|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Júlio César da Silva (Eldorado SP 1874-1936)

Eventual e parcialmente enquadrado no simbolismo, o jornalista e crítico também se encaixa entre os parnasianos. Seus sonetos, criteriosos na técnica e criativos na temática, mereceriam maior atenção. Seu nome foi pouco notado, talvez por ser comum demais entre imperadores e plebeus. Quem sabe se o autor escolhesse um pseudônimo tipo Nero de Lira ou Calígula dos Passos seria mais reconhecido...


FRASES FEITAS

O "Vi-te e amei-te", como, geralmente,
Hoje se diz, a ninguém mais persuade:
Perdeu de vez toda a sinceridade
Porque anda na expressão de toda gente.

Com tal ouvir não há quem se contente
Nem de tal coisa não se desagrade:
São palavras vazias de verdade
Que a boca diz e o coração desmente.

E pois não digo que teu gesto aceite
Este amor, que arde em mim como uma lava,
Este amor, que é meu mal e meu deleite;

Do delito de crer-me essas mãos lava,
Que te não direi nunca: "Vi-te e amei-te",
Porque antes de te ver eu já te amava.


CARTAS VELHAS

Abro os maços de cartas, cinta a cinta,
Examino-as, folheio-as, uma a uma;
No papel, que um bolor vago ressuma,
Mal forma as letras a apagada tinta.

Todas elas que valem hoje em suma?
Qual delas o passado evoca e pinta,
Se a luz, que as aquecia se acha extinta
E a alma, que as perfumava, as não perfuma?

Perdido todo o seu aroma antigo,
O calor que as ditou e o forte encanto,
Só por piedade as tenho hoje comigo;

Fecho-as de novo e ponho-as no seu canto!
Cada maço de cartas é um jazigo
E a gaveta em que as guardo um campo-santo.


LIBERTAÇÃO

Adeus. Tu ficas. Eu parto. Não conheço
O destino a seguir, mas parto e corro.
Livre quero ficar, por qualquer preço,
Ou desta escravidão tornar-me forro.

De ilusões e de sonhos me abasteço;
Não mais que de esperanças me socorro
Para este grande mal de que padeço,
Para esta funda mágoa de que morro.

Quem escoteiro parte, só precisa
Da esperança e do mais que ela lhe oferta,
Da ilusão e do mais que ela improvisa.

A alma a exultar, a fronte descoberta,
Saio do teu amor, que me escraviza,
Corro para outro amor, que me liberta.


LOUCURA DOS SENTIDOS

Em tudo aqui — tal é meu desvario! —
No leito, nos lençóis, no cortinado
Ainda sinto o perfume evaporado
E o calor do teu corpo alvo e macio.

Vejo-te sempre em meu torpor doentio,
E julgo — tanto amor tenho ao pecado! —
Que o lugar que ocupavas ao meu lado
Desde então nunca mais ficou vazio.

E ainda hoje, desse amado corpo ausente,
Busco, à noite, ao deitar-me, o doce abrigo,
O conchego sem-par, gostoso e quente;

E nesse esforço de visão consigo
Ver-te, alva e bela, como antigamente,
Olhos fechados a sonhar comigo...


GOSTO CRUEL

Enganou-me. Ainda agora o não duvido.
Ainda agora me punge esse desgosto;
No dúbio olhar e no rubor do rosto
Li todo o crime seu reproduzido.

Traiu-me. E eu, aos pés dela, atento o ouvido
Às mentiras sem nexo e à afronta exposto,
Pela primeira vez senti o gosto,
A delícia cruel de ser traído.

Ante o seu gesto duro e a raiva pronta,
Eu, fingindo afinal que tudo crera,
Como um ser que de tudo se amedronta,

Lábio a tremer, mais branco do que cera,
Pus-me a pedir perdão daquela afronta
Que eu no meu próprio rosto recebera.


ARTE E AMOR

Das velhas comoções te vejo os traços
Toda vez que o desejo me provocas;
Outros beijos e abraços sei que evocas,
Aos meus beijos iguais e aos meus abraços.

Sei que empós outros conduziste os passos;
Sei tudo; e sei que, sôfregas e loucas,
Te cobriram de beijos outras bocas,
Te apertaram, ansiosos, outros braços.

Que importa outros provassem esse vinho
De que reservas o melhor sobejo
E se hajam aninhado onde me aninho,

Se hoje, para afagar o meu desejo,
Fazes com mais apuro o teu carinho
E com arte melhor dás o teu beijo?


DE PASSAGEM

Nada, em suave tortura e anseio, iguala
A esta sede de amor que me extenua.
Forasteiro que sou, oiço-te a fala,
Tenta-me o brilho dessa espádua nua.

Tonto do aroma que teu corpo exala,
Se eu entro, a est'hora, a bela alcova tua,
É que essa ardente mocidade em gala
Tem as portas abertas para a rua.

Teu beijo a um vinho forte e bom semelha,
Que a alma deleita, o cérebro atordoa
E nos olhos acende uma centelha.

Tomo-o, e sigo o meu passo... Assim, à toa,
Zumbindo em torno à flor, incerta abelha
Seu doce mel recolhe à pressa, e voa...


NOSSA HISTÓRIA

Nossa história de amor por desenlace
Teve, como têm todas, a ruptura,
A ventura passou, por ser ventura,
Porque não há ventura que não passe.

Dói-me, porém, pensar que na fugace
Memória dela, em que, por desventura,
Nada do bem passado enfim perdura,
Nosso passado bem não perdurasse.

Não sei se a ela ou se a mim mesmo louve:
Eu oiço-a e vejo-a sempre, recordada,
Ela, esquecida, não me vê nem ouve;

Eu padeço; ela passa, descuidada,
Sem se lembrar do que entre nós já houve,
Qual se nunca entre nós houvera nada.


COLHEITA VÃ

Cuida tu, por exemplo, que a ventura
Tem dessa linda fruta a semelhança:
Tão perto está, que a tua mão a alcança,
Está quase a cair de tão madura.

Nem é quase mister vergar-lhe a frança
Para a colher a tão pequena altura.
Contém-se nela à grande e com fartura
Tudo o que se contém numa esperança.

Seu sabor pelo aroma se revela:
Que cheiro tem! Nada te tolhe e embarga
O gesto de a colher, cheirosa e bela.

Colheste-a em vão; larga essa fruta, larga,
Pois só porque pudeste enfim colhê-la,
Perdeu todo o sabor e fez-se amarga.


COFRE DE MALES

Numa hora de exaltado desvario,
O teu cofre, Pandora, eu, sem receio,
Com minhas próprias mãos, sorrindo, abri-o...
Só de males teu cofre estava cheio.

Depois de tê-lo aberto é que me veio
Este remorso inútil e tardio;
E arrependido e trêmulo, fechei-o,
Para de todo não ficar vazio.

Esses males a que hoje me condenas
Caíram todos sobre mim, de chofre;
São angústias mortais e acerbas penas;

E em câmbio, a quem, como eu, já tanto sofre,
Dás um gozo, a ilusão de um gozo apenas
Encerrada no fundo do teu cofre.


RESUMOS

Amo a noite sem astros e sem lumes,
Pois nela envolto e só, penso e medito;
Do alto da vaga a debruçar-se, aflito,
Amo o mar com seus estos e queixumes.

Num gesto só das tuas mãos resumes
De um, o imenso clamor, de outra, o infinito:
Um, com seus vagalhões sempre em conflito,
Outra, com a vastidão dos seus negrumes.

Do mar resumes o rumor das sevas
Ondas a uivar por côncavos escolhos,
Nas mãos que em concha ao meu ouvido levas;

Mostras-me a noite quieta e sem recolhos,
Toda cheia de sombras e de trevas,
Se vens com tuas mãos tapar-me os olhos.


ONTEM E HOJE

Partiu. Voltou. Com a alma a tudo afeita,
Acolhe, resignado, a desventura,
De que, afinal, tortura por tortura,
Fez a mais farta, a mais cruel colheita.

Nem mais sequer a sua mão enjeita,
Nem mais dos lábios afastar procura
Esse trago de fel e de amargura
Que o mau destino em sua taça deita.

Ontem, a alma sem freios e sem brida,
Tendo sonhos e risos por escolta,
Partia. Hoje, a tarefa já concluída,

Regressa; ao regressar, suspiros solta,
E o bastão rico que levou na ida
Lhe serve de muleta para a volta.


PRIMEIRA RECUSA

Foi um gesto, não mais que um gesto, e fiz-te
Corar, e como já te não bastasse
A onda de sangue que te veio à face,
De uma forma brutal me repeliste.

Gênio impulsivo, nem sequer previste
Qual seria depois o desenlace,
Pois pouco se te dava que eu ficasse
Por tão justa razão magoado ou triste.

Fiquei. Mas já passou. Não resta nada.
Não te ralho sequer nem te magôo,
Para que me não fujas, assustada;

Antes me ponho a rir e te perdôo,
Ave gentil, apenas emplumada,
Que em vão receias o primeiro vôo...


TORTURAS

Não sabe, nem eu sei, de que maneira
Diga ela que me quer e eu que lhe quero;
Espera em vão, em vão também espero
A confissão penosa e verdadeira.

Nada mais natural que ela me queira,
Nada mais certo que lhe sou sincero;
Ela espera entretanto, eu desespero,
E assim passamos nossa vida inteira.

Mas por que não fazemos o protesto
De um ao outro dizer que nos amamos,
Se o nosso mútuo amor é manifesto?

Não sei, não sabe; e assim nunca deixamos
Que as mãos no-lo confessem pelo gesto,
E a confissão nos lábios sufocamos.


FLOR E FRUTA

Serva do meu desejo consideras
Toda essa carne em flor de que sou dono;
Quanto mais eu por ela me apaixono,
Mais da minha vontade te apoderas.

Não cuides que te fujo e te abandono
Porque já não és mais qual dantes eras,
Não, e nem cuides que haja primaveras
Que o viço tenham desse lindo outono.

És flor e fruta numa igual mistura:
Flor — a que ninguém mais o cheiro toma,
Fruta — a que mais ninguém prova a doçura;

Flor e fruta, não sei se a cheire ou coma,
Fruta de almo sabor, bela e madura,
Flor aberta e gentil de estranho aroma.


A TAÇA DO REI DE TULE (I)

Trêmulo, as barbas úmidas de choro,
No fim da vida, o rei de Tule, um dia
Tirou a taça pela qual bebia
Do cofre onde guardava o seu tesouro.

Era essa a jóia de maior valia;
E ante os nobres e gentes do seu foro
Ao mar lançou a linda taça de ouro...
E minutos após, o rei morria.

Se essa taça continha algum arcano,
Hoje somente é o mar quem lho devassa,
Porque ela jaz no fundo do Oceano;

Beija-a somente, arfando, a água que passa...
E hoje ninguém, lábio nenhum profano
O vinho prova por aquela taça...


A TAÇA DO REI DE TULE (II)

Quando me chego a ti, por mais que faça
Por conter dentro em mim este alvoroço,
Sinto que sou, sem reino e embora moço,
O rei de Tule, e tu, a minha taça.

Dos teus lábios ninguém hoje devassa
O fundo senão eu; e enquanto posso,
No mel que eles contêm, os meus adoço...
Mas por fim tudo cansa e tudo passa.

Não poder, como o rei, no fim da vida,
Ante os meus cortesãos, jograis e sábios,
Lançar-te ao mar também, taça querida,

Para que ninguém mais sinta os ressábios
Dessa bebida por mim só bebida
Pela taça vermelha dos teus lábios!


A UMA NOVIÇA

Amam-se as borboletas no ar; na grama
Os insetos; as águias lá nos picos;
E, aos pares, pipilando, os tico-ticos
Na câmara nupcial da mesma rama.

Ais, pios, urros, beijos impudicos,
No antro, no pó, na cripta, no ar, na cama...
Cada qual, a seu jeito, o amor proclama,
Unindo as bocas ou juntando os bicos.

No banquete brutal das carnes nuas
Em que a carne se cria e se consome,
E do qual, assustada, hoje recuas,

Não há quem o apetite vença ou dome
Senão tu, magra e fria, que jejuas
E nas festas de amor morres de fome!


VENTO INDISCRETO

Vejo-a, curva, sem mangas, de corpete,
Os braços nus, ao fundo do quintal,
Esfregando com água e sabonete
A peça mais gentil do seu bragal.

Bate, espreme, a pressões por fim submete
A alva calcinha, casta e virginal,
E em cada ponta enfiando um alfinete,
Põe-na a corar ao sol, presa ao varal.

Mas nisto, o vento, que soprando vem,
Boja-a, enfuna-a, insinuando-se por entre
As rendas; e, ao tufá-la, o faz tão bem,

Que desejo ali fique e se concentre
Para que eu veja as curvas que ela tem
Nas gordas nalgas e no lindo ventre...


ÚLTIMA PÁGINA

Teus os meus versos! Teus! Por mais que laves
As mãos culpadas do delito vão
De os haver inspirado, ei-los que vão
Plumas soltas ao vento, como as aves.

De ritmo duro ou de coleios suaves,
Porém sinceros, algo mais serão
Que o esforçado labor de um tecelão
De cesuras, de agudos e de graves.

Mais tarde, — porque enfim minha arte inquieta
Balbucia somente e nada diz —
Nada talvez há de restar do poeta

Que um soneto sem cor, falho e infeliz,
Mumificado por qualquer seleta
Para uso das escolas infantis.


OLHOS QUE APALPAM

Tímida, com seu ar de tapuia do mato,
Quando ao meu lado está, fica suspensa e queda;
Muda, porém, o olhar balbucia e segreda
O que a boca não diz de receio e recato.

E esse, a cujo fulgor não há nada que exceda,
Untuoso olhar, por bem sentir o meu contato,
Parece às vezes ter sutilezas de tato,
Finuras digitais de duas mãos de seda.

Fala-me o seu olhar com franqueza e descuido,
Tecendo em torno a mim suas tramas e enredos;
E ele envolve-me tanto em seu mágico fluido,

Diz-me com tal calor os seus grandes segredos,
Que quase o sinto à flor da pele e quase cuido
Que igual à mão, o seu olhar tem cinco dedos.


OLHOS MÍSTICOS

Se te olho longamente, os teus olhos parece
Crescerem; neles vejo um como grande lago,
De águas plácidas onde, em tremuras de afago,
O áureo reflexo das estrelas estremece.

Têm não sei que expressão de saudade e de prece
Balbuciada baixinho em momento pressago...
Olhos claros, de um tom poeticamente vago
De céu pálido, quando o crepúsculo desce...

Teus olhos ora têm expressões vagas, entre
Uma dor e outra dor, ora as feições magoadas
Da Virgem ao sentir a dor correr-lhe o ventre...

E sempre claros, sob as pálpebras pesadas,
Ei-los fitos em mim, destacando-se dentre
Os arcos roxos das olheiras maceradas...

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes