|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Auta de Souza (Macaíba RN 1876-1901)

Com a paulista Francisca Júlia e a carioca Gilka Machado compõe o grande trio feminino pré-modernista. Se Francisca é a mais social e Gilka a mais carnal, Auta é certamente a mais espiritual das três. Só não a chamo de "rainha do céu" (assim como Cecília Meireles é a "rainha da reticência") porque soaria sacrílego e há outras palavras recorrentes em sua poesia além de "céu", como "alma", que segundo alguns seria indício suficiente para enquadrá-la no simbolismo, enquanto os parnasianos lhe sentiriam a falta. Na dor da doença, na perda de entes queridos, na morte prematura e no único livro, seu caso se assemelha ao de Augusto dos Anjos; no elogio de Bilac faz companhia a Francisca, mas na técnica do soneto (em Júlia mais sofisticada e em Auta mais despojada) e na temática (em Júlia mais eclética e em Auta mais presa à tragédia familiar e à infância) essas duas figuras se distanciam. Para mim estão tão próximas e íntimas quanto Gilka, todas inesquecíveis poetisas. Repito: po-e-ti-sas.


A MINHA AVÓ

Minh'alma vai cantar, alma sagrada!
Raio de sol dos meus primeiros dias...
Gota de luz nas regiões sombrias
De minha vida triste e amargurada.

Minh'alma vai cantar, velhinha amada!
Rio onde correm minhas alegrias...
Anjo bendito que me refugias
Nas tuas asas contra a sina irada!

Minh'alma vai cantar... Transforma o seio
N'um cofre santo de carícias cheio,
Para este livro todo o meu tesouro...

Eu quero vê-lo, em desejada calma,
No rico santuário de tu'alma...
— Hóstia guardada num cibório de ouro!


ESTRADA A FORA

Ela passou por mim toda de preto,
Pela mão conduzindo uma criança...
E eu cuidei ver ali uma Esperança
E uma saudade em pálido dueto.

Pois, quando a perda de um sagrado afeto
De lastimar esta mulher não cansa,
Numa alegria descuidosa e mansa,
Passa a criança, o beija-flor inquieto.

Também na vida o gozo e a desventura
Caminham sempre unidos, de mãos dadas,
E o berço, às vezes, leva à sepultura...

No coração — um horto de martírios!
Brotam sem fim as ilusões douradas,
Como nas campanhas desabrocham lírios.


CELESTE (a uma criança)

Eu fiz do Céu azul minha esperança
E dos astros dourados meu tesouro...
Imagina por que, doce criança,
Nas noites de luar meus sonhos douro!

Adivinha, se podes, quanto é mansa
A luz que bóia sob um cílio de ouro.
E como é lindo um laço azul na trança
Embalsamada de um cabelo louro!

Imagina por que peço, na morte,
— Um esquife todo azul que me transporte,
Longe da terra, longe dos escolhos...

Imagina por que... mas, lírio santo!
Não digas a ninguém que eu amo tanto
A cor de teu cabelo e dos teus olhos!


NUM LEQUE

Na gaze loura deste leque adeja
Não sei que aroma místico e encantado...
Doce morena! Abençoado seja
O doce aroma de teu leque amado

Quando o entreabres, a sorrir, na Igreja,
O templo inteiro fica embalsamado...
Até minh'alma carinhosa o beija,
Como a toalha de um altar sagrado.

E enquanto o aroma inebriante voa,
Unido aos hinos que, no coro, entoa
A voz de um órgão soluçando dores,

Só me parece que o choroso canto
Sobe da gaze de teu leque santo,
Cheio de luz e de perfume e flores!


LÍDIA (a Esther)

Feliz de quem se vai na tua idade,
Murmura aquele que não crê na vida,
E não pensa sequer na mãe querida
Que te contempla cheia de saudade.

Pobre inocente! Se alegrar quem há de
Com tua sorte, rosa empalidecida!
Branca açucena inda em botão, caída,
O que irás tu fazer na eternidade?

Foges da terra em busca de venturas?
Mas, meu amor, se conseguires tê-las,
De certo, não será nas sepulturas.

Fica entre nós, irmã das andorinhas:
Deus fez do Céu a pátria das estrelas,
Do olhar das mães o Céu das criancinhas.


MISTÉRIO (à memória do pequeno Alberto)

Sei que tu'alma carinhosa e mansa
Voou, sorrindo, para o Azul celeste;
Sei que teu corpo virginal descansa
Aqui da terra n'um cantinho agreste

Tudo isto sei: mas tu não me disseste
Se lá no Céu, na pátria da Esperança,
Ou aqui no mundo, à sombra do cipreste,
Deixaste o coração, loura criança!

Desceu acaso com o corpo à terra
Ele tão puro e que só luz encerra?
Não creio nisso e ninguém crê de certo...

Enquanto, eu cismo que, num vale ameno,
Talvez o seio de um jasmim pequeno
Sirva de berço ao coração de Alberto.


PASSANDO (a Celestino Wanderley, pela MORTE DE CECI)

Quando me vêem passar risonha e calma,
Sem um pesar que me anuvie a fronte,
Perdido o olhar na curva do horizonte,
Cuidam que eu tenho o paraíso n'alma.

Mesmo encontrei quem me dissesse um dia:
"Invejo-te a existência descuidosa."
Como se espinhos não tivesse a rosa,
Ou fosse a vida isenta de agonia!

Porém, enquanto, desdenhosa, altiva,
Eu vou passando, alegre ou pensativa...
A rir, a rir, como um feliz demente,

Meu pobre coração dentro do peito
— Triste doente a agonizar no leito —
Vai soluçando dolorosamente...


SONETO

Tudo o que é puro, santo e resplendente,
Neste mundo cruel de desenganos,
Toda a ventura dos primeiros anos
Num'alma que desbrocha sorridente; ["desbrocha": em função da métrica]

Tudo o que ainda vemos de potente
Na vastidão sem fim dos oceanos,
E da terra nos prantos soberanos
Trazidos pela aurora refulgente;

Tudo o que desce do infinito ousado:
O sol, a brisa, o orvalho prateado,
A luz do amor, do bem, das esperanças;

Tudo, afinal, que vem do Céu dourado
A despertar o coração magoado,
— Deus encerrou nos olhos das crianças!


CAMINHO DO SERTÃO (a meu irmão João Câncio)

Tão longe a casa! Nem sequer alcanço
Vê-la através da mata. Nos caminhos
A sombra desce; e, sem achar descanso,
Vamos nós dois, meu pobre irmão, sozinhos!

É noite já. Como em feliz remanso,
Dormem as aves nos pequenos ninhos...
Vamos mais devagar... de manso e manso,
Para não assustar os passarinhos.

Brilham estrelas. Todo o céu parece
Rezar de joelhos a chorosa prece
Que a noite ensina ao desespero e à dor...

Ao longe, a Lua vem dourando a treva...
Turíbulo imenso para Deus eleva
O incenso agreste da jurema em flor.


À MEMÓRIA DE UMA AVE

Quando morre uma criança,
Diz-se que o pálido anjinho
Voou como uma esperança,
Foi para o Céu direitinho.

Mas nossa mente se cansa
A voar de ninho em ninho,
Interrogando a lembrança,
Quando morre um passarinho.

Só eu, se alguém diz que a vida
De uma avezinha querida
Se extingue como um clarão,

Ponho-me a rir, pois, divina,
Ouço cantar, em surdina,
Tu'alma em meu coração.


O BEIJA-FLOR

Acostumei-me a vê-lo todo o dia
De manhãzinha, alegre e prazenteiro,
Beijando as brancas flores de um canteiro
No meu jardim — a pátria da ambrosia.

Pequeno e lindo, só me parecia
Que era da noite o sonho derradeiro...
Vinha trazer às rosas o primeiro
Beijo do Sol, nessa manhã tão fria!

Um dia foi-se e não voltou... Mas quando
A suspirar me ponho, contemplando,
Sombria e triste, o meu jardim risonho...

Digo, a pensar no tempo já passado:
Talvez, ó coração amargurado,
Aquele beija-flor fosse o teu sonho!


ANTONIETA

Esta criança formosa
Tem um sorriso argentino,
Como o gorjeio divino
Que solta uma ave saudosa.

Muito inocente e mimosa,
Semelha um lírio franzino,
No rostinho pequenino
Guarda uma boca de rosa.

Se fala, a voz adorada
É como uma harpa encantada
Que os hinos de Além encerra.

Esta criança, Senhor!
É um mimo de teu amor,
Um anjo descido à terra.


PÁGINA TRISTE

Há muita dor por este mundo afora,
Muita lágrima à toa derramada;
Muito pranto de mãe angustiada
Que vem saudar o despontar da aurora!

Alma inocente só de amor cercada
A criancinha a soluçar descora,
Talvez no berço onde o menino chora
Também, ó Dor, tu queiras, desolada,

Erguer um trono, procurar guarida...
Foge do berço! não magoes a vida
Desta ave implume, lirial botão...

Queres um ninho, um carinhoso abrigo?
Pois bem! procura-o neste seio amigo,
Dentro em minh'alma, aqui no coração!


NOEMI

Eu quisera saber em que ela pensa,
Esta mimosa e santa criatura
Quando indeciso o seu olhar procura
Alguma estrela pelo Azul suspensa;

E que tristeza, indefinida, imensa,
Do seu olhar na flama, ardente e pura,
Intérmina e suave se condensa
Como as brumas no Céu em noite escura.

Pobre criança! Que infinita mágoa
Punge-te o seio e te anuvia os olhos
— Benditos olhos sempre rasos d'água! —

Choras... E o mundo te oferece flores...
Deixa os espinhos, lágrimas e abrolhos,
Só para mim, que só conheço dores!


POBRE FLOR!

Deu-ma um dia uma antiga companheira
Do tempinho feliz de adolescente;
E os meus lábios roçaram docemente
Pelas folhas da nívea feiticeira.

Como se apaga uma ilusão primeira,
Um sonho estremecido e resplendente,
Eu beijei-lhe a corola, rescendente
Inda mais que a da flor da laranjeira.

E como amava o seu formoso brilho!
Tinha-lhe quase essa afeição sagrada
Da jovem mãe ao seu primeiro filho.

Dei-lhe no seio uma pousada franca...
Mas, ai! depressa ela murchou, coitada!
Doce e mísera flor, cheirosa e branca!


CREPÚSCULO (a Júlia Lyra)

O Ângelus soa. Vagarosamente
A noite desce, plácida e divina.
Ouço gemer meu coração doente
Chorando a tarde, a noiva peregrina.

Há pelo espaço um ciciar dolente
De prece em torno da Igrejinha em ruína...
Pássaros voam compassadamente;
Treme no galho a rosa purpurina...

E eu sinto que a tristeza vem suspensa
Sobre as asas da noite erma e sombria...
E que nessa hora de saudade imensa,

Rindo e chorando desce ao coração:
Toda a doçura da melancolia,
Todo o conforto da recordação.


BENDITA

Bendita sejas, minha mãe, bendito
Seja o teu seio, imaculado e santo,
Onde derrama as gotas de seu pranto
Meu dolorido coração aflito.

Ó minha mãe, ó anjo sacrossanto,
Bendito seja o teu amor, bendito!
Ouve do Céu o amargurado grito
Cheio da dor de quem soluça tanto.

E deixa que repouse em teus joelhos
A minha fronte, ouvindo os teus conselhos
Longe do mundo, ó sempiterna dita!

Envia lá do Céu no teu sorriso
A morte que levou-te ao Paraíso...
Bendita sejas, minha mãe, bendita!


NO JARDIM DAS OLIVEIRAS

"Minh'alma é triste até à morte..." Doce,
Jesus falou... E o Nazareno Santo
Chorava, como se a su'alma fosse
Um mar imenso de amargura e pranto.

Depois, silencioso, ele afastou-se
E foi rezar no mais sombrio canto.
Seu grande olhar formoso iluminou-se
Fitando o etéreo e estrelejado manto.

"Pai, tem piedade..." E sua voz plangente
Tremia, enquanto pelas trevas mudas
Baixava manso o triste olhar dolente.

Pobre Jesus! Como num sonho via:
Em cada sombra a traição de Judas,
Em cada estrela os olhos de Maria!


NATAL (às moças da Serra)

É meia-noite... O sino alvissareiro,
Lá da Igrejinha branca pendurado,
Como um sonho místico e fagueiro,
Vem relembrar o tempo do Passado.

Ó velho sino, ó bronze abençoado,
Na alegria e na mágoa companheiro!
Tu me recordas o sorrir primeiro
Do menino Jesus imaculado.

E enquanto escuto a tua voz dolente,
Meu ser que geme dolorosamente
Da desventura aos gélidos açoites...

Bebe em teus sons tanta alegria, tanta!
Sino que lembras uma noite santa,
Noite bendita mais que as outras noites!


ETERNA DOR

Alma de meu amor, lírio celeste,
Sonho feito de um beijo e de um carinho,
Criatura gentil, pomba de arminho,
Arrulhando nas folhas de um cipreste,

Ó minha mãe! Por que no mundo agreste,
Rola formosa, abandonaste o ninho?
Se as roseiras do Céu não têm espinho,
Quero ir contigo, ó lírio meu celeste!

Ah! se soubesses como sofro, e tanto!
Leva-me à terra onde não corre o pranto,
Leva-me, santa, onde a ventura existe...

Aqui na vida — que tamanha mágoa! —
O próprio olhar de Deus encheu-se d'água...
Ó minha mãe, como este mundo é triste!


NOITES AMADAS

Ó noites claras de lua cheia!
Em vosso seio, noites chorosas,
Minh'alma canta como a sereia,
Vive cantando num mar de rosas;

Noites queridas que Deus prateia
Com a luz dos sonhos das nebulosas,
Ó noites claras de lua cheia,
Como eu vos amo, noites formosas!

Vós sois um rio de luz sagrada
Onde, sonhando, passa embalada
Minha esperança, de mágoas nua...

Ó noites claras de lua plena
Que encheis a terra de paz serena
Como eu vos amo, noites de lua!


À ALMA DE MINHA MÃE

Partiu-se o fio branco e delicado
Dos sonhos de minh'alma desditosa...
E as contas do rosário assim quebrado
Caíram como folhas de uma rosa.

Debalde eu as procuro lacrimosa,
Estas doces relíquias do Passado,
Para guardá-las na urna perfumosa,
Do meu seio no cofre imaculado.

Ai! se eu ao menos uma só pudesse
Destas contas achar que me fizesse
Lembrar um mundo de alegrias doudas...

Feliz seria... Mas minh'alma atenta
Em vão procura uma continha benta:
Quando partiste m'as levaste todas!


CLARISSE

"Não sei o que é tristeza", ela me disse...
E a sua boca virginal sorria;
Ninho de estrelas, concha de ambrosia
Cheia de rosas que do Céu caísse!

E eu docemente murmurei: Clarisse,
Será possível que tu'alma fria
Ouvindo o choro da Melancolia
O ressábio do fel nunca sentiste?

Será possível que o teu seio rosa,
Nunca embalasse a lágrima formosa?
Ah! não és rosa, pois não tens espinhos!

E os olhos teus, dois templos de Esperança,
Nunca viram sofrer uma criança,
Nunca viram morrer um passarinho!


RENASCIMENTO (a Olegária Siqueira)

Manhã de rosas. Lá no etéreo manto,
O Sol derrama lúcidos fulgores,
E eu vou cantando pela estrada, enquanto
Riem crianças e desbrocham flores. ["desbrocham": em função da métrica]

Quero viver! Há quanto tempo, quanto!
Não venho ouvir na selva os trovadores!
Quero sentir este consolo santo
De quem, voltando à vida, esquece as dores.

Ouves, minh'alma? Que prazer nos ninhos!
Como é suave a voz dos passarinhos
Neste tranqüilo e plácido deserto!

Ah! entre os risos da Natura em festa,
Entoa o hino da alegria honesta,
Canta o "Te Deum", meu coração liberto!


OBRIGADA! (a Nininha Andrade)

..E tu rezas por mim! Como agradeço
Essa esmola gentil de teu carinho...
Como as torturas de minh'alma esqueço
Nessa tua oração, floco de arminho!

Eu te bendigo, ó santa que estremeço,
Alma tão pura como a flor do linho.
É a tua prece à mágoa que padeço
Asa de pomba defendendo um ninho!

Reza, criança! Junta as mãos nevadas
E cerra as níveas pálpebras amadas
Sobre os teus olhos como um lindo véu...

Depois, nas asas de uma prece ardente,
Deixa cantar minh'alma docemente,
Deixa subir meu coração ao Céu!


NOITE CRUEL (a meu irmão Henrique)

Morrer... morrer... morrer... Fechar na terra os olhos
A tudo o que se ama, a tudo o que se adora!
E nunca mais ouvir a música sonora
Da Ilusão a cantar da vida nos refolhos...

Sentir o coração ferir-se nos escolhos
De tormentoso mar — pobre vaga que chora! —
E no arranco final da derradeira hora,
Soluçando morrer num oceano de abrolhos.

Nem ao menos beijar — ó supremo desgosto! —
A mão doce e fiel que nos enxuga o rosto
Mostrando-nos o Céu suspenso de uma Cruz...

E perguntar a Deus na agonia e nas trevas:
Onde fica, Senhor, a terra a que nos levas,
Com as mãos postas no seio e os dois olhos sem luz?!


MANHÃ NO CAMPO (a Maria Nunes)

Estendo os olhos pelo prado afora:
Verdura e flores é o que a vista alcança...
— Bendito oásis onde o olhar descansa
Quando saudades do Passado chora.

Escuto ao longe uma canção sonora.
Voz de mulher ou, antes, de criança
Entoa o hino branco da Esperança,
Hino das aves ao nascer da Aurora.

Por toda parte risos e fulgores
E a Natureza desbrochando em flores, ["desbrochando": devido ao metro]
Iluminada pelo Sol risonho,

Recorda um'alma diluída em prece,
Um coração feliz que inda estremece
À luz sagrada do primeiro sonho!


NEVER MORE (a uma falsa amiga)

Não te perdôo, não, meus tristes olhos
Não mais hei de fitar nos teus, sorrindo:
Jamais minh'alma sobre um mar de escolhos
Há de chamar por ti no anseio infindo.

Jamais, jamais, nos delicados folhos
Do Coração como num ramo lindo,
Há de cantar teu nome entre os abrolhos
A ária gentil de meu sonhar já findo.

Não te perdôo, não! E em tardes claras,
Cheias de sonhos e delícias raras,
Quando eu passar à hora do Sol-posto:

Não rias para mim que sofro e penso,
Deixa-me só neste deserto imenso...
Ah! se eu pudesse nunca ver teu rosto!


NEVER MORE (II)

Ah! se eu pudesse nunca ver teu rosto!
E nem sequer o som de tua fala
Ouvir de manso à hora do Sol-posto
Quando a Tristeza já do Céu resvala!

Talvez assim o fúnebre desgosto
Que eternamente a alma me avassala
Se transformasse num luar de agosto,
Sonho perene que a Ventura embala.

Talvez o riso me voltasse à boca
E se extinguisse essa amargura louca
De tanta dor que a minha vida junca...

E, então, os dias de prazer voltassem
E nunca mais os olhos meus chorassem...
Ah! se eu pudesse nunca ver-te, nunca!


ORAÇÃO DA NOITE

Ajoelhada, ó meu Deus, e as duas mãos unidas,
Olhos fitos na Cruz, imploro a tua graça...
Esconde-me, Jesus! da treva que esvoaça
Na tristeza e no horror das noites mal dormidas,

Maria! Virgem mãe das almas compungidas,
Sorriso no prazer, conforto na desgraça...
Recolhe essa oração que nos meus lábios passa
Em palavras de fé no teu amor ungidas.

Anjo de minha guarda, ó doce companheiro!
Tu que levas do berço ao porto derradeiro
O lúrido batel de meu sonhar sem fim,

Dá-me o sono que traz o bálsamo ao tormento,
Afoga o coração no mar do esquecimento...
Abre as asas, meu anjo, e estende-as sobre mim.


TUDO PASSA

Aquela moça graciosa e bela
Que passa sempre de vestido escuro
E traz nos lábios um sorriso puro,
Triste e formoso como os olhos dela...

Diz que sua alma tímida e singela
Já não tem coração: que o mundo impuro
Para sempre o matou... e o seu futuro
Foi-se num sonho, desmaiada estrela.

Ela não sabe que o desgosto passa
Nem que do orvalho a abençoada graça
Faz reviver a planta que emurchece.

Flávia! nas almas juvenis, formosas,
Berço sagrado de jasmins e rosas,
O coração não morre: ele adormece...


TUDO PASSA (II)

O coração não morre: ele adormece...
E antes morresse o coração traído,
Mulher que choras teu amor perdido,
Amor primeiro que não mais se esquece!

Quando tu vais rezar, quando anoitece,
Beijas as contas do colar partido;
E o coração num trêmulo gemido
Vem perturbar a paz de tua prece.

Reza baixinho, ó noiva desolada!
E quando, à tarde, pela mesma estrada
Chorando fores esse imenso amor...

Geme de manso, juriti dolente!
Vais acordar o coração doente...
Não o despertes para nova dor.


AO PÉ DO TÚMULO (aos meus)

Eis o descanso eterno, o doce abrigo
Das almas tristes e despedaçadas;
Eis o repouso, enfim; e o sono amigo
Já vem cerrar-me as pálpebras cansadas.

Amarguras da terra! eu me desligo
Para sempre de vós... Almas amadas
Que soluçais por mim, eu vos bendigo
Ó almas de minh'alma abençoadas.

Quando eu daqui me for, anjos da guarda,
Quando vier a morte que não tarda
Roubar-me a vida para nunca mais...

Em pranto escrevam sobre a minha lousa:
"Longe da mágoa, enfim, no Céu repousa
Quem sofreu muito e quem amou demais".


REGINA MARTYRUM

Lírio do Céu, sagrada criatura,
Mãe das crianças e dos pecadores,
Alma divina como a luz e as flores
Das virgens castas a mais casta e pura;

Do Azul imenso, dessa imensa altura
Para onde voam nossas grandes dores,
Desce os teus olhos cheios de fulgores
Sobre os meus olhos cheios de amargura!

Na dor sem termo pela negra estrada
Vou caminhando, a sós, desatinada,
— Ai! pobre cega sem amparo ou guia! —

Sê tu a mão que me conduza ao porto.
Ó doce mãe da luz e do conforto,
Ilumina o terror desta agonia!


LÁGRIMAS (a meu irmão João Câncio)

Eu não sei o que tenho... Essa tristeza
Que um sorriso de amor nem mesmo aclara,
Parece vir de alguma fonte amara
Ou de um rio de dor na correnteza.

Minh'alma triste na agonia presa,
Não compreende esta ventura clara,
Essa harmonia maviosa e rara
Que ouve cantar além, pela devesa.

Eu não sei o que tenho... Esse martírio,
Essa saudade roxa como um lírio,
Pranto sem fim que dos meus olhos corre,

Ai, deve ser o trágico tormento,
O estertor prolongado, lento, lento,
Do último adeus de um coração que morre...


MEU PAI (a Eloy)

Desce, meu Pai, a noite baixou mansa.
Nem uma nuvem se vê mais no céu:
Aninharam-se aqui no peito meu,
Onde, chorando, a negra dor descansa.

Quando morreste eu era bem criança,
Balbuciava, sim, o nome teu,
Mas deste rosto santo que morreu
Já não conservo a mínima lembrança.

A noite é clara; e eu, aqui sentada,
Tenho medo da lua embalsamada,
Corta-me o frio a alma comovida.

Se lá no Céu teu coração padece,
Vem comigo rezar a mesma prece:
Tua bênção, meu Pai, me dará vida!


IRINEU

Num dia turvo assim foi que partiste
Cheio de dor e de tristeza cheio.
Eu fiquei a chorar num doido anseio
Olhando o espaço merencório, triste.

Não sei se mágoa mais profunda existe
Que esta saudade que me oprime o seio,
Pois a amargura que ferir-me veio
Naquele dia, ó meu irmão! persiste.

Os anos que se foram! Entanto, eu cismo
A todo o instante, no profundo abismo
Que veio a morte entre nós dois abrir.

Mas cada noite n'asa de uma prece,
Ou num raio de sol quando amanhece,
Vejo tua alma para o céu subir...


HOJE

Fiz anos hoje... Quero ver agora
Se este sofrer que me atormenta tanto
Me não deixa lembrar a paz, o encanto,
A doce luz de meu viver de outrora.

Tão moça e mártir! Não conheço aurora,
Foge-me a vida no correr do pranto,
Bem como a nota de choroso canto,
Que a noite leva pelo espaço em fora.

Minh'alma voa aos sonhos do passado,
Em busca sempre desse ninho amado
Onde pousava cheio de alegria.

Mas, de repente, num pavor de morte,
Sente cortar-lhe o vôo a mão da sorte...
Minha ventura só durou um dia.


DOENTE

A lua veio... foi-se... e em breve ainda,
Há de voltar, a doce lua amada,
Sem que eu a veja, a minha fada linda,
Sem que eu a veja, a minha boa fada.

Ela há de vir. Ofélia desmaiada,
Sob as nuvens do céu na alvura infinda
Do seu branco roupão, noiva gelada,
Boiando à flor de um rio que não finda.

Ela há de vir, sem que eu a veja... Entanto,
Com que tristezas e saudoso encanto
Choro estas noites que passando vão...

Ó lua! mostra-me o teu rosto ameno:
Olha que murcha à falta de sereno
O lírio roxo do meu coração!


SÚPLICA

Se tudo foge e tudo desaparece,
Se tudo cai ao vento da Desgraça,
Se a vida é o sopro que nos lábios passa
Gelando o ardor da derradeira prece;

Se o sonho chora e geme e desfalece
Dentro do coração que o amor enlaça,
Se a rosa murcha inda em botão, e a graça
Da moça foge quando a idade cresce;

Se Deus transforma em sua lei tão pura
A dor das almas que o Ideal tortura
Na demência feliz de pobres loucos...

Se a água do rio para o oceano corre,
Se tudo cai, Senhor! por que não morre
A dor sem fim que me devora aos poucos?

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes