[6] O SONETO SILABADO

Um soneto não são apenas catorze versos. Trata-se dum conjunto equilibrado, no qual pesa a divisão estrófica (preferivelmente dois quartetos e dois tercetos), o esquema rimático (preferivelmente quatro ou cinco rimas, como em ABBA ABBA CDC DCD ou em ABAB ABAB CCD EED), a acentuação tônica (predominando o heróico sobre o sáfico) e a medida silábica (predominando o decassílabo sobre o alexandrino). Contudo, se considerarmos especificamente o aspecto esticológico, seria curioso observar que existem sonetos para todos os possíveis metros de verso. Selecionei abaixo uma amostragem mínima. [GM] [6.1] De uma sílaba (monossílabo): SOMETO [Eduardo Kac] pika roxa kica coxa moça zorra poça porra coça fica roça bica grossa pika [6.2] De duas sílabas (dissílabo): HÉRCULES E ÔNFALE [José Paulo Paes, traduzindo Apollinaire] O cu Onfálico (Vão cu!) Cai rápido. — Vês tu Quão fálico? — Taful! Priápico! Que sonho Medonho!... Segura!... E a fura O hercúleo Acúleo. [6.3] De três sílabas (trissílabo ou redondilha quebrada): WALTER BENJAMIN [Nelson Ascher] Quando em torno tudo exalta gáudios de alta- neiro e morno "Sim", ressalta teu ardor no- dal de impor-nos noutra pauta, com desígnios mais soturnos, como um ígneo "Não", o turno de teu signo: o de Saturno [6.4] De quatro sílabas (tetrassílabo ou quebrado de redondilha maior): VOZ [Nelson Ascher] Ninguém jamais regeu tão extra- (pois sem rivais) vagante orquestra como a que destra- vando os umbrais com chave-mestra — cordas vocais — propõe que além da canção, com elas, a mente aprenda (mais do que vê-las sem qualquer venda) a ouvir estrelas. [6.5] De cinco sílabas (pentassílabo ou redondilha menor): SONETO 574 IDEALIZADO [Glauco Mattoso] Se amo não deito. Se deito não trepo. Se trepo me estrepo. Amor é conceito. Se faço no leito, Não caio no laço. Amor é cabaço. Amor é conceito. Amor é perfeito: Quem dorme não peca. Amor é soneca. Amor não tem jeito: Amor é distância. Amor é de infância. [6.6] De seis sílabas (hexassílabo ou heróico quebrado): SONETILHO DO FALSO FERNANDO PESSOA [Carlos Drummond de Andrade] Onde nasci, morri. Onde morri, existo. E das peles que visto muitas há que não vi. Sem mim como sem ti posso durar. Desisto de tudo quanto é misto e que odiei ou senti. Nem Fausto nem Mefisto, à deusa que se ri deste nosso oaristo, eis-me a dizer: assisto além, nenhum, aqui, mas não sou eu, nem isto. [6.7] De sete sílabas (heptassílabo ou redondilha maior): O VIOLINO [Emílio de Menezes] São, às vezes, as surdinas Dos peitos apaixonados Aquelas notas divinas Que ele desprende aos bocados... Tem, ora os prantos magoados Dessas crianças franzinas, Ora os risos debochados Das mulheres libertinas... Quando o ouço vem-me à mente Um prazer intermitente... A harmonia, que desata, Geme, chora... e de repente Dá uma risada estridente Nos "allegros" da Traviata. [6.8] De oito sílabas (octossílabo ou sáfico quebrado): O PALACETE DOS AMORES [Manuel Bandeira] Um dia destes a saudade (Saudade, a mais triste das flores) Me deu da minha mocidade No Palacete dos Amores. O Palacete dos Amores. Criação que a força de vontade Do velho Gomes, em verdade, Atestava. Linhas e cores. Compunham quadro de um sainete Tal, que os amores eram mato Nos três pisos do palacete. Mato, não — jardim: por maiores Que fossem, sempre houve recato No Palacete dos Amores. [6.9] De nove sílabas (eneassílabo ou de arte-maior): A PINTA DELA [Raul Pederneiras] Se tua fronte meiga descansas, Pondo em realce negro botão, Da cor trevosa de tuas tranças, — Nasce-me um ponto... de exclamação! — Ponto de treva! Doces lembranças Trazes-me à alma, num turbilhão; Dulçoso ponto das esperanças Que me despontam no coração. Liliputiano, grácil enfeite, Lembra uma pulga num mar de leite, A tua pinta que o rosto aninha. Se o Almirante Colombo, um dia, Visse teu rosto, certo diria: — "Santa Maria!... Que pinta, niña!" [6.10] De dez sílabas (decassílabo): LUÍS FERREIRA DE NORÔ [Gregório de Matos] Que aguarde Luís Ferreira de Norô... Tão grande pespegar pelo besbê...! Para o Puto, que aguarda tal pespê..., E faz servir seu cu de cocó... Subverteu-se a cidade de Sodô... Pelo muito, que andou de caranguê...: A Palácio também creio, sucé... O mesmo, que à cidade de Gomô... Que desse em pescador Antônio Luí...? Nefando gosto tem o seu cará..., Em não querer topar ponta de cri... Pois tanto se namora do pescá..., A cuama se vá pescar lombri..., E em castigo de Deus morra queimá... [6.11] De onze sílabas (hendecassílabo ou de arte-maior): ACRÓSTICO PARA MONTEIRO LOBATO [Paulino Rolim de Moura] Modêlo das letras, gravado na história, Ostentas o cetro na destra sublime — Nascente espontânea do verbo que exprime Talento notável, surgido p'ra glória! Explêndido astro! Cintilas na estrada Incomensurável da filosofia! Regando-a com pródiga sabedoria, Orvalhas o bêrço da seara sagrada! Luzeiro imortal! Com teu hábil cinzel O vulto esculpiste na pátria querida, Brilhando na imagem por ti refletida! Amando a verdade co'o mais puro amor, Traduzes na vida o mais belo painel, Oh! vulto esplendente de raro primor! [6.12] De doze sílabas (dodecassílabo ou alexandrino): PAIXÃO E ARTE [Jorge de Lima] Ter Arte é ter Paixão. Não há Paixão sem verso... O Verso é a Arte do Verbo — o ritmo do som... Existe em toda a parte, ao léu da Vida, asperso E a Música o modula em gradações de tom... Blasfemador, ardente, amoroso ou perverso Quando a Paixão que o gera é Marília ou Manon... Mas é sempre a Paixão que o faz vibrar diverso: Se o inspira o Ódio é mau, se o gera o Amor é bom... Diz a História Sagrada e a Tradição nos fala Dum amor inocente, (o mais alto destino): A Paixão de Jesus, o perdão a Madala. Homem, faze do Verso o teu culto pagão E canta a tua Dor e talha o alexandrino A quem te acostumou a ter Arte e Paixão. [6.13] De treze sílabas (tridecassílabo ou bárbaro): SONETO 573 BARBARIZADO [Glauco Mattoso] Já se disse: sete é conta de mentira e lenda. Também dizem que de azar o treze é cifra certa. Isso explica a redondilha como porta aberta no cantar dos repentistas, na feroz contenda, à bazófia descarada, onde é melhor a emenda que o soneto decassílabo, no qual se enxerta entre termos eruditos a falácia esperta, lei de todo bom poeta que seu peixe venda. Outrossim, também se explica por que nunca é visto um soneto alexandrino, mas de pé quebrado: este, a cuja tentação do treze não resisto. Vou chamá-lo "aleijadinho", pois, em vez de errado, tem caráter de obra-prima, pelo menos nisto: completar catorze versos sem ficar quadrado! [6.14] De catorze sílabas (tetradecassílabo ou, também, bárbaro): NUTRISCO ET EXTINGUO (divisa de Francisco I) [Martins Fontes] A Salamandra, quando a fogueira ferve e flameja, Dentro da noite, negra e silente, no quiriri, Valsa nas chamas, brinca e delira, cor de cereja, Cor de ametista, cor de topázio, cor de rubi! E o Fogo exalta-se e, endoidecido pela peleja, Um potro imita, parece um galo, lembra o saci! Lambe-a, saltando, dá gargalhadas, e a aperta e beija! E amante jovem, demônio alegre, canta e sorri! E a Salamandra, tendo mil cores, toda amarela, Ou verde toda, rola nos braços do seu senhor, E tresvaria na ronda ardente da tarantela! E ao se estreitarem, com tanta freima, tanto furor, Ele, demonstra sentir-se amado, mas só por ela, E ela que vive somente dele, tal qual o Amor! Como o número catorze empata a quantidade de sílabas com a de versos, não se usa sonetar em versos maiores que tal polissílabo, mas nada impede que algum poeta experimente algo hipertrófico a esse ponto. Resta ver se a qualidade justifica o recorde. [Texto e seleção de GLAUCO MATTOSO]
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