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Ildásio Marques Tavares (Gongogi Ba 1940)

Tendo seu nome ligado ao teatro, à música e à ficção, ligou-o também à poesia e à história ao publicar, em edição limitada a dez exemplares, seus NOVE SONETOS DA INCONFIDÊNCIA, dos quais Donizete Galvão teve a feliz lembrança de me repassar uma cópia. Quem já visitou os verbetes de Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa perceberá como Ildásio se vale da familiaridade com a dramaturgia para construir os papéis dos principais personagens da conjuração, dando-lhes caricata caracterização sob a forma de monólogos sonetados, empreitada da qual se desincumbe com brilho, bravos e pedidos de bis.


GONZAGA

Meu coração é um louco inconfidente
pelas minas gerais dos seus amores.
Ele alvarenga. Ele claudica em dores.
Mas dorotéia sempre, impertinente.
Pois sempre há de chorar o bem ausente
em derrama brutal de dissabores,
personagem que busca seus autores
e não sabe porquê. É indiferente
que em Moçambique alguém me enrique. Leva-
se tempo em ruminar uma aspereza.
Mas quem jamais sonhou, jamais viveu —
Brasil é um pirilampo azul na treva.
Marília é um purgatório de beleza.
E ninguém sabe onde andará Dirceu.


CLÁUDIO MANUEL

Meu coração balança numa corda —
nunca mais vai parar de balançar.
É noite. A vila recolheu para deitar,
as dívidas pagando de um calhorda.
Eu morro e Vila Rica não acorda!
Acordo e Vila Rica foi deitar!
Antes morrer do que me envergonhar;
melhor matar o sonho em uma corda.
É tarde, Nise, é tarde. A liberdade
é só um nome escrito na bandeira,
uma distante e tênue claridade.
É tarde. Adeus. 'Stou só. A derradeira
lamparina apagou-se na cidade —
somente a morte é minha companheira.


O ALFERES

Meu coração é um arsenal de horrores
e dores que atropelam meu país.
Gargalha, puta! Zomba, meretriz!
O dia há de chegar dos teus senhores.
Errei aonde? Fui eu só que errores
cometi? Eu confesso tudo ao juiz
e hei de morrer sem medo. O povo diz
que é de medo que morrem os desertores.
Mais vale um bom soldado que uma tropa
de covardes; de traidores; fanfarrões.
A cada um lhe cabe sua Termópilas.
Não temo a morte, a vida me dá asco.
Só eu é que garanto os meus culhões?
Então só eu errei. Chamem o carrasco.


O SILVÉRIO

Meu coração é um metal sonante
e se eu tivesse trinta corações
eu venderia todos. De ilusões
jamais viveu quem é comerciante.
Patrão sempre há de haver. A cada instante
o mundo está trocando seus patrões.
Mas o ouro é quem seduz as multidões
e das nações é o doce governante.
Quero viver a vida. De que adianta
mexer a terra e revolver a messe
se a merda a mesma merda ficaria?
Só o dinheiro a todo o mundo encanta.
Se trinta corações hoje eu tivesse,
eu juro, todos trinta eu venderia.


MARIA DOROTÉIA

Meu coração é um pássaro selvagem,
não cabe na gaiola da poesia:
se canta rouxinol ou cotovia
pouco importa. Importa a criadagem.
Importa o meu vestido e que esta aragem
balance e beije a minha burguesia.
Sagrados laços prenderão um dia
este tenro rebelde. Outra viagem
hei de fazer que não de versos fúteis,
em sossego de vida sossegada.
Um velho e seus delírios tão inúteis
quão perigosos não conduzem a nada.
Os agradáveis hão de unir-se aos úteis.
Poesia? Deixa eu comer uma cocada.


O MARQUÊS

Meu coração tem um cetro e uma coroa:
dou mil cavalos por esse reinado
porém não dou nem um tostão furado
por um plano plebeu, um sonho à toa.
Querem que eu desça pra subir. Que boa
solução para um povo abastardado.
Mas eu sou nobre, rico e coroado —
loucura essa república me soa.
Se fosse pra ser rei ou imperador,
plantar meu trono eterno em Vila Rica...
Mas mudar pra pior? Não vale a pena.
Deixa o santo passar em seu andor.
Deixa o barco correr que é água serena.
E deixa estar pra ver como é que fica.


OS ALVARENGA

Meu coração ao cais não chega —
revolução não faz-se com poesia.
O beijo inebriante da Utopia
afirma. Mas a realidade nega;
enxerga quando a escuridão nos cega
e em plena noite quer nascer o dia.
A prática revoga a teoria —
alvarenga nas minas não navega.
Bárbara amiga, tu que me salvaste
ao menos do acicate do futuro,
diz-me que dia é hoje; onde almoçaste?
De que serviu nossa iluminação?
Mais vale a paz de espírito no escuro —
poesia nunca fez revolução.


O EMBUÇADO

Correi, todos correi que a morte é certa!
Nas estradas de Minas sangue corre.
Ensangüentada a liberdade morre.
Ouvi meu brado! Ouvi o aviso! Aperta
a repressão seu cerco. A morte é certa.
À nossa causa nada mais socorre,
nem que o sangue de Minas todo jorre,
jamais se fechará a porta aberta.
Embuçado nos céus, um deus ausente
abandonou seu povo, de repente;
não há mais sonho; não há esperança.
Só a sombra fatídica da morte
como urubu pousou em nossa sorte,
a corda balançando em doida dança.


LISBOA

Meu coração rompeu-se em minha mão
que talha, tira o lixo, faz beleza,
há de perpetuar esta aspereza,
liberdade qual bolha de sabão:
são tortas, carcomidas, porém são
dois pássaros libertos da incerteza;
dois arcanjos de glória e de grandeza,
Brasil amalgamado de paixão.
Se sou mulato, um dia serei branco;
se sou capenga, serei desenvolto;
se ninguém sou, um dia serei tudo —
jamais com meu cinzel na mão eu manco,
esculpindo, qual caracol revolto,
na pedra fria o meu delírio mudo.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes