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Bruno Lúcio de Carvalho Tolentino (Rio de Janeiro RJ 1940)
Instado por um ferrenho antitropicalista, respondi com o seguinte
soneto:
SONETO 533 GENIALÓGICO
Não brigo com baianos ou concretos
por causa de paulistas ou troianos,
nem brigo com tupis ou paulistanos
por causa de antropófagos diletos.
Só brigo por mim mesmo e meus objetos
exóticos, insólitos, insanos,
que não acham piloto noutros planos
e são dos regabofes só dejetos.
Sou individualista por demais
e menos engajado que um vidente,
de vez que cego estou... para os normais.
Mas como sou humano, de repente
alguém também sem mestres e sem pais
me esbarra e reconhece por parente...
Essa atitude independente se torna particularmente adequada ao caso
Tolentino, tantas as polêmicas que protagonizou entre proponentes e
oponentes desta ou daquela corrente. Friamente observando, a poesia de
Tolentino, com todas as Medusas e Minotauros emoldurados por primoroso
arcabouço formal, resistiria tranqüilamente ao crivo dum estrangeiro que
compendiasse nossa literatura (e sou, mais que estrangeiro, quase um ET)
mesmo sem a espuma em que o poeta (se) debateu, donde justificar-se uma
seleção de sonetos como a que se segue.
O NARRADOR CONFESSA
A SIMBIOSE DAS ALMAS (Não é assim que ele fala; não é o sotaque, o acento de quem vive e mata à bala. No entanto, todo lamento vindo dos porões da alma, por mais delirante e horrendo, acaba se parecendo à música algo mais calma das dores transfiguradas. Meu Numeropata disse toda espécie de sandice, algumas logo adotadas, musicadas pelas minhas: mexerico entre vizinhas...) O MONSTRENGO "Tive tudo o que quis, e o que não quis também, é claro; mas ressalvo a audácia com que arranquei à pedra da desgraça uma felicidade de infeliz; martelei pedra viva e dei-lhe a face que esculpi: tive assim, não o que quis, mas o rosto que tenho, traço a traço, fui eu que o inventei, fui eu que o fiz! A Medusa morreu: matei-a eu e a espécie de Perseu que fiquei sendo não foi a ilustre morta que me deu. Fui eu mesmo que fiz este monstrengo, o inútil monumento é todo meu. Eu, modelo, martelo e monumento!" O ESPÍRITO DA LETRA "Ao pé da letra agora, em minha vida há a morte e uma mulher... E a letra dela, a primeira, me busca e me martela ouvido adentro a mesma despedida outra vez e outra vez, sempre espremida entre as vogais do amor... Mas como vê-la sem exumar uma vez mais a estrela que há anos-luz se esbate sem saída, sem prazo de morrer na luz que treme?! O monstro que eu matei deixou-me a marca, suas pernas abertas ante a Parca aparecem-me em tudo: é a letra M, a da Medusa que eu amei, a barca sem amarras, sem remos e sem leme..." A QUEDA (4) "Quando tudo era brisa no arvoredo, fuga no mato, jogo de menino, pousei a mão no fogo feminino e acabou-se de vez todo brinquedo, tudo virou fogueira. Tive medo. Tive a visão que ofusca o peregrino, tive a rosa no alvor do seu segredo e um terror indiscreto e repentino como o dobre do Ângelus no ar. Mas um anjo caído é um moribundo, mal se convence que caiu, vai dar no ponto mais estranho deste mundo, no avesso do jardim perdido: ao fundo o roseiral que arde sem queimar." A CORÇA "Demorou-se a crescer entre meus braços a ninfa proverbial e peregrina que embriaga os sentidos e alucina os olhos assombrados como escassos para conter a imagem que os domina. O fantasma ideal desses abraços prolongados e breves como a sina da coisa moritura, os olhos baços refletiram-no enfim, mas como a poça em que pousa de leve a lua alta. Foi tudo confusão. Ah, mas que força, que graça delicada e tão estática, que elegância de estátua tinha a corça que fingia escapar em sobressalto!" LEGADO DE ÁCTEON "Pelo banho silvestre da Artemisa, pela nudez da lua, o perdigueiro enlouquecido, estraçalhando a brisa... O dente do desejo é traiçoeiro e sempre tão urgente e tão ligeiro quanto incauto: a surpresa diviniza, mas o corpo, esse é feito do braseiro mais breve e tudo, tudo vira cinza! A luz que te alucina não precisa de ti. Não, não te chegues tanto à beira da perfeição, ou nunca cicatrizas. Pobre quem se descobre o companheiro do eterno de repente e sem aviso, que o eterno neste mundo é passageiro." REMORSOS "Esplendor, geometria do perfeito, que te deste ao delírio que se enfia num corpo, à soluçada parceria de uma alma que se esbate contra um peito, e desfolhaste, sem melancolia, gota a gota de sal sobre o meu leito, as pétalas mais brancas da alegria, simulacros do sol no corpo eleito; graça que uniste os lábios da ferida no beijo da alma livre e penetraste o coração da noite apetecida, graça frágil do tronco quase haste, beleza, esfinge breve e proibida que eras surda e que nunca perguntaste." O GNOMO "Não necessito mais contradizer-te, minha alegria, me deixaste só como a um gnomo empedernido, inerte entre o gradil e a névoa de ouro em pó de mais um redundante, rococó, fátuo cair-do-sol... Que mais dizer-te? Que um vaga-lume ou outro mais solerte vem visitar-me por engano ou dó? Nada há mais a dizer, minha alegria... Bem que eu gostava de brincar de roda, mas fui virando estátua e noite e dia vou te imitar aqui, sozinho, à moda dos gnomos de pedra... Ah, quem diria, há imitações que duram a vida toda!" A MOLDURA VAZIA (4) "Hoje sei que o desastre está completo: não olhar-te nos olhos é impossível. No mundo inteiro e até neste soneto anda o teu nervo ótico e o visível é teu, a parasita como enxerto subindo por um tronco inamovível, pelo tronco de pedra que é o meu peito. Deita-te nele ainda, imperceptível, e eu sinto a olho nu aquele jeito que tinhas de me olhar. É bem possível que mesmo do outro lado do imperfeito nossos olhos se encontrem: o invisível também é coisa tua, o último leito em que hei de ver-te nua e inacessível." ÍMPAR "E eu, que odeio tudo o que recordo em meu penoso, sórdido exercício, a harmonia mais frágil que difícil, mais passível de encanto que de acordo; eu, que hoje escuto o rouxinol e o tordo entre grades e névoas, desde o início sabia que a beleza é um precipício e que o mesmo Verão consume a cor do efêmero que acende... Eu, que aceitando a imperfeição de tudo iria dar com a perfeição moral de vez em quando, agora, aqui, na luz crepuscular deste lugar vazio, tenho um bando de visões, só não posso ter um par." A VIDA TODA DE COSTAS (1) O poeta que cantou Jeanne Duval conheceu nossa herança desastrosa pelo que é: a doença da rosa cognitiva, a contínua flor do mal ancestral, que à delícia sanguinosa deu nova força sacrificial. Baudelaire, nossa "mater dolorosa", à sombra de um furor sacramental confessou seu degredo e confessou-se nele e por ele: ao abraçar o abismo como um salgueiro triste, dele trouxe o canto comovido que ele quis nefando, desolado e agridoce como a dança macabra do seu cisne. A VIDA TODA DE COSTAS (6) Tudo é memória. Porque a vida corta constantemente o tempo em dois, de instante a instante é procissão itinerante em busca de si mesma. A cada porta (um labirinto é assim, desconcertante, cheio de portas...) cada imagem morta vai resumindo a vida e não importa que o monstro não se mostre ao visitante do longo corredor que recomeça a cada vez que acaba, ninguém nunca há de olhá-lo nos olhos: a cabeça pendente deixa à mostra só a nuca. De costas, ruminando o que perdeu, o Minotauro é como tu e eu.
Û Ý ´ ¥ Ü | * e-mail: elson fróes |