|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

João da Cruz e Souza (Florianópolis SC 1861-1898)

Esta é uma difícil seleção pessoal de quatro dezenas, entre tantas amostragens do mesmo nível que se poderiam tirar das quase três centenas de sonetos deixados pelo expoente maior do simbolismo nacional. Comecemos pela maneira como o poeta aplica os clichês verbais da escola até no "processoneto" que chaveia com "sonho" e "almas", para não dizerem que não tocou nas teclas:


O SONETO

Nas formas voluptuosas o Soneto
tem fascinante, cálida fragrância
e as leves, langues curvas de elegância
de extravagante e mórbido esqueleto.

A graça nobre e grave do quarteto
recebe a original intolerância,
toda a sutil, secreta extravagância
que transborda terceto por terceto.

E como singular polichinelo
ondula, ondeia, curioso e belo,
o Soneto, nas formas caprichosas.

As rimas dão-lhe a púrpura vetusta
e na mais rara procissão augusta
surge o sonho das almas dolorosas...


No tópico podólatra, que mais me diz respeito, o catarinense não se
expande como seu conterrâneo e cooptado simbolista Delfino ou como o
parnasiano Raimundo Correia, mas pelo menos não perde o pé no ciclo em
que analisa as partes do corpo. Eis o soneto que interessa:


PÉS

Lívidos, frios, de sinistro aspecto,
como os pés de Jesus, rotos em chaga,
inteiriçados, dentre a auréola vaga
do mistério sagrado de um afeto.

Pés que o fluido magnético, secreto
da morte maculou de estranha e maga
sensação esquisita que propaga
um frio nalma, doloroso e inquieto...

Pés que bocas febris e apaixonadas
purificaram, quentes, inflamadas,
com o beijo dos adeuses soluçantes.

Pés que já no caixão, enrijecidos,
aterradoramente indefinidos
geram fascinações dilacerantes!



Outros sonetos que prefiro em Cruz:


SIDERAÇÕES

Para as estrelas de cristais gelados
as ânsias e os desejos vão subindo,
galgando azuis e siderais noivados
de nuvnes brancas a amplidão vestindo...

Num cortejo de cânticos alados
os arcanjos, as cítaras ferindo,
passam, das vestes nos troféus prateados,
as asas de ouro finamente abrindo...

Dos etéreos turíbulos de neve
claro incenso aromal, límpido e leve,
ondas nevoentas de Visões levanta...

E as ânsias e os desejos infinitos
vão com os arcanjos formulando ritos
da Eternidade que nos Astros canta...


LÉSBIA

Cróton selvagem, tinhorão lascivo,
planta mortal, carnívora, sangrenta,
da tua carne báquica rebenta
a vermelha explosão de um sangue vivo.

Nesse lábio mordente e convulsivo,
ri, ri risadas de expressão violenta
o Amor, trágico e triste, e passa, lenta,
a morte, o espasmo gélido, aflitivo...

Lésbia nervosa, fascinante e doente,
cruel e demoníaca serpente
das flamejantes atrações do gozo.

Dos teus seios acídulos, amargos,
fluem capros aromas e os letargos,
os ópios de um luar tuberculoso...


MÚMIA

Múmia de sangue e lama e terra e treva,
podridão feita deusa de granito,
que surges dos mistérios do Infinito
amamentada na lascívia de Eva.

Tua boca voraz se farta e ceva
na carne e espalhas o terror maldito,
o grito humano, o doloroso grito
que um vento estranho para os limbos leva.

Báratros, criptas, dédalos atrozes
escancaram-se aos tétricos, ferozes
uivos tremendos com luxúria e cio...

Ris a punhais de frígidos sarcasmos
e deve dar congélidos espasmos
o teu beijo de pedra horrendo e frio!...


CRISTO DE BRONZE

Ó Cristos de ouro, de marfim, de prata,
Cristos ideais, serenos, luminosos,
ensangüentados Cristos dolorosos
cuja cabeça a Dor e a Luz retrata.

Ó Cristos de altivez intemerata,
ó Cristos de metais estrepitosos
que gritam como os tigres venenosos
do desejo carnal que enerva e mata.

Cristos de pedra, de madeira e barro...
Ó Cristo humano, estético, bizarro,
amortalhado nas fatais injúrias...

Na rija cruz aspérrima pregado
canta o Cristo de bronze do Pecado,
ri o Cristo de bronze das luxúrias!...


A DOR

Torva Babel das lágrimas, dos gritos,
dos soluços, dos ais, dos longos brados,
a Dor galgou os mundos ignorados,
os mais remotos, vagos infinitos.

Lembrando as religiões, lembrando os ritos,
avassalara os povos condenados,
pela treva, no horror, desesperados,
na convulsão de Tântalos aflitos.

Por buzinas e trompas assoprando
as gerações vão todas proclamando
a grande Dor aos frígidos espaços...

E assim parecem, pelos tempos mudos,
raças de Prometeus titânios, rudos,
Brutos e colossais, torcendo os braços!


SATÃ

Capro e revel, com os fabulosos cornos
na fronte real de rei dos reis vetustos,
com bizarros e lúbricos contornos,
ei-lo Satã dentre Satãs augustos.

Por verdes e por báquicos adornos
vai c'roado de pâmpanos venustos
o deus pagão dos Vinhos acres, mornos,
Deus triunfador dos triunfadores justos.

Arcangélico e audaz, nos sóis radiantes,
à púrpura das glórias flamejantes,
alarga as asas de relevos bravos...

O Sonho agita-lhe a imortal cabeça...
E solta aos sóis e estranha e ondeada e espessa
canta-lhe a juba dos cabelos flavos!


VISÃO DA MORTE

Olhos voltados para mim e abertos
os braços brancos, os nervosos braços,
vens d'espaços estranhos, dos espaços
infinitos, intérminos, desertos...

Do teu perfil os tímidos, incertos
traços indefinidos, vagos traços
deixam, da luz nos ouros e nos aços,
outra luz de que os céus ficam cobertos.

Deixam nos céus uma outra luz mortuária,
uma outra luz de lívidos martírios,
de agonias, de mágoa funerária...

E causas febre e horror, frio, delírios,
ó Noiva do Sepulcro, solitária,
branca e sinistra no clarão dos círios!


DANÇA DO VENTRE

Torva, febril, torcicolosamente,
numa espiral de elétricos volteios,
na cabeça, nos olhos e nos seios
fluíam-lhe os venenos da serpente.

Ah! que agonia tenebrosa e ardente!
que convulsões, que lúbricos anseios,
quanta volúpia e quantos bamboleios,
que brusco e horrível sensualismo quente.

O ventre, em pinchos, empinava todo
como réptil abjeto sobre o lodo,
espolinhando e retorcido em fúria.

Era a dança macabra e multiforme
de um verme estranho, colossal, enorme,
do demônio sangrento da luxúria!


CRISTAIS

Mais claro e fino do que as finas pratas
o som da tua voz deliciava...
Na dolência velada das sonatas
como um perfume a tudo perfumava.

Era um som feito luz, eram volatas
em lânguida espiral que iluminava,
brancas sonoridades de cascatas...
Tanta harmonia melancolizava.

Filtros sutis de melodias, de ondas
de cantos volutuosos como rondas
de silfos leves, sensuais, lascivos...

Como que anseios invisíveis, mudos,
da brancura das sedas e veludos,
das virgindades, dos pudores vivos.


ACROBATA DA DOR

Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta...

Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
nessas macabras piruetas d'aço...

E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço.


CABELOS

Cabelos! Quantas sensações ao vê-los!
Cabelos negros, do esplendor sombrio,
por onde corre o fluido vago e frio
dos brumosos e longos pesadelos...

Sonhos, mistérios, ansiedades, zelos,
tudo que lembra as convulsões de um rio
passa na noite cálida, no estio
da noite tropical dos teus cabelos.

Passa através dos teus cabelos quentes,
pela chama dos beijos inclementes,
das dolências fatais, da nostalgia...

Auréola negra, majestosa, ondeada,
alma da treva, densa e perfumada,
lânguida Noite da melancolia!


BOCA

Boca viçosa, de perfume a lírio,
da límpida frescura da nevada,
boca de pompa grega, purpureada,
da majestade de um damasco assírio.

Boca para deleites e delírio
da volúpia carnal e alucinada,
boca de Arcanjo, tentadora e arqueada,
tentando Arcanjos na amplidão do Empírio,

boca de Ofélia morta sobre o lago,
dentre a auréola de luz do sonho vago
e os faunos leves do luar inquietos...

Estranha boca virginal, cheirosa,
boca de mirra e incensos, milagrosa
nos filtros e nos tóxicos secretos...


MÃOS

Ó mãos ebúrneas, Mãos de claros veios,
esquisitas tulipas delicadas,
lânguidas Mãos sutis e abandonadas,
finas e brancas, no esplendor dos seios.

Mãos etéricas, diáfanas, de enleios,
de eflúvios e de graças perfumadas,
relíquias imortais de eras sagradas
de antigos templos de relíquias cheios.

Mãos onde vagam todos os segredos,
onde dos ciúmes tenebrosos, tredos,
circula o sangue apaixonado e forte.

Mãos que eu amei, no féretro medonho
frias, já murchas, na fluidez do Sonho,
nos mistérios simbólicos da Morte!


PRESA DO ÓDIO

Da tu'alma na funda galeria
descendo às vezes, eu às vezes sinto
que como o mais feroz lobo faminto
teu ódio baixo de alcatéia espia.

Do desespero a noite cava e fria,
de boêmias vis o pérfido absinto
pôs no teu ser um negro labirinto,
desencadeou sinistra ventania.

Desencadeou a ventania rouca,
surda, tremenda, desvairada, louca,
que a tu'alma abalou de lado a lado.

Que te inflamou de cóleras supremas
e deixou-te nas trágicas algemas
do teu ódio sangrento acorrentado!


IRONIA DE LÁGRIMAS

Junto da Morte é que floresce a Vida!
Andamos rindo junto à sepultura.
À boca aberta, escancarada, escura
da cova é como flor apodrecida.

A Morte lembra a estranha Margarida
do nosso corpo, Fausto sem ventura...
ela anda em torno a toda a criatura
numa dança macabra indefinida.

Vem revestida em suas negras sedas
e as marteladas lúgubres e tredas
das ilusões o eterno esquife prega.

E adeus caminhos vãos, mundos risonhos!
Lá vem a loba que devora os sonhos,
faminta, absconsa, imponderada, cega!


VOZ FUGITIVA

Às vezes na tu'alma, que adormece
tanto e tão fundo, alguma voz escuto
de timbre emocional, claro, impoluto
que uma voz bem amiga me parece.

E fico mudo a ouvi-la, como a prece
de um meigo coração que está de luto
e livre, já, de todo o mal corrupto,
mesmo as afrontas mais cruéis esquece.

Mas outras vezes, sempre em vão, procuro
dessa voz singular o timbre puro,
as essências do céu maravilhosas.

Procuro ansioso, inquieto, alvoroçado,
mas tudo na tu'alma está calado,
no silêncio fatal das nebulosas.


CÁRCERE DAS ALMAS

Ah! Toda a alma num cárcere anda presa,
soluçando nas trevas, entre as grades
do calabouço olhando imensidades,
mares, estrelas, tardes, natureza.

Tudo se veste de uma igual grandeza
quando a alma entre grilhões as liberdades
sonha e sonhando, as imortalidades
rasga no etéreo Espaço da Pureza.

Ó almas presas, mudas e fechadas
nas prisões colossais e abandonadas,
da Dor no calabouço, atroz, funéreo!

Nesses silêncios solitários, graves,
que chaveiro do Céu possui as chaves
para abrir-vos as portas do Mistério?!


BENDITAS CADEIAS!

Quando vou pela Luz arrebatado,
escravo dos mais puros sentimentos,
levo secretos estremecimentos
como quem entra em mágico Noivado.

Cerca-me o mundo mais transfigurado
nesses sutis e cândidos momentos...
Meus olhos, minha boca vão sedentos,
fico feliz, meu ser iluminado.

Fico feliz por me sentir escravo
de um Encanto maior entre os Encantos,
livre, na culpa, do mais leve travo.

De ver minh'alma com tais sonhos, tantos,
e que por fim me purifico e lavo
na água do mais consolador dos prantos!


ÚNICO REMÉDIO

Como a chama que sobe e que se apaga,
sobem as vidas a espiral do Inferno.
O desespero é como o fogo eterno
que o campo quieto em convulsões alaga...

Tudo é veneno, tudo cardo e praga!
E as almas que têm sede de falerno
bebem apenas o licor moderno
do tédio pessimista que as esmaga.

Mas a Caveira vem se aproximando,
vem exótica e nua, vem dançando,
no estrambotismo lúgubre vem vindo.

E tudo acaba então no horror insano —
— desespero do Inferno e tédio humano —
quando, d'esguelha, a Morte surge rindo...


DEUS DO MAL

Espírito do mal, ó deus perverso
que tantas almas dúbias acalentas,
veneno tentador na luz disperso
que a própria luz e a própria sombra tentas;

Símbolo atroz das culpas do Universo,
espelho fiel das convulsões violentas,
do gasto coração no lodo imerso
das tormentas vulcânicas, sangrentas;

Toda a tua sinistra trajetória
tem um brilho de lágrima ilusória,
as melodias mórbidas do Inferno...

És Mal, mas sendo Mal és soluçante,
sem a graça divina e consolante,
réprobo estranho do Perdão eterno!


CRÊ

Vê como a Dor te transcendentaliza!
Mas do fundo da Dor crê nobremente.
Transfigura o teu ser na força crente
que tudo torna belo e diviniza.

Que seja a Crença uma celeste brisa
inflando as velas dos batéis do Oriente
do teu Sonho supremo, onipotente,
que nos astros do céu se cristaliza.

Tua alma e coração fiquem mais graves,
iluminados por carinhos suaves,
na doçura imortal sorrindo e crendo...

Oh! crê! Toda a alma humana necessita
de uma Esfera de cânticos, bendita,
para andar crendo e para andar gemendo!


VINHO NEGRO

O vinho negro do imortal pecado
envenenou nossas humanas veias
como fascinações de atras sereias
de um inferno sinistro e perfumado.

O sangue canta, o sol maravilhado
do nosso corpo, em ondas fartas, cheias,
como que quer rasgar essas cadeias
em que a carne o retém acorrentado.

E o sangue chama o vinho negro e quente
do pecado letal, impenitente,
o vinho negro do pecado inquieto.

E tudo nesse vinho mais se apura,
ganha outra graça, forma e formosura,
grave beleza do esplendor secreto.


PERANTE A MORTE

Perante a Morte empalidece e treme,
treme perante a Morte, empalidece.
Coroa-te de lágrimas, esquece
o Mal cruel que nos abismos geme.

Ah! longe o inferno que flameja e freme,
longe a Paixão que só no horror floresce...
a alma precisa de silêncio e prece,
pois na prece e silêncio nada teme.

Silêncio e prece no fatal segredo,
perante o pasmo do sombrio medo
da Morte e os seus aspectos reverentes...

Silêncio para o desespero insano,
o furor gigantesco e sobre-humano
a dor sinistra de ranger os dentes!


O ASSINALADO

Tu és o louco da imortal loucura,
o louco da loucura mais suprema.
A terra é sempre a tua negra algema,
prende-te nela a extrema Desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,
mas essa mesma Desventura extrema
faz que tu'alma suplicando gema
e rebente em estrelas de ternura.

Tu és o Poeta, o grande Assinalado
que povoas o mundo despovoado,
de belezas eternas, pouco a pouco.

Na Natureza prodigiosa e rica
toda a audácia dos nervos justifica
os teus espasmos imortais de louco!


VELHO

Estás morto, estás velho, estás cansado!
Como um sulco de lágrimas pungidas
ei-las, as rugas, as indefinidas
noites do ser vencido e fatigado.

Envolve-te o crepúsculo gelado
que vai soturno amortalhando as vidas
ante o responso em músicas gemidas
no fundo coração dilacerado.

A cabeça pendida de fadiga,
sentes a morte taciturna e amiga,
que os teus nervosos círculos governa.

Estás velho, estás morto! Ó dor, delírio,
alma despedaçada de martírio,
ó desespero da Desgraça eterna!


CONDENAÇÃO FATAL

Ó Mundo, que és o exílio dos exílios,
um monturo de fezes putrefato,
onde o ser mais gentil, mais timorato
dos seres vis circula nos concílios;

Onde de almas em pálidos idílios
o lânguido perfume mais ingrato
magoa tudo e é triste, como o tato
de um cego embalde levantando os cílios;

Mundo de peste, de sangrenta fúria
e de flores leprosas da luxúria
de flores negras, infernais, medonhas;

Oh! como são sinistramente feios
teus aspectos de fera, os teus meneios
pantéricos, ó Mundo, que não sonhas!


DEMÔNIOS

A língua vil, ignívoma, purpúrea
dos pecados mortais bava e braveja,
com os seres impoluídos mercadeja
mordendo-os fundo, injúria sobre injúria.

É um grito infernal de atroz luxúria,
dor de danados, dor de Caos que almeja.
A toda alma serena que viceja,
só fúria, fúria, fúria, fúria, fúria!

São pecados mortais feitos hirsutos
demônios maus que os venenosos frutos
morderam com volúpias de quem ama...

Vermes da Inveja, a lesma verde e oleosa,
anões da Dor torcida e cancerosa,
abortos de almas a sangrar na lama!


BONDADE

É a bondade que te faz formosa,
que a alma te diviniza e transfigura;
é a bondade a rosa da ternura,
que te perfuma com perfume à rosa.

Teu ser angelical de luz bondosa,
verte em meu ser a mais sutil doçura,
uma celeste, límpida frescura,
um encanto, uma paz maravilhosa.

Eu afronto contigo os vampirismos,
os corruptos e mórbidos abismos,
que em vão busquem tentar-me no caminho.

Na suave, na doce claridade,
no consolo de amor dessa bondade
bebo a tu'alma como etéreo vinho.


ESPASMOS

Alma das gerações, alma lendária,
que tens tanto de Hamlet, tanto de Ofélia,
a candidez da rósida camélia
e as lágrimas da sede hereditária;

Alma dormente, tumultuosa, vária,
acorde de harpa misteriosa e célia,
virgindade selvagem de bromélia,
alma do Eleito, do Plebeu, do Pária;

És a chama do Amor, negro-vermelha
de onde rompeu a fúlgida centelha
que a Flor de fogo fez gerar no Dante.

Com teus espasmos e delicadezas,
nervosas e secretas sutilezas,
enches todo este abismo soluçante!


SEXTA-FEIRA SANTA

Lua absíntica, verde, feiticeira,
pasmada como um vício monstruoso...
Um cão estranho fuça na esterqueira,
uivando para o espaço fabuloso.

É esta a negra e santa Sexta-feira!
Cristo está morto, como um vil leproso,
chagado e frio, na feroz cegueira
da Morte, o sangue roxo e tenebroso.

A serpente do mal e do pecado
um sinistro veneno esverdeado
verte do Morto na mudez serena.

Mas da sagrada Redenção do Cristo
em vez do grande Amor, puro, imprevisto,
brotam fosforescências de gangrena!


ESCRAVOCRATAS

Oh! Trânsfugas do bem que sob o manto régio
manhosos, agachados — bem como um crocodilo,
viveis sensualmente à luz dum privilégio
na pose bestial dum cágado tranqüilo.

Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas
ardentes do olhar — formando uma vergasta
dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
e vibro-vos à espinha — enquanto o grande basta

O basta gigantesco, imenso, extraordinário —
da branca consciência — o rútilo sacrário
no tímpano do ouvido — audaz me não soar.

Eu quero em rude verso altivo adamastórico,
vermelho, colossal, d'estrépito, gongórico,
castrar-vos como um touro — ouvindo-vos urrar!


O SEU BONÉ

É um boné ideal, de feltros e de plumas,
que ela usa agora, assim como um turbante
turco, aveludado, doce como algumas
nuvens matinais que rolam no levante.

Lembro quando ao vê-lo a rubra marselhesa,
lembro sensações e cousas de prodígio
e penso que ele tem a máscula grandeza
desse sedutor, vital barrete frígio!...

Às vezes meu olhar medindo-lhe o contorno
e a flácida plumagem que serve-lhe d'adorno,
— satânico, voraz, esplêndido de fé!

Exclama num idílio cândido e singelo,
por entre as convulsões artísticas do Belo, —
Oh! tem coração e alma, esse boné!...


NA MAZURKA

Morava num palácio — estranha Babilônia
de arcadas colossais, de impávidos zimbórios,
alcovas de damasco e torreões marmóreos,
volutas primorais de arquitetura jônia.

Assim, quando surgia em meio aos peristilos
descendo, qual mulher de Séfora, vaidosa,
envolta em ouropéis, em sedas, luxuosa,
cercam-na do belo os místicos sigilos!

E quando nos saraus, assim como um rainúnculo,
o lábio lhe tremia e o olhar, vivo carbúnculo,
vibrava nos salões, como uma adaga turca,

ou como o sol em cheio e rubro sobre o Bósforo,
— nos crânios os Homens sentiam ter mais fósforo...
ao vê-la escultural no passo da Mazurka...


PLENILÚNIO

Vês este céu tão límpido e constelado
e este luar que em fúlgida cascata,
cai, rola, cai, nuns borbotões de prata...
Vês este céu de mármore azulado...

Vês este campo intérmino, encharcado
da luz que a lua aos páramos desata...
Vês este véu que branco se dilata
pelo verdor do campo iluminado...

Vês estes rios, tão fosforescentes,
cheios duns tons, duns prismas reluzentes,
vês estes rios cheios de ardentias...

Vês esta mole e transparente gaze...
pois é, como isso me parecem quase
iguais, assim, as nossas alegrias!


AOS MORTOS

Oh! Não é bom rir-se de um morto — brusca
pois deve ser a sensação que aumenta
desoladora, vagarosa, lenta
da negra morte tétrica velhusca...

Tudo que em vida, como um sol, corusca,
que nos aparece, que nos acalenta,
tudo que a dor e a lágrima afugenta,
o olhar da morte nos apaga e ofusca...

Nunca se deve desprezar os mortos...
Nos regelados e sombrios portos,
onde a matéria se transforma e urge

exuberar na planturosa leiva,
vivem os mortos no vigor da seiva,
porque dão vida ao que da vida surge!...


CEGA

Parece-me que a luz imaculada
que vem do teu olhar, todo doçuras,
não verte no meu ser aquelas puras
delícias de outra era já passada.

Eu creio que essa pálpebra adorada
não mais um flóreo empíreo de venturas
descobre-me — na noite de amarguras,
de dúvidas intérminas cortada.

Não olhas como olhavas, rindo, outrora,
não abres a pupila, como a aurora
nascendo, abre, feliz, radiosa e calma.

A sombra, nos teus olhos, funda, existe!...
Tu'alma deve ser bem negra e triste
se os olhos são, decerto, o espelho d'alma.


AVE! MARIA

Ave! Maria das Estrelas, Ave!
Cheia de graça do luar, Maria!
Harmonia de cântico suave,
das harpas celestiais branda harmonia...

Nuvem d'incensos através da nave
quando o tempo de pompas irradia
e em prantos o órgão vai plangendo grave
a profunda e gemente litania...

Seja bendito o fruto do teu ventre,
Jesus, mais belo dentre os astros e entre
as mulheres judaicas mais amado...

Ó Luz! Eucaristia da beleza,
chama sagrada no Evangelho acesa,
maravilha do Amor e do Pecado!


DOENTE

As unhas perigosas da bronquite
nas tuas carnes sensuais e moles
não deixarão que o teu amor palpite
nem que os olhares pelos astros roles.

É fatal a moléstia. Só permite
que te acabes por fim e que te estioles,
sem que em teu peito o coração se agite,
sem que te animes, sem que te consoles.

Vai se extinguindo a polpa dessas faces...
mas se ainda hoje em mim acreditasses,
como no tempo virginal de outrora,

Tu curar-te-ias com pequeno esforço
das serranias através do dorso,
pela saúde dos vergéis afora.


A FREIRA MORTA

Muda, espectral, entrando as arcarias
da cripta onde ela jaz eternamente
no austero claustro silencioso — a gente
desce com as impressões das cinzas frias...

Pelas negras abóbadas sombrias
donde pende uma lâmpada fulgente,
por entre a frouxa luz triste e dormente
sobem do claustro as sacras sinfonias.

Uma paz de sepulcro após se estende...
e no luar da lâmpada que pende
brilham clarões de amores condenados...

Como que vem do túmulo da morta
um gemido de dor que os ares corta,
atravessando os mármores sagrados!


O CEGO DO HARMONIUM

Esse cego do harmonium me atormenta
e atormentando me seduz, fascina.
A minh'alma para ele vai sedenta
por falar com a sua alma peregrina.

O seu cantar nostálgico adormenta
como um luar de mórbida neblina.
O harmonium geme certa queixa lenta,
certa esquisita e lânguida surdina.

Os seus olhos parecem dois desejos
mortos em flor, dois luminosos beijos
fanados, apagados, esquecidos...

Ah! eu não sei o sentimento vário
que prende-me a esse cego solitário,
de olhos aflitos como vãos gemidos!


ROSA NEGRA

Nervosa Flor, carnívora, suprema,
Flor dos sonhos da Morte, Flor sombria,
nos labirintos da tu'alma fria
deixa que eu sofra, me debata e gema.

Do Dante o atroz, o tenebroso lema
do Inferno à porta em trágica ironia,
eu vejo, com terrível agonia,
sobre o teu coração, torvo problema.

Flor do delírio, Flor do sangue estuoso
que explode, porejando, caudaloso,
das volúpias da carne nos gemidos.

Rosa negra da treva, Flor do nada,
dá-me essa boca acídula, rasgada,
que vale mais que os corações proibidos!


VIOLINOS

Pelas bizarras, góticas janelas
de um templo medieval um sol ondula:
nunca os vitrais viram visões mais belas
quando, no ocaso, o sol os doura e oscula...

Doces, multicores aquarelas
sobre um saudoso céu que além se azula...
Calma, serena, divinal, entre elas,
a pomba ideal dos Ângelus arrula...

Rezam de joelhos anjos de mãos postas
através dos vitrais, e nas encostas
dos montes sobre a claridade ondeando...

É a lua de Deus, que as curvas meigas
foi ondular pelos vergéis e veigas
magnólias e lírios desfolhando...

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