|| | ||S|| | ||O|| | ||N|| | ||E|| | ||T|| | ||Á|| | ||R|| | ||I|| | ||O|| | ||||| | ||||| | ||||| | || |
Jorge Eduardo Figueiredo de Oliveira Wanderley (Recife PE 1938-1999)
Médico meticuloso, trata as palavras com precisão cirúrgica e olho
clínico. Deixou poucos sonetos, dos quais vai uma amostra para análise.
ROBINSON Toda a certeza de que estarei só por todos os mais dias dos meus dias, todo o recurso-a-me-lembrar e o pó dessas lembranças, última valia, as providências a que me resigno e de que vivo, adâmico e exilado como exilado Adão provou do indigno pão que o suor provê, humanizado, todo o caminho do retorno a mim e a meus saberes e aos da minha raça, da mágica engrenagem do jasmim ao gatilho, estampidos e fumaça, toda a glória que a solidão semeia e agora essa pegada aqui na areia! MÁQUINA Deram-lhes máquina curiosa, essa que é dos seus corpos. Não interligados, encontram pares, mas um dia cessam; passam por um percurso que, somado, chamam de História e no correr do tempo vão registrando como em seus poemas ( que uns poucos querem frio como um templo sem música e sem alma, todo esquema de pétrea arquitetura no vazio). Do que não sabem, amam perguntar, magicar, intuir, ver pelo escuro, tocando às vezes certo fugidio não-saber, com escamas de voar, e asas de peixe e jornais do futuro. NADA VÊEM Pois se entre todos vou desconhecido, No além de minha condição negado, Eis que por duas vezes vou servido De recusa e cegueira, e acostumado. Melhor: a quem recusa, recusado Faço que fique no seu mal vencido, E a quem não vê, pobre desentendido, Engano, enquanto vim assinalado. Tudo o que dizem, tenho conhecido, Sei quando calam tudo que hão calado. Vá lá que ceguem, já que entorpecido Têm seu sentido, em si tão limitado; Mas que neguem quem seja, tem nutrido Minha vingança e meu poder chamado. PÁTIO SECRETO Vejo-o talvez em sonho, quando nada Parece mal: o mesmo pátio, as sombras, O chafariz envelhecido, a pátina Que a algum luar de mármore responde. O muro, o musgo, a vinha, o abandono Da pedra e a quase fria madrugada Passada em névoa ao cinzento do outono, O sono que flutua em tudo, em nada. Tudo está morto e vivo pela imagem, Recanto, quadro, música, memória Que visito dormindo e sem matéria. Outros o viram, também. De passagem Deixaram algo oculto a sua história, Marca secreta, assinatura etérea. ADERIR Amo o que neles já vi com desprezo, O uso das mãos, a música, o inexato Poder de seus mistérios e seu vezo De amar sem conta contra a estrela e o fato; Desprezo e amo: acaso mimetizo Os que a tal plano vim para negar? Perco na gaia terra garbo e siso E adiro ao solo que era de deixar? Amo e não amo e tudo em mim questiona Missão e crença, ardil e decisão. Mas se me sabem, sofro; e se me atrevo No além-mudez, sossego me abandona: Daí, silêncio erijo e solidão, E em solidão me deixo, erijo, escrevo. IR Já quase me convocam e retorno sem saber bem do que me trouxe aqui. Não aprendi as árvores e vejo e nem às que imagino me resigno. Talvez o sofrimento esteja nisso, nessas distâncias entre o verde e o sonho. Do que disponho, o compromisso foge, foge a linguagem, vai negada a rosa. Vou sem ter dito, vou sem ter ouvido e nada em minha nave me compensa. Fui nesta fala ardente e silencioso, no entendimento fui ânsia e fracasso: ah, quem tanto pudesse que fartasse de voz e de palavra esta partida. [ININTITULADO] Vale voltar à mentira do amor agora que sabemos que é mentira. Nada se põe a mais nesse tesouro e nada (que é viver), nada se tira. Os pretéritos selos, o que ouvira dizer o nosso ouvido, o sangue mouro de uma bravura que em nós, só, delira, a mancha no estandarte, que é desdouro, reviva tudo! Pouco importa, quando nós dois já quase mortos nos tocamos com a mão de leve, terminal, roçando final película, limite; estamos sabendo tudo e ainda assim, negando tudo no amor, perdemos, mas amamos. CORPO ANTERIOR Que faço aqui, neste meu corpo, amando, Outro corpo, doado e estranho a mim? Dois corpos desiguais e no comando O que eu decido. E quem decide assim? Estranho todos os departamentos E eu sou um outro, que não pousa aqui. Cada nervura, poro, o tegumento Desconheço de todo, nunca vi. Altura que não quero, mãos esquerdas, O que está velho e não forjou memórias, O gesto alheio, o olhar sobre tropeços, São crônicas já pálidas, a perda Do nunca possuído: alguma história Que espera no futuro o seu começo. SOU CRUZADO Sou cruzado, mas esqueci meu rei, Da nave em que cheguei, mal vou lembrado; Quero guardar comigo o que ora sei E de antes não sabia, descuidado. Amar, perder, a ventania, a lei Desordenada e injusta este reinado De amoráveis desastres que encontrei, Deles cativo quero estar, atado. Assim, longe de nave e de equipagem, Fico; não deixo mais esses rigores, Fico: não me acrescento mais àqueles Que perdem quanto acharam na viagem, Pois se retornam os navegadores, As descobertas deixam de ser deles. BORGES, O MINOTAURO, VOCÊ Ao longo desses anos despedidos quis desvendar a casa dos mistérios onde Borges deixou descomedido na dor enorme, o corpo vil de Astérion. Bovino, humano, entre patusco e sério lá se dispôs na casa: entre mugidos o cheiro a monstro, o signo do adultério contra duas espécies conseguido. Tudo passou. Até Copacabana viveu, tomado do animal diviso; passou por Dante, pelo inferno inteiro, homem bovino, boi de forma humana. Não espera saber em seu juízo em qual dos dois esteve prisioneiro.
Û Ý ´ ¥ Ü | * e-mail: elson fróes |