|| ||S|| ||O|| ||N|| ||E|| ||T|| ||Á|| ||R|| ||I|| ||O|| ||||| ||||| ||||| ||

Manuel Bastos Tigre (Recife PE 1882-1957)

Com Emílio de Meneses tem por afinidades o humor (sua poesia satírica leva o pseudônimo de D. Xiquote) e o talento publicitário. Sua filha Helena Ferraz de Abreu (que também foi satirista e usava o pseudônimo masculino de Álvaro Armando) assim retratou o pai:


BASTOS TIGRE [Álvaro Armando]

Com relógio no prego e cerveja no lombo,
Vivendo na boêmia, explosivo por vezes,
Ao redor de Bilac e Emílio de Meneses,
Inflamava a Pascoal, punha fogo à Colombo.

Hoje, que o arranha-céu na poesia dá o tombo,
Sem luz os bigodões, nem vinhos portugueses,
É um tipo bonachão, tem hábitos burgueses,
Com relógio no pulso e trabalho no lombo.

Mas aos versos fiel, desse mal não se cura,
A inspiração mordaz, cheia de humor, vadia,
Guarda sob a expressão burocrática e sonsa.

E indago: os seus irmãos pela literatura
Que lhe negam a entrada à "sábia" Academia,
São amigos do Tigre ou amigos da... onça?


Eis uma amostra da tigresca veia humorística:


VOZ INTERIOR

Quem sou eu? de onde venho e onde, acaso me leva
O Destino fatal que os meus passos conduz?
Ora sigo, a tatear, mergulhado na treva,
Ou tateio, indeciso, ofuscado de luz.

Grão, no campo da Vida, onde a morte se ceva?
Semente que apodrece e não se reproduz?
De onde vim? Da monera? ou vim do beijo de Eva?
E aonde vou, gemendo, a sangrar os pés nus?

Nessa esfinge da Vida a verdade se esconde;
O espírito concentro e consulto a razão,
E uma voz interior, sincera, me responde:

— Quem és tu? Operário honesto da nação.
De onde é que vens? De casa. Onde é que estás? No bonde.
Para onde vais? Não vês? Para a repartição.


ESTA REPÚBLICA

É certo que a República vai torta;
Ninguém nega a duríssima verdade.
Da pátria o seio a corrupção invade
E a lei, de há muito tempo, é letra morta.

A quem sinta altivez, força e vontade
Ficou trancada do Poder a porta:
Mas felizmente a vida nos conforta
De esperança, uma dúbia claridade.

Porque (ninguém se iluda), "isto" que assim
A pobre Pátria fere, ultraja e explora,
Jamais o sonho foi de Benjamin.

Os motivos do mal não são mistério:
— É que a gentinha que governa agora
É o rebotalho que sobrou do Império.


REFORMA DO ENSINO

Mal o Congresso arranja uma reforma
Da Instrução malsinada e miseranda,
Outra já se prepara; e desta forma
Ela de Herodes a Pilatos anda.

Da mania reinante segue a norma
(Pois que da glória os píncaros demanda)
E de um grande projeto o esboço forma
O fecundo doutor Passos Miranda.

A nova lei ordena que os pequenos
Trilhem com aplicação e com cuidado
Seis anos de científicos terrenos.

Um parágrafo seja acrescentado:
— O saber ler é obrigatório; a menos
Que o rapaz se destine a deputado...


AMOR DE PRONTO

Suplicas que eu te escreva e que te diga
Se te não quero mais com o mesmo ardor.
Pedes "três linhas... uma frase amiga,
Um rápido bilhete... o quer que for."

Nada perdeu da intensidade antiga
Meu sempre novo e apaixonado amor;
O ofício de te amar não me fatiga
E além do mais eu sou conservador.

Dizes estar de tanta espera farta;
Que os homens, às amantes sempre infiéis,
Só merecem (que horror!) que um raio os parta.

Não! Meu silêncio tem razões bem cruéis:
Ando "por baixo" e custa cada carta
Tinta, papel e um selo de cem réis.


De sua habilidade como tradutor vai esta amostra:


LA PULGA [Lope de Vega]

Picó atrevido un átomo viviente
Los blancos pechos de Leonor hermosa,
Granate en perlas, arador en rosa,
Breve lunar del invisible diente:

Ella dos puntas de marfil luciente
Con súbita inquietud bañó quejosa,
Y torciendo su vida bulliciosa,
En un castigo dos venganzas siente.

Al expirar la pulga, dijo: "¡Ay triste,
Por tan pequeño mal dolor tan fuerte!"
"Oh pulga, dije yo, dichosa fuiste;

Detén el alma, y a Leonor advierte
Que me deje picar donde estuviste,
Y trocaré mi vida con tu muerte."


A PULGA [tradução de Bastos Tigre]

Fero e atrevido um átomo vivente
Picara o colo de Leonor formosa,
Deixando na alva pele cetinosa
A leve marca de invisível dente.

Ela, molhando os dedos cor-de-rosa,
Entre eles colhe a mísera imprudente;
E a comprimi-la, voluptuosamente,
Doce vingança, em dar-lhe a morte, goza.

Morrendo, exclama a pulga: Ó sorte crua!
Duro castigo e leve culpa é este!
E eu digo: — Ah! Bem ditosa é a sina tua!

Dize a Leonor quanto te invejo a sorte!
Se ela deixa morder onde mordeste,
A vida eu trocarei por tua morte.


Mas o Tigrão também ficou célebre por sua produção "séria", lapidar
tanto no acabamento do soneto como na filosofia quase proverbial
encapsulada nos versos rigorosamente parnasianos, porém descomplicados e
despojados do preciosismo de seus colegas de escola. Mesmo assim, o
poeta não se furtou a defender o parnasianismo contra a ofensiva
modernista, assinando este que é um autêntico manifesto antimoderno:


POESIA

Embora a turba iconoclasta, em fúria,
Pretenda depredar os teus altares,
Resistirás! Sobrepairando à injúria,
Farás honra aos teus numes tutelares.

Dos teus próprios fiéis fere-te a incúria;
Abandonam-te às chufas, aos esgares
Dos novos corifeus de língua espúria,
De idéias parvas e expressões alvares.

Mas viverás, Poesia soberana,
Pelo esplendor solar que te ilumina,
Dando-te a excelsa forma parnasiana.

Não tombará teu nobre culto em ruína,
Pois és, Poesia, o anseio da alma humana
De conseguir a perfeição divina.


Outros exemplos do espirituoso livre-pensar de Bastos Tigre:


ENVELHECER...

Entra pela velhice com cuidado,
Pé ante pé, sem provocar rumores
Que despertem lembranças do passado,
Sonhos de glórias, ilusões de amores.

Do que tiveres no pomar plantado,
Apanha os frutos e recolhe as flores;
Mas lavra, ainda, e planta o teu eirado,
Que outros virão colher quando te fores.

Não te seja a velhice enfermidade.
Alimenta no espírito a saúde,
Luta contra as tibiezas da vontade.

Que a neve caia, o teu ardor não mude.
Mantém-te jovem, pouco importa a idade;
Tem cada idade a sua juventude!...


ENVELHECER... (II)

Boa noite, velhice, vens tão cedo!
Não esperava, agora, a tua vinda.
Eu tão despreocupado estava, ainda,
Levando a vida como num brinquedo...

Tens tão meigo sorriso e um ar tão ledo;
Nos teus cabelos como a prata é linda!
Ao meu teto, velhice, sê bem-vinda!
Fica à vontade. Não me fazes medo.

E ela assim me falou, em tom amigo:
— Estranha me supões, mas, em verdade,
Há muito tempo que, ao teu lado, eu sigo.

Mas, da vida na estúrdia alacridade,
Não me viste viver, seguir contigo...
Eu sou, amigo, a tua mocidade.


VITA BREVIS

"A vida — dizes tu — tão curta é a vida!
Setenta anos... oitenta... e é a morte, é o nada!
Não vale a pena tão penosa lida
Para tão breve e rápida jornada"...

É que medes a vida mal medida,
Aos teus cinco sentidos limitada,
Entre um tálamo e um túmulo vivida,
Pela ambição e o egoísmo partilhada.

Mas vive além da tua natureza,
Foge à matéria e o espírito exercita
Em ações de Bondade e de Beleza;

Belo e útil faze quanto em ti palpita
E sentirás, com glória e com surpresa,
Como a vida é imortal, indefinida...


OUVE O TEU CORAÇÃO

Não esperes achar compensações na terra:
Se fizeres o bem, prêmio nenhum terás.
Os que sobem contigo os aclives da serra
Não te virão valer, se ficares atrás.

Aconselha-te alguém? É aquele que mais erra;
Ensina-te a verdade? É o mais falso e mendaz.
E o que, violento e hostil, te excita e incita à guerra
É o mesmo que desfruta as delícias da paz.

Mas não culpes ninguém. É a vida. Aceita a vida...
Como sofres, também os outros sofrerão,
Que há na maior ventura uma dor escondida.

Teu cérebro consulta, ouve o teu coração,
E, em ti mesmo, acharás a energia perdida,
A censura, o aplauso, o castigo, o perdão.


INTRANQÜILIDADE

Este sentir em volta o mundo estreito,
Este ansioso buscar diverso norte,
Este amaldiçoar a própria sorte
Sempre a julgar malfeito o que foi feito,

Este querer, o forte, ser mais forte
E, no melhor que tenha, achar defeito,
Este eterno viver insatisfeito
Do que a vida maldiz, mas foge à morte.

Tudo isso mostra bem que dalma o prisma
Tem diferente cor em cada face;
Que a mente humana em dúvidas se abisma.

É que a ambição, sem norma e sem medida,
Gera a intranqüilidade e, desta, nasce
A estrênua luta que mantém a vida.


É TARDE

De erro em erro transcorre a mocidade:
É o erro o nosso pão de cada dia;
E, quando o acerto alheio se copia,
Longe se está do acerto e da verdade.

Vão-se os deuses de nossa idolatria;
Vêm as traições do amor e as da amizade;
Uma boca, mentindo, nos persuade,
E num olhar que ilude se confia.

Novas lições aprendem-se, contudo,
Neste, da vida, prolongado estudo
Em que a luz, pouco a pouco, se revela.

Erros... lições... E escoa-se a existência...
Vem-nos, enfim, com os anos, a experiência,
Porém, já agora, que faremos dela?


MISTÉRIO DA VIDA

Procuras desvendar, cérebro humano,
O segredo das outras existências;
Com as teses e as hipóteses das ciências
Penetras do mistério o fundo arcano.

Mostra-te o acerto erradas conseqüências;
Novo engano corrige o velho engano;
Mas não recuas e, em labor insano,
Sondas almas, espíritos, consciências.

E estudas e investigas, de tal sorte
Que, transpondo a amplidão indefinida,
Em demanda do caos traças o norte.

Descobres, entre as sombras escondida,
A morte e quanto vem após a morte.
E da vida? E que sabes tu, da vida?


LUTA INTERIOR

Quem vive dentro em mim que ruge e clama
Ou murmura, em soluços, uma prece?
Que, ora, nas fráguas do prazer se inflama,
Ora torturas infernais padece?

E em mim, urdindo das paixões a trama,
Tece intrigas de amor e de ódio as tece.
Não sei se me quer mal, não sei se me ama;
Sei que a minha vontade lhe obedece.

É um ser somente? Serão dois? suponho
Ver e ouvir entre as brumas de um mau sonho.
Peleja singular, áspera e bruta.

E imagino, em presença desta cena,
Que sou a arena e nada mais que a arena
E que um anjo e um demônio estão em luta.


EGOÍSMO

É por meu próprio bem que eu quero o bem alheio;
Porque busco ser bom é que me torno egoísta,
Pois, a todo momento, olhando o mundo, anseio
Transformar em prazer o que me passa à vista.

O pranto me horroriza, os lamentos odeio,
Apavora-me a dor que os corações contrista;
Quanto o prazer é belo, o sofrimento é feio,
À luz espiritual do meu senso de artista.

E jamais direi "não" a quem meu "sim" procura;
Compelido a julgar, prefiro ser mau juiz,
A criar com o castigo uma nova amargura.

E se a alguém já fiz mal, a mim mesmo é que o fiz;
Pois é, do meu egoísmo, a suprema ventura
Ver, em redor de mim, todo mundo feliz.


ETERNA INCÓGNITA

Não sei quem sou nem sei por que motivo
Vim ao mundo e o que nele vim fazer.
Sei que penso e, portanto, sei que vivo,
Neste anseio instintivo de viver.

Porque procedo do homem primitivo,
Há rugidos de fera no meu ser.
Bom e mau, triste e alegre, humilde e altivo,
Não me posso, a mim mesmo, compreender.

Pois se, de mim, não sei causa e destino,
Que dos outros, do mundo, saberei?
Que definir, se a mim não me defino?

E sigo, ao léu da vida, a ignota lei,
Descrendo das verdades que imagino
E acreditando em tudo o que não sei.


O EXCELSO INVENTO

Homem! Venceste a terra, o ar e o oceano;
Dominaste a água, o fogo, a luz, o vento,
Puseste asas no corpo: — o aeroplano;
Fizeste o rádio: — asas do pensamento.

Foste da ameba ao sol: de arcano a arcano,
Traçaste as leis do etéreo movimento,
Homem divino, ou semideus humano,
Corrigiste a Criação com o teu Invento!

Mas, ai das tuas invenções supernas!
Vivemos como os homens das cavernas,
De morte e roubo, corruções e engodos.

Quando farás com que da terra farta,
Tudo fraternalmente se reparta
E o que a terra produz seja de todos?


DEUS HUMANO

Assusta-me este Deus de barba imensa,
Pai severo e tirano à moda antiga,
Que com o fogo do inferno os maus castiga
Porém, na terra, os bons não recompensa.

Este Deus que a adorá-lo nos obriga,
Mas que só ama a quem o adula e incensa
Nunca há de ser o Deus da minha crença
Que eu venere e entre cânticos bendiga.

O Jeová que no Antigo Testamento
Os profetas nos pintam, truculento,
É um velho Deus, motivo de pavor.

Moço é o meu Deus, de eterna juventude:
Perdoa. Todo o mal muda em virtude.
De tão humano, é quase um pecador.


CRER

Entre o crer e o não crer o homem vacila;
E vacila e duvida porque pensa.
Não pode a mente repousar, tranqüila,
Nem mesmo na certeza da descrença.

Ora, na Fé, o espírito se asila;
Crê. Da Razão as deduções dispensa...
Ora, analisa, decompõe, destila
E, da ciência ao crisol, exclui a crença.

Mas a crença subsiste, onipresente;
Argumentos aos mil o sábio emprega
E, afirmando o "não crer", é, em suma, um crente.

Deus, como a luz do sol, deslumbra e cega;
E, por querer fitá-lo frente a frente,
O ateu se ofusca, fecha os olhos — nega.


LUTA

A vida afronta, face a face, e luta!
Do inimigo o vigor não te intimide;
De firme braço e de alma resoluta,
Antes que sejas agredido, agride!

Afronta, a frio, calmo, a força bruta;
Nunca deixes insulto sem revide.
E fraco, embora, no calor da luta,
Não mostres, nunca, que tens medo à lide.

Vencer ou ser vencido — eis o dilema
Na existência — do instante da partida
Até chegar da estrada à meta extrema.

Não te humilha a batalha, por perdida;
"Lutar ainda!" eis, do homem forte, o lema,
Pois a vida sem luta é a morte em vida!


A SERPENTE E A RÃ

De olhos vítreos, parados, a serpente
Fita a mísera rã hipnotizada
E esta, aos poucos, aos saltos, inconsciente,
Busca da morte a pérfida emboscada.

E o batráquio ama a vida! O bem que sente
No lodoso marnel de água parada!
Ele não quer morrer! E a serpe, em frente,
Chama-o... Para outra vida ou para o nada?

Fascinação? Mirífica magia?
"Factum"? Destino? o nome pouco importa...
Como às rãs há uma serpe que me espia.

Vivo! Amo a vida em meu paul! Sou forte!
A morte odeio e evito-a, e, cada dia,
Mais um passo vou dando para a morte...


PECADORES

Dois corpos num só corpo confundidos.
Duas vontades numa só vontade.
Uma fusão completa dos sentidos
Num momento que vale a eternidade.

De cuidados e penas esquecidos,
Nos estos do delírio que os invade,
Ei-los na mesma chama consumidos
Na pira, em rubro ardor, da mocidade.

— Vil pecado de amor! o justo grita.
E a Virtude: — Satã na carne habita!
E eis que um clamor de escândalo reboa.

Deus, porém, do seu trono constelado,
Ante a glória e a beleza do pecado,
Sorrindo, os pecadores abençoa.


SUBCONSCIÊNCIA

Existe em nós um grande amor adormecido
Que sentimos vibrar dentro do nosso eu;
Será recordação de um afeto perdido
Que tivemos um dia e desapareceu?

Penso, às vezes, ouvir, num murmúrio dorido,
A voz de um velho amor, muito meu, todo meu,
Sem me lembrar, sequer, que ele tenha existido,
Mas saudoso de um bem que ele jamais me deu.

Terá vivido em mim numa pregressa vida,
E é, hoje, qual o aroma, a essência de uma flor,
Como num vaso, na minha alma recolhida?

Sei apenas que o sinto e não tem o travor,
O ciumento azedume, a fereza homicida
Do capricho brutal que chamamos amor.


IMMUTABILIS AMOR

Amor é sempre amor, por mais que viva;
Será maior, menor, mas sempre amor.
Não muda a sua essência primitiva,
Possa, embora, mudar a forma ou a cor.

Nas reações da química afetiva
Pode haver mais calor, menos calor;
Mas de nada se acresce nem se priva,
A incorpórea molécula do amor.

Não muda o que era amor para amizade;
Esta é fria, serena claridade,
Esse é flama de ignífero esplendor.

Bruto e sensual ou místico e sublime,
Role na lama, avilte-se no crime,
No ódio e na morte — amor é sempre amor.


DEFINIÇÃO

Amor é mal e é mal que não tem cura;
Mas, sendo mal, sofrê-lo nos faz bem.
Chora o amante, se o amor lhe dá ventura
E ri da dor, se dele, a dor lhe vem.

O amor é vida e leva à sepultura;
É doce filtro, o amor, e fel contém;
É luz e faz viver em noite escura,
Tonto, a tatear, o alguém que ama outro alguém.

Apesar de cego o amor, vê o invisível;
Por firme que se mostre, é sempre vário;
É Deus e faz, de um santo, um pecador.

Inerme e fraco, é força irresistível;
Sendo, pois, a si mesmo tão contrário,
Quem é que pode definir o amor?...


SAUDADE

Infeliz de quem vive sem saudade,
Do agridoce pungir alheio às penas,
Sem lembranças de amor e de amizade,
Hoje vivendo o dia de hoje, apenas.

Triste de ti, ancião, que te condenas
A mole insipidez da ancianidade
E não revives na memória as cenas

De prazer e de dor da mocidade!
Ter saudade é viver passadas vidas,
Percorrendo paragens preferidas,
Ouvindo vozes que se têm de cor.

Sonha-se... E em sonho, como por encanto,
A dor que nos doeu já não dói tanto,
Gozo que foi é gozo inda maior.


FELICIDADE

Feliz do que foi sempre desgraçado,
E só viu, na existência, a desventura,
Pois, este, nem por sonhos, conjetura
No que consiste ser-se afortunado.

Se não teve prazeres no passado,
Reviver o passado não procura;
Que a vida é sempre má se lhe afigura.
E, sem consolo, vive consolado.

Triste é os tempos vividos, venturosos,
Comparar às agruras do presente;
Que mágoas só as tem quem teve gozos.

O mal é nada mais que o bem perdido;
Não dói tanto a desdita permanente
Como o não ser feliz, já o tendo sido.


PALMEIRA

Olho a nobre palmeira, em cujo cimo, a fronde
Se agita a farfalhar; e, ora canta e assobia,
Ora esbraveja, em fúria, ou solta, de onde em onde,
Gemidos de uma atroz, lancinante agonia...

Que alma contraditória em teu cerne se esconde
Que te faz rir, alegre, ou suspirar, sombria?
E a palmeira imperial, humilde, me responde:
— Não sou eu! Quem me agita a fronde é a ventania!

Olho, agora, aos meus pés, uma couve tronchuda
As folhas oscilando em leve movimento,
Para cá, para lá, conforme o vento muda.

— Esta, digo eu, não tem prazer nem sofrimento!
E ela, abrindo num riso a face repolhuda,
Impa de orgulho e diz: — Sou eu quem faz o vento!


A LAGARTA

Por sobre as ramas da árvore coleia
A lagarta. E a colear, viscosa e lenta,
O seu aspecto as vistas afugenta
E de tocá-la a gente se arreceia.

Verde-negra, amarela, azul, cinzenta,
Quando o sol as folhagens incendeia,
Sobe a aquecer-se, e à luz solar, aumenta
O asco de vê-la repulsiva e feia.

Mas eis que a encerra do casulo a tumba;
Não penseis que, de todo, ela sucumba
No seu sepulcro eternamente presa.

Qual, do corpo, alma livre, desprendida,
É borboleta: evola-se a outra vida,
Voando feliz, na glória da beleza.


CONTRIÇÃO

Não sei a quanto mal dei eu motivo,
Danos que fiz e prantos que causei;
Mas se homem sou e, se entre os homens vivo,
Vivo do erro sujeito à humana lei.

Soberbo fui, querendo ser altivo?
Quis ser justo e o inocente castiguei?
Fui, servindo à maldade, ao bem nocivo?
— Vivo e vivi. É tudo quanto sei.

Quem há que os rumos do destino mude?
Dependesse de mim, fora eu feliz
Na divina volúpia da virtude.

Não me castigarás, Sereno Juiz,
Pelo bem que não fiz porque não pude,
Nem pelo mal que sem querer eu fiz.


AÇÃO DE GRAÇAS DO POETA

Graças a vós Senhor, pela ventura
De poder isolar-me na Poesia,
Ter nela o alívio à provação mais dura,
E, no Sonho, o meu pão de cada dia.

Sentir albor de luar na noite escura,
Achar descanso e paz na nostalgia
E ver, até no pranto da amargura,
Um consolo vizinho da alegria.

Graças a vós por este dom divino
Que me defende do destino adverso,
Tornando-me senhor do meu destino.

E se em mim próprio, ruge o mal perverso,
Puro, alegre, feliz, o mal domino
E alo-me ao Céu nas asas do meu verso.


PAIXÕES

Por que se chama da Paixão de Cristo
A lutuosa Sexta-Feira Santa?
Onde a paixão que nos surpreende e espanta
Nesse drama, há cem séculos, previsto?

O sacrifício do Calvário é um misto
De exaltação que chora e dor que canta;
Treva que morre e Sol que se levanta,
Num tumulto de mundos nunca visto.

A luz os velhos ídolos fulmina;
Mas não destrói as ambições insanas,
A fúria do ódio pérfida e assassina.

E, homem cristão que a tua fé profanas,
Pensas "um dia" na Paixão divina
E a vida vives nas paixões humanas.


A CRUZ

Era o instrumento vil de suplício infamante,
Condenava-se à cruz o assassino, o ladrão.
Mas ia ter Jesus o atro martírio, diante
Do crime de pregar do Templo a destruição.

Ele próprio a transporta ao Calvário distante
E à medida que vai, pelos calhaus do chão
Arrastando-a, a sangrar, — o madeiro aviltante
Faz-se leve, transluz, num eterno clarão.

E quando nele, enfim, abre os braços Jesus,
O corpo do Homem-Deus toma a forma da cruz
Desde a cabeça aos pés, e duma à outra mão.

Desse instante e, a seguir, pelo tempo infinito
O instrumento de morte, oprobrioso e maldito,
Com Jesus se confunde; e é Vida e é Redenção.


O PRIMEIRO DENTE

A mamãe bate palmas de contente,
Do papai rejubila a alma festiva;
Cantam risos pelo ar... Que é que motiva
Essa emoção que alegra toda gente?

É que, abrindo a boquinha, sorridente,
Bebê, no róseo alvéolo da gengiva,
Deixou ver a promessa, a perspectiva,
O breve ensaio do primeiro dente.

Agora, a acompanhar-lhe o crescimento,
Dia a dia a mamãe enternecida
Terá para o dentinho o olhar atento.

Outro virá depois... outro em seguida...
E ei-lo, o Bebê, com o sólido instrumento
Com que no mundo se defende a vida!


MATER NUTRIX

Mãe, ao teu filho dá teu farto seio!
Com o teu leite é a tua alma que lhe dás!
Seja, Mãe, teu orgulho e teu enleio
Dar-lhe o pão que em ti própria amassarás!

Não lhe sabe tão bem o leite alheio
Que em suas gotas sangue alheio traz.
— Linfa que escorre do materno veio —
Só teu leite o teu filho satisfaz!

Tiveste a glória da Maternidade,
Prêmio, bênção divina do Senhor!
Sê Mãe em toda a pompa e majestade!

Como a planta dá seiva à própria flor,
Sê a "ama" do teu filho que, em verdade,
"Ama" é do verbo amar... provém de "Amor".


OS BOMBEIROS

Fogo! Vibram clarins notas rubras e quentes.
Um minuto passou. Silvo. Arrancada. E, agora,
Em disparada vão, pelas ruas em fora,
A dar combate ao fogo, os bombeiros valentes.

Alto! Soam sinais. O cenário apavora,
Alongam-se no espaço ignívomas serpentes.
E os soldados de amianto, à chama indiferentes,
Contra a cratera em fogo, investem sem demora.

O assoalho ameaça ruir; do teto as brasas chovem!
Quebra-se um caibro, rola uma trave incendiada
E, calmos, no labor, sem pavor, sem receios,

No braseiro infernal os bombeiros se movem,
Mais heróis que os da guerra — expondo a própria vida
Na ambição de salvar a vida e os bens alheios.

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: elson fróes