que nos trai.
Das mãos dele recolho o que me resta.
Eu o chamo de filho — e é meu pai.


"DESMORONAM PROMESSAS E MISÉRIAS" (a André Seffrin)

Desmoronam promessas e misérias,
pedaços da palavra e da memória,
e o sol da força bruta da matéria
escorre para o ralo como escória.

Os ratos já devoram toda história,
e avançam contra os cacos do presente,
seus dentes decompondo em pó a glória
de um futuro podado na semente.

Do muito que sonhamos talvez sobre
o sopro de uma aurora que nos leva
além de nossa dor, mas não descobre

a flor que pulsa e arde em meio à treva.
Depois, virando cinza o que é graveto,
não sobrará nem mesmo este soneto.


SETE ANOS DE PASTOR (a Ângela Beatriz de Carvalho Faria)

Penetro Lia, mas só Raquel me move,
e faz meu corpo encontrar toda alegria.
Se tenho Lia, a pele não navega
em nada além de nada em névoa fria.

Sete anos galopando em Lia e tédio,
sete anos condenado ao gozo escuro.
Raquel me tenta, e se me beija Lia
minha boca é não, minha mão é muro.

Labão, o puto, perdoai-me esse instante,
adoro a dor que doer em minha amante.
Vou cravar-lhe um punhal exausto e certo,

doar seu sangue ao livro e à ventania.
Quieta Lia será terra em que os cavalos
vão pastar, sob a serra e o deus do dia.


SONETO DAS LUZES (a Paulo Pereira)

Uma palavra, outra palavra, e vai um verso,
eis doze sílabas dizendo coisa alguma.
Trabalho, teimo, limo, sofro e não impeço
que este quarteto seja inútil como a espuma.

Agora é hora de ter mais seriedade,
para essa rima não rumar até o inferno.
Convoco a musa, que me ri da imensidade,
mas não se cansa de acenar um não eterno.

Falar de amor, oh meu pastor, é o que eu queria,
porém os fados já perseguem teu poeta,
deixando apenas a promessa da poesia,

matéria bruta que não coube no terceto.
Se o deus flecheiro me lançasse a sua seta,
eu tinha a chave pra trancar este soneto.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes