|| | ||S|| | ||O|| | ||N|| | ||E|| | ||T|| | ||Á|| | ||R|| | ||I|| | ||O|| | ||||| | ||||| | ||||| | || |
Auta de Souza (Macaíba RN 1876-1901)
Com a paulista Francisca Júlia e a carioca Gilka Machado compõe o grande
trio feminino pré-modernista. Se Francisca é a mais social e Gilka a
mais carnal, Auta é certamente a mais espiritual das três. Só não a
chamo de "rainha do céu" (assim como Cecília Meireles é a "rainha da
reticência") porque soaria sacrílego e há outras palavras recorrentes em
sua poesia além de "céu", como "alma", que segundo alguns seria indício
suficiente para enquadrá-la no simbolismo, enquanto os parnasianos lhe
sentiriam a falta. Na dor da doença, na perda de entes queridos, na
morte prematura e no único livro, seu caso se assemelha ao de Augusto
dos Anjos; no elogio de Bilac faz companhia a Francisca, mas na técnica
do soneto (em Júlia mais sofisticada e em Auta mais despojada) e na
temática (em Júlia mais eclética e em Auta mais presa à tragédia
familiar e à infância) essas duas figuras se distanciam. Para mim estão
tão próximas e íntimas quanto Gilka, todas inesquecíveis poetisas.
Repito: po-e-ti-sas.
A MINHA AVÓ Minh'alma vai cantar, alma sagrada! Raio de sol dos meus primeiros dias... Gota de luz nas regiões sombrias De minha vida triste e amargurada. Minh'alma vai cantar, velhinha amada! Rio onde correm minhas alegrias... Anjo bendito que me refugias Nas tuas asas contra a sina irada! Minh'alma vai cantar... Transforma o seio N'um cofre santo de carícias cheio, Para este livro todo o meu tesouro... Eu quero vê-lo, em desejada calma, No rico santuário de tu'alma... Hóstia guardada num cibório de ouro! ESTRADA A FORA Ela passou por mim toda de preto, Pela mão conduzindo uma criança... E eu cuidei ver ali uma Esperança E uma saudade em pálido dueto. Pois, quando a perda de um sagrado afeto De lastimar esta mulher não cansa, Numa alegria descuidosa e mansa, Passa a criança, o beija-flor inquieto. Também na vida o gozo e a desventura Caminham sempre unidos, de mãos dadas, E o berço, às vezes, leva à sepultura... No coração um horto de martírios! Brotam sem fim as ilusões douradas, Como nas campanhas desabrocham lírios. CELESTE (a uma criança) Eu fiz do Céu azul minha esperança E dos astros dourados meu tesouro... Imagina por que, doce criança, Nas noites de luar meus sonhos douro! Adivinha, se podes, quanto é mansa A luz que bóia sob um cílio de ouro. E como é lindo um laço azul na trança Embalsamada de um cabelo louro! Imagina por que peço, na morte, Um esquife todo azul que me transporte, Longe da terra, longe dos escolhos... Imagina por que... mas, lírio santo! Não digas a ninguém que eu amo tanto A cor de teu cabelo e dos teus olhos! NUM LEQUE Na gaze loura deste leque adeja Não sei que aroma místico e encantado... Doce morena! Abençoado seja O doce aroma de teu leque amado Quando o entreabres, a sorrir, na Igreja, O templo inteiro fica embalsamado... Até minh'alma carinhosa o beija, Como a toalha de um altar sagrado. E enquanto o aroma inebriante voa, Unido aos hinos que, no coro, entoa A voz de um órgão soluçando dores, Só me parece que o choroso canto Sobe da gaze de teu leque santo, Cheio de luz e de perfume e flores! LÍDIA (a Esther) Feliz de quem se vai na tua idade, Murmura aquele que não crê na vida, E não pensa sequer na mãe querida Que te contempla cheia de saudade. Pobre inocente! Se alegrar quem há de Com tua sorte, rosa empalidecida! Branca açucena inda em botão, caída, O que irás tu fazer na eternidade? Foges da terra em busca de venturas? Mas, meu amor, se conseguires tê-las, De certo, não será nas sepulturas. Fica entre nós, irmã das andorinhas: Deus fez do Céu a pátria das estrelas, Do olhar das mães o Céu das criancinhas. MISTÉRIO (à memória do pequeno Alberto) Sei que tu'alma carinhosa e mansa Voou, sorrindo, para o Azul celeste; Sei que teu corpo virginal descansa Aqui da terra n'um cantinho agreste Tudo isto sei: mas tu não me disseste Se lá no Céu, na pátria da Esperança, Ou aqui no mundo, à sombra do cipreste, Deixaste o coração, loura criança! Desceu acaso com o corpo à terra Ele tão puro e que só luz encerra? Não creio nisso e ninguém crê de certo... Enquanto, eu cismo que, num vale ameno, Talvez o seio de um jasmim pequeno Sirva de berço ao coração de Alberto. PASSANDO (a Celestino Wanderley, pela MORTE DE CECI) Quando me vêem passar risonha e calma, Sem um pesar que me anuvie a fronte, Perdido o olhar na curva do horizonte, Cuidam que eu tenho o paraíso n'alma. Mesmo encontrei quem me dissesse um dia: "Invejo-te a existência descuidosa." Como se espinhos não tivesse a rosa, Ou fosse a vida isenta de agonia! Porém, enquanto, desdenhosa, altiva, Eu vou passando, alegre ou pensativa... A rir, a rir, como um feliz demente, Meu pobre coração dentro do peito Triste doente a agonizar no leito Vai soluçando dolorosamente... SONETO Tudo o que é puro, santo e resplendente, Neste mundo cruel de desenganos, Toda a ventura dos primeiros anos Num'alma que desbrocha sorridente; ["desbrocha": em função da métrica] Tudo o que ainda vemos de potente Na vastidão sem fim dos oceanos, E da terra nos prantos soberanos Trazidos pela aurora refulgente; Tudo o que desce do infinito ousado: O sol, a brisa, o orvalho prateado, A luz do amor, do bem, das esperanças; Tudo, afinal, que vem do Céu dourado A despertar o coração magoado, Deus encerrou nos olhos das crianças! CAMINHO DO SERTÃO (a meu irmão João Câncio) Tão longe a casa! Nem sequer alcanço Vê-la através da mata. Nos caminhos A sombra desce; e, sem achar descanso, Vamos nós dois, meu pobre irmão, sozinhos! É noite já. Como em feliz remanso, Dormem as aves nos pequenos ninhos... Vamos mais devagar... de manso e manso, Para não assustar os passarinhos. Brilham estrelas. Todo o céu parece Rezar de joelhos a chorosa prece Que a noite ensina ao desespero e à dor... Ao longe, a Lua vem dourando a treva... Turíbulo imenso para Deus eleva O incenso agreste da jurema em flor. À MEMÓRIA DE UMA AVE Quando morre uma criança, Diz-se que o pálido anjinho Voou como uma esperança, Foi para o Céu direitinho. Mas nossa mente se cansa A voar de ninho em ninho, Interrogando a lembrança, Quando morre um passarinho. Só eu, se alguém diz que a vida De uma avezinha querida Se extingue como um clarão, Ponho-me a rir, pois, divina, Ouço cantar, em surdina, Tu'alma em meu coração. O BEIJA-FLOR Acostumei-me a vê-lo todo o dia De manhãzinha, alegre e prazenteiro, Beijando as brancas flores de um canteiro No meu jardim a pátria da ambrosia. Pequeno e lindo, só me parecia Que era da noite o sonho derradeiro... Vinha trazer às rosas o primeiro Beijo do Sol, nessa manhã tão fria! Um dia foi-se e não voltou... Mas quando A suspirar me ponho, contemplando, Sombria e triste, o meu jardim risonho... Digo, a pensar no tempo já passado: Talvez, ó coração amargurado, Aquele beija-flor fosse o teu sonho! ANTONIETA Esta criança formosa Tem um sorriso argentino, Como o gorjeio divino Que solta uma ave saudosa. Muito inocente e mimosa, Semelha um lírio franzino, No rostinho pequenino Guarda uma boca de rosa. Se fala, a voz adorada É como uma harpa encantada Que os hinos de Além encerra. Esta criança, Senhor! É um mimo de teu amor, Um anjo descido à terra. PÁGINA TRISTE Há muita dor por este mundo afora, Muita lágrima à toa derramada; Muito pranto de mãe angustiada Que vem saudar o despontar da aurora! Alma inocente só de amor cercada A criancinha a soluçar descora, Talvez no berço onde o menino chora Também, ó Dor, tu queiras, desolada, Erguer um trono, procurar guarida... Foge do berço! não magoes a vida Desta ave implume, lirial botão... Queres um ninho, um carinhoso abrigo? Pois bem! procura-o neste seio amigo, Dentro em minh'alma, aqui no coração! NOEMI Eu quisera saber em que ela pensa, Esta mimosa e santa criatura Quando indeciso o seu olhar procura Alguma estrela pelo Azul suspensa; E que tristeza, indefinida, imensa, Do seu olhar na flama, ardente e pura, Intérmina e suave se condensa Como as brumas no Céu em noite escura. Pobre criança! Que infinita mágoa Punge-te o seio e te anuvia os olhos Benditos olhos sempre rasos d'água! Choras... E o mundo te oferece flores... Deixa os espinhos, lágrimas e abrolhos, Só para mim, que só conheço dores! POBRE FLOR! Deu-ma um dia uma antiga companheira Do tempinho feliz de adolescente; E os meus lábios roçaram docemente Pelas folhas da nívea feiticeira. Como se apaga uma ilusão primeira, Um sonho estremecido e resplendente, Eu beijei-lhe a corola, rescendente Inda mais que a da flor da laranjeira. E como amava o seu formoso brilho! Tinha-lhe quase essa afeição sagrada Da jovem mãe ao seu primeiro filho. Dei-lhe no seio uma pousada franca... Mas, ai! depressa ela murchou, coitada! Doce e mísera flor, cheirosa e branca! CREPÚSCULO (a Júlia Lyra) O Ângelus soa. Vagarosamente A noite desce, plácida e divina. Ouço gemer meu coração doente Chorando a tarde, a noiva peregrina. Há pelo espaço um ciciar dolente De prece em torno da Igrejinha em ruína... Pássaros voam compassadamente; Treme no galho a rosa purpurina... E eu sinto que a tristeza vem suspensa Sobre as asas da noite erma e sombria... E que nessa hora de saudade imensa, Rindo e chorando desce ao coração: Toda a doçura da melancolia, Todo o conforto da recordação. BENDITA Bendita sejas, minha mãe, bendito Seja o teu seio, imaculado e santo, Onde derrama as gotas de seu pranto Meu dolorido coração aflito. Ó minha mãe, ó anjo sacrossanto, Bendito seja o teu amor, bendito! Ouve do Céu o amargurado grito Cheio da dor de quem soluça tanto. E deixa que repouse em teus joelhos A minha fronte, ouvindo os teus conselhos Longe do mundo, ó sempiterna dita! Envia lá do Céu no teu sorriso A morte que levou-te ao Paraíso... Bendita sejas, minha mãe, bendita! NO JARDIM DAS OLIVEIRAS "Minh'alma é triste até à morte..." Doce, Jesus falou... E o Nazareno Santo Chorava, como se a su'alma fosse Um mar imenso de amargura e pranto. Depois, silencioso, ele afastou-se E foi rezar no mais sombrio canto. Seu grande olhar formoso iluminou-se Fitando o etéreo e estrelejado manto. "Pai, tem piedade..." E sua voz plangente Tremia, enquanto pelas trevas mudas Baixava manso o triste olhar dolente. Pobre Jesus! Como num sonho via: Em cada sombra a traição de Judas, Em cada estrela os olhos de Maria! NATAL (às moças da Serra) É meia-noite... O sino alvissareiro, Lá da Igrejinha branca pendurado, Como um sonho místico e fagueiro, Vem relembrar o tempo do Passado. Ó velho sino, ó bronze abençoado, Na alegria e na mágoa companheiro! Tu me recordas o sorrir primeiro Do menino Jesus imaculado. E enquanto escuto a tua voz dolente, Meu ser que geme dolorosamente Da desventura aos gélidos açoites... Bebe em teus sons tanta alegria, tanta! Sino que lembras uma noite santa, Noite bendita mais que as outras noites! ETERNA DOR Alma de meu amor, lírio celeste, Sonho feito de um beijo e de um carinho, Criatura gentil, pomba de arminho, Arrulhando nas folhas de um cipreste, Ó minha mãe! Por que no mundo agreste, Rola formosa, abandonaste o ninho? Se as roseiras do Céu não têm espinho, Quero ir contigo, ó lírio meu celeste! Ah! se soubesses como sofro, e tanto! Leva-me à terra onde não corre o pranto, Leva-me, santa, onde a ventura existe... Aqui na vida que tamanha mágoa! O próprio olhar de Deus encheu-se d'água... Ó minha mãe, como este mundo é triste! NOITES AMADAS Ó noites claras de lua cheia! Em vosso seio, noites chorosas, Minh'alma canta como a sereia, Vive cantando num mar de rosas; Noites queridas que Deus prateia Com a luz dos sonhos das nebulosas, Ó noites claras de lua cheia, Como eu vos amo, noites formosas! Vós sois um rio de luz sagrada Onde, sonhando, passa embalada Minha esperança, de mágoas nua... Ó noites claras de lua plena Que encheis a terra de paz serena Como eu vos amo, noites de lua! À ALMA DE MINHA MÃE Partiu-se o fio branco e delicado Dos sonhos de minh'alma desditosa... E as contas do rosário assim quebrado Caíram como folhas de uma rosa. Debalde eu as procuro lacrimosa, Estas doces relíquias do Passado, Para guardá-las na urna perfumosa, Do meu seio no cofre imaculado. Ai! se eu ao menos uma só pudesse Destas contas achar que me fizesse Lembrar um mundo de alegrias doudas... Feliz seria... Mas minh'alma atenta Em vão procura uma continha benta: Quando partiste m'as levaste todas! CLARISSE "Não sei o que é tristeza", ela me disse... E a sua boca virginal sorria; Ninho de estrelas, concha de ambrosia Cheia de rosas que do Céu caísse! E eu docemente murmurei: Clarisse, Será possível que tu'alma fria Ouvindo o choro da Melancolia O ressábio do fel nunca sentiste? Será possível que o teu seio rosa, Nunca embalasse a lágrima formosa? Ah! não és rosa, pois não tens espinhos! E os olhos teus, dois templos de Esperança, Nunca viram sofrer uma criança, Nunca viram morrer um passarinho! RENASCIMENTO (a Olegária Siqueira) Manhã de rosas. Lá no etéreo manto, O Sol derrama lúcidos fulgores, E eu vou cantando pela estrada, enquanto Riem crianças e desbrocham flores. ["desbrocham": em função da métrica] Quero viver! Há quanto tempo, quanto! Não venho ouvir na selva os trovadores! Quero sentir este consolo santo De quem, voltando à vida, esquece as dores. Ouves, minh'alma? Que prazer nos ninhos! Como é suave a voz dos passarinhos Neste tranqüilo e plácido deserto! Ah! entre os risos da Natura em festa, Entoa o hino da alegria honesta, Canta o "Te Deum", meu coração liberto! OBRIGADA! (a Nininha Andrade) ..E tu rezas por mim! Como agradeço Essa esmola gentil de teu carinho... Como as torturas de minh'alma esqueço Nessa tua oração, floco de arminho! Eu te bendigo, ó santa que estremeço, Alma tão pura como a flor do linho. É a tua prece à mágoa que padeço Asa de pomba defendendo um ninho! Reza, criança! Junta as mãos nevadas E cerra as níveas pálpebras amadas Sobre os teus olhos como um lindo véu... Depois, nas asas de uma prece ardente, Deixa cantar minh'alma docemente, Deixa subir meu coração ao Céu! NOITE CRUEL (a meu irmão Henrique) Morrer... morrer... morrer... Fechar na terra os olhos A tudo o que se ama, a tudo o que se adora! E nunca mais ouvir a música sonora Da Ilusão a cantar da vida nos refolhos... Sentir o coração ferir-se nos escolhos De tormentoso mar pobre vaga que chora! E no arranco final da derradeira hora, Soluçando morrer num oceano de abrolhos. Nem ao menos beijar ó supremo desgosto! A mão doce e fiel que nos enxuga o rosto Mostrando-nos o Céu suspenso de uma Cruz... E perguntar a Deus na agonia e nas trevas: Onde fica, Senhor, a terra a que nos levas, Com as mãos postas no seio e os dois olhos sem luz?! MANHÃ NO CAMPO (a Maria Nunes) Estendo os olhos pelo prado afora: Verdura e flores é o que a vista alcança... Bendito oásis onde o olhar descansa Quando saudades do Passado chora. Escuto ao longe uma canção sonora. Voz de mulher ou, antes, de criança Entoa o hino branco da Esperança, Hino das aves ao nascer da Aurora. Por toda parte risos e fulgores E a Natureza desbrochando em flores, ["desbrochando": devido ao metro] Iluminada pelo Sol risonho, Recorda um'alma diluída em prece, Um coração feliz que inda estremece À luz sagrada do primeiro sonho! NEVER MORE (a uma falsa amiga) Não te perdôo, não, meus tristes olhos Não mais hei de fitar nos teus, sorrindo: Jamais minh'alma sobre um mar de escolhos Há de chamar por ti no anseio infindo. Jamais, jamais, nos delicados folhos Do Coração como num ramo lindo, Há de cantar teu nome entre os abrolhos A ária gentil de meu sonhar já findo. Não te perdôo, não! E em tardes claras, Cheias de sonhos e delícias raras, Quando eu passar à hora do Sol-posto: Não rias para mim que sofro e penso, Deixa-me só neste deserto imenso... Ah! se eu pudesse nunca ver teu rosto! NEVER MORE (II) Ah! se eu pudesse nunca ver teu rosto! E nem sequer o som de tua fala Ouvir de manso à hora do Sol-posto Quando a Tristeza já do Céu resvala! Talvez assim o fúnebre desgosto Que eternamente a alma me avassala Se transformasse num luar de agosto, Sonho perene que a Ventura embala. Talvez o riso me voltasse à boca E se extinguisse essa amargura louca De tanta dor que a minha vida junca... E, então, os dias de prazer voltassem E nunca mais os olhos meus chorassem... Ah! se eu pudesse nunca ver-te, nunca! ORAÇÃO DA NOITE Ajoelhada, ó meu Deus, e as duas mãos unidas, Olhos fitos na Cruz, imploro a tua graça... Esconde-me, Jesus! da treva que esvoaça Na tristeza e no horror das noites mal dormidas, Maria! Virgem mãe das almas compungidas, Sorriso no prazer, conforto na desgraça... Recolhe essa oração que nos meus lábios passa Em palavras de fé no teu amor ungidas. Anjo de minha guarda, ó doce companheiro! Tu que levas do berço ao porto derradeiro O lúrido batel de meu sonhar sem fim, Dá-me o sono que traz o bálsamo ao tormento, Afoga o coração no mar do esquecimento... Abre as asas, meu anjo, e estende-as sobre mim. TUDO PASSA Aquela moça graciosa e bela Que passa sempre de vestido escuro E traz nos lábios um sorriso puro, Triste e formoso como os olhos dela... Diz que sua alma tímida e singela Já não tem coração: que o mundo impuro Para sempre o matou... e o seu futuro Foi-se num sonho, desmaiada estrela. Ela não sabe que o desgosto passa Nem que do orvalho a abençoada graça Faz reviver a planta que emurchece. Flávia! nas almas juvenis, formosas, Berço sagrado de jasmins e rosas, O coração não morre: ele adormece... TUDO PASSA (II) O coração não morre: ele adormece... E antes morresse o coração traído, Mulher que choras teu amor perdido, Amor primeiro que não mais se esquece! Quando tu vais rezar, quando anoitece, Beijas as contas do colar partido; E o coração num trêmulo gemido Vem perturbar a paz de tua prece. Reza baixinho, ó noiva desolada! E quando, à tarde, pela mesma estrada Chorando fores esse imenso amor... Geme de manso, juriti dolente! Vais acordar o coração doente... Não o despertes para nova dor. AO PÉ DO TÚMULO (aos meus) Eis o descanso eterno, o doce abrigo Das almas tristes e despedaçadas; Eis o repouso, enfim; e o sono amigo Já vem cerrar-me as pálpebras cansadas. Amarguras da terra! eu me desligo Para sempre de vós... Almas amadas Que soluçais por mim, eu vos bendigo Ó almas de minh'alma abençoadas. Quando eu daqui me for, anjos da guarda, Quando vier a morte que não tarda Roubar-me a vida para nunca mais... Em pranto escrevam sobre a minha lousa: "Longe da mágoa, enfim, no Céu repousa Quem sofreu muito e quem amou demais". REGINA MARTYRUM Lírio do Céu, sagrada criatura, Mãe das crianças e dos pecadores, Alma divina como a luz e as flores Das virgens castas a mais casta e pura; Do Azul imenso, dessa imensa altura Para onde voam nossas grandes dores, Desce os teus olhos cheios de fulgores Sobre os meus olhos cheios de amargura! Na dor sem termo pela negra estrada Vou caminhando, a sós, desatinada, Ai! pobre cega sem amparo ou guia! Sê tu a mão que me conduza ao porto. Ó doce mãe da luz e do conforto, Ilumina o terror desta agonia! LÁGRIMAS (a meu irmão João Câncio) Eu não sei o que tenho... Essa tristeza Que um sorriso de amor nem mesmo aclara, Parece vir de alguma fonte amara Ou de um rio de dor na correnteza. Minh'alma triste na agonia presa, Não compreende esta ventura clara, Essa harmonia maviosa e rara Que ouve cantar além, pela devesa. Eu não sei o que tenho... Esse martírio, Essa saudade roxa como um lírio, Pranto sem fim que dos meus olhos corre, Ai, deve ser o trágico tormento, O estertor prolongado, lento, lento, Do último adeus de um coração que morre... MEU PAI (a Eloy) Desce, meu Pai, a noite baixou mansa. Nem uma nuvem se vê mais no céu: Aninharam-se aqui no peito meu, Onde, chorando, a negra dor descansa. Quando morreste eu era bem criança, Balbuciava, sim, o nome teu, Mas deste rosto santo que morreu Já não conservo a mínima lembrança. A noite é clara; e eu, aqui sentada, Tenho medo da lua embalsamada, Corta-me o frio a alma comovida. Se lá no Céu teu coração padece, Vem comigo rezar a mesma prece: Tua bênção, meu Pai, me dará vida! IRINEU Num dia turvo assim foi que partiste Cheio de dor e de tristeza cheio. Eu fiquei a chorar num doido anseio Olhando o espaço merencório, triste. Não sei se mágoa mais profunda existe Que esta saudade que me oprime o seio, Pois a amargura que ferir-me veio Naquele dia, ó meu irmão! persiste. Os anos que se foram! Entanto, eu cismo A todo o instante, no profundo abismo Que veio a morte entre nós dois abrir. Mas cada noite n'asa de uma prece, Ou num raio de sol quando amanhece, Vejo tua alma para o céu subir... HOJE Fiz anos hoje... Quero ver agora Se este sofrer que me atormenta tanto Me não deixa lembrar a paz, o encanto, A doce luz de meu viver de outrora. Tão moça e mártir! Não conheço aurora, Foge-me a vida no correr do pranto, Bem como a nota de choroso canto, Que a noite leva pelo espaço em fora. Minh'alma voa aos sonhos do passado, Em busca sempre desse ninho amado Onde pousava cheio de alegria. Mas, de repente, num pavor de morte, Sente cortar-lhe o vôo a mão da sorte... Minha ventura só durou um dia. DOENTE A lua veio... foi-se... e em breve ainda, Há de voltar, a doce lua amada, Sem que eu a veja, a minha fada linda, Sem que eu a veja, a minha boa fada. Ela há de vir. Ofélia desmaiada, Sob as nuvens do céu na alvura infinda Do seu branco roupão, noiva gelada, Boiando à flor de um rio que não finda. Ela há de vir, sem que eu a veja... Entanto, Com que tristezas e saudoso encanto Choro estas noites que passando vão... Ó lua! mostra-me o teu rosto ameno: Olha que murcha à falta de sereno O lírio roxo do meu coração! SÚPLICA Se tudo foge e tudo desaparece, Se tudo cai ao vento da Desgraça, Se a vida é o sopro que nos lábios passa Gelando o ardor da derradeira prece; Se o sonho chora e geme e desfalece Dentro do coração que o amor enlaça, Se a rosa murcha inda em botão, e a graça Da moça foge quando a idade cresce; Se Deus transforma em sua lei tão pura A dor das almas que o Ideal tortura Na demência feliz de pobres loucos... Se a água do rio para o oceano corre, Se tudo cai, Senhor! por que não morre A dor sem fim que me devora aos poucos?
Û Ý ´ ¥ Ü | * e-mail: elson fróes |