Sylvia Plath  entre o mito
e o humano: a linguagem

Por Andréa Santos.

 

O mito é nada que é tudo/.../ assim a lenda se
escorre/ A entrar na realidade./E a fecunda-la
decorre./ Em baixo, a vida, metade/ De nada,
morre.”

Fernando Pessoa, Os Castelos.
1


Sabe-se da estória da escritora e poeta americana Sylvia Plath e poderíamos nos desencorajar pela retórica. Pois, muitos elementos têm contribuído nestes 39 anos que nos separam de sua morte. Produzindo das cinzas uma personagem, quase um mito: com uma justiça escassa para com sua obra poética, destinada a reger-se esplendidamente por si só, sem a necessidade de suportes anedóticos.
Alguns críticos, confortados pela evidência dos acontecimentos, tendem considerar freqüentemente o suicídio de um poeta como uma conseqüência e, diretamente, faz dele parte integrante da obra que se tornaria, portanto, quase um ponto consciente. No caso de Sylvia Plath (que quando o sucesso chegou já era a terceira tentativa a morte) pareceria, deste modo, quase verdade também na leitura de seus textos. Porém, poderia valer ainda como hipótese contrária, visto que a presença do tema suicídio ou baixa-estima em algumas de suas poesias renomadas fosse resultado para exorcizar a irracionalidade da mea culpa.
A poesia é constantemente a pretensão cênica onde tanto o falar de morte pode significar realmente um amor de provisão ou desespero. Por isto, neste instante, retirasse de campo um dos dois equívocos: a base do mito – dizendo que o suicídio desta poeta não foi 'literário', mas um simples e doloroso fato particular onde um tempestuoso socorro (naquela

Plath com seus filhos.
Devon, 1962.
manhã de 11 de fevereiro '63) teria anulado, salvando juntamente a vida de uma jovem mulher e o significado de protesto que foi seu gesto. O outro equívoco, é daquela coincidência na indução entre alguns aspectos da biografia Plathiana (o compromisso persistente contra as afirmações das dificuldades universitárias e então literárias, a lúcida consciência da interpretação distorcida da feminilidade no quadro dos costumes vigentes e as frustrações cotidianas de uma mulher que deve conciliar o escrever versos com suas incumbências domésticas e de mãe) e os temas correspondentes dos vários movimentos da liberação feminina. Engano que talvez deixaria a fala furtada da autora e ao mesmo tempo, arrisca (ou arriscaria) a reduzir as palavras de Plath ao nível da mais dedutível Confessional Poetry - ou francamente das poetas oficiais da Women's Lib (que não existia em '63).
Ao invés, necessita-se dizer que a poesia de Sylvia Plath continua a revelar-se em toda sua vitalidade, “apesar de” e “se bem que” estes fatores estranhos ajudam na difusão e na notoriedade, inclusive entre esses acontecimentos evidentes e imediatamente autobiográficos: a saída violenta que distingue os versos do seu momento externo.
Todavia para se destinar estes componentes ao grupo das poesias que estarão e resgatarão a impetuosa passionalidade sobre aquele projeto da forma artística onde o poeta que diz “Eu” - fala-nos em definitivo de uma outra pessoa, de uma entre as muitas e poucas faces de si mesmo. Foi assim em Sylvia Plath: uma disciplina férrea da palavra procurada nos anos de severos e decisivos exercícios, para então se permitir administrar com uma intransitabilidade de um cirurgião e juntos para além de cada inibição das boas características a experiência do triste fim: o conhecer e reconhecer-se. Certo que cada poeta recompensa a sua poesia, também, quando a voz for de uma das suas faces. Claro, é possível que cada faceta a sua sorte e se arraste na escuridão, da face humana que está por trás de cada um.
Neste senso, deveremos considerar nesta poeta americana, o freqüente recurso das formas métricas fechadas e mais ainda, um certo uso intensificado

Auto-retrato,
início de 1950.
da rima em todas suas possíveis manifestações (imperfeitas, pobres, aliteradas) para a qual a língua inglesa, freqüentemente, convida-nos. A rima plathiana, como a de muitos bons poetas contemporâneos, é em resumo uma rima “irônica” e, como tal, subtrai-se do seu papel institucional para evoluir bastante a princípio de estrutura, na escolha deliberada, no interior da língua poética do próprio autor: por isto e em quanto isto for possível, sem forçar, procura-se respeitá-la; projetando equivalência na leitura e na tradução. Sem a rima, por exemplo, uma belíssima poesia como “Daddy” resultaria em infantil, pobre ao extremo e ainda no nível semântico-lexical:

You do not do, you do not do
Any more, black, shoe
In which I have lived like a foot
For thirty years, poor and white,
Barely daring to breath or Achoo
. /…/ 2


Em tudo Silvia Plath mostra preocupação constante para o valor musical das palavras. Em The Colossus a inquietação quase parece excessiva como se fosse um preparatório para Ariel. A musicalidade é um elemento da poesia difícil de se falar, sentida e não sentida que chegam quase a tocar-se num movimento contínuo.
Não é somente em relação aos instintos que ela liberta a sua linguagem poética da alienação. Porque se este grau de transgressão se manifesta como falso respeito ao nível lexical, este vem de forma muito mais direta. Não tanto na suposição gratuita das palavras consideradas “pouco poéticas” (na verdade nenhuma palavra é pouco poética que a outra), mas com a perseguição tenaz das expressões precisas que num poeta inspirado (ou seja – qualquer coisa dita) é mais um resultado de uma necessidade interior que uma abstrata normativa da poética (ou dito de outra forma: o poeta com qualquer coisa dita, pode perseguir uma expressão precisa). Isto poderia a primeira vista complicar a tarefa do tradutor e por conseguinte ao leitor. Quem sabe não?! Porque nos resta (a mim e a vc leitor) o fator constitutivo fundamental da própria língua do poeta: a exatidão do original que nos leva a certeza da tradução e da leitura. Rendemo-nos ao acontecimento que não deve e não pode subtrair certas paisagens obrigatórias. Nas suas poesias, e principalmente as derradeiras, Sylvia Plath torna-se ela mesma, imaginária criação selvagem e delicada: não uma pessoa, nem mulher, nem ao certo uma poetisa (ou poeta); porém uma daquelas heroínas clássicas mais que reais: hipnóticas. Não tanto para ser feminina ou fêmea, ou ainda, para ser os elementos costumeiros que nos distingue como mulher. A sua voz - ora fria e divertida, irônica, ácida, sonhadora, pueril e agraciada – pode-se fazer áspera e destoante como uma exclamação vampiresca – Dione, Fedra ou Medea as quais sabem ri de si mesmas. Os versos se repetem, parecem estarem perdidos na linha, mas o seu idioma jamais morre.
Tudo em Plath lembra-nos pessoal, confessional e profundo sentimento. Entretanto, nela, a forma do sentir é a controlada alucinação, a autobiografia de

S. Plath em
Cambridge, 1957.
  uma febre. O queimor da ânsia que se move para uma cavalgada, uma viagem, um vôo da abelha rainha forçada a alcançar os batimentos cardíacos ofegantes.
        Os títulos da autora de Lady Lazarus evocam os personagens shakesperianos - os duendes adoráveis - mas curiosamente aterrorizantes e viris. Na verdade a obra Ariel é corcel da poeta. Perigoso, contudo, poderoso, eficiente como uma matriz em treinamento, nos leva a uma corrida de cavalos que tendem para um lado espasmódico onde se superam uns e outros obstáculos da morte.
        Um grito de vida tempestuosa, das partidas marcadas pelo som da arma, de fim cortado. Quando tudo nela é mais heróico poema e não forçado com bastante simplicidade e desespero ao seu controle, mãos de aço com um toque modesto de mulher. Ela é qualquer ação pura (verdadeira). Nela hospeda a febre, a paralisia, o pulmão de aço a ser despida por nós agora.

THE COURIERS 

Poema: Among the narcisse.
The word of a snail on the plate of a leaf? It is not mine. Do not accept it. Acetic acid in a sealed tin? Do not accept it. It is not genuine. A ring of god with the sun in it? Lies. Lies and a grief. Frost on a leaf, the immaculate Cauldron, talking and cracking All to itself on the top of each Of nine black Alps. A disturbance in mirrors, The sea shattering its grey one – Love, love, my season.

Todavia é mais: a imortalidade da sua arte é a desintegração da vida. A surpresa, o presente ilustrado de aniversário, a transcendência. No entanto, as poesias de Plath não são a glorificação de uma existência selvagem e dissoluta, o haver de um poeta – maldito – alegre de ser destruído em troca de alguns anos de intensidade desmoronada. Esta poesia do cotidiano é como uma corrida estrênua, simplesmente nos diz que a vida também quando disciplinada não vale a pena ser desperdiçada.

ALL THE DEAD DEARS 

Rigged poker-stiff on the back 
With a granite grin
This antique museum-cased lady
Lies, companioned by the gimcrack
Relics of a mouse and shrew
That battened for a day on the ankle-bone.

These three, unmasked now, bear
Dry witness
To the gross eating game
We'd wink at if we didn't hear
Stars grinding, crumb by crumb,
Our own grist down to its bony face. /...

Não sei até que ponto os propósitos apresentados, aqui, resultam respeito à poética da Sylvia Plath. Sem ser patética tenho estudado para declarar a poesia em poesia, em narrativas, sem quaisquer pretensão ou tentativa de “reinterpretá-las” segundo o meu gosto pessoal. Os poetas, como Plath, não necessitam destas sobreposições, mas recusam decididamente – pois eles fazem a dispersão com a mesma força do texto (seja ele morto, desconhecido ou distante) ao qual em definitivo se reduzem.
A escritora americana Sylvia Plath não foi para mim uma face, nem voz, nem figura que caminha para minha direção. É uma poeta clássica e remota, são as páginas de seus livros, seus poemas. Somente com respeito e consciência adquirida ao longo das leituras e das suas fases poéticas, venho emprestar minhas idéias numa escolha dos versos e pensamentos. Procurando adivinhar seu nascimento, crescimento e morte nas poesias lidas e que me trouxeram a produzir este texto.


Lapide de Plath, Heptonstall,
West Yorkshire, Inglaterra.
POPPIES IN OCTOBER

Even the sun-clouds this morning cannot manage such skirts.
Nor the woman in the ambulance
Whose red heart blooms through her coat so astoundingly –

A gift, a love gift
Utterly unasked for
By a sky

Palely and family
Igniting its carbon monoxides, by eyes
Dulled to halt under bowlers.

O my god, what am I
That these late mouths should cry open
In a forest of frost, in a dawn of cornflowers.


 

NOTAS:


1 Fernando Pessoa. Mensagem. Ed. DIFEL. São Paulo, 1986.

2 Todas as poesias de Sylvia Plath foram retiradas da Coletânea Sylvia Plath - Lady Lazarus e altre poesie.

 

Andréa Santos, nasceu em Parintins. É formada em Letras. Atua como ensaísta literária e tradutora em sites culturais. Possui publicações em revistas como Calibàn, Etcetera, Nave da Palavra, Caffè Michelangiolo (Florença), El Muro (Argentina) entre outras. Publicou: Redescobrindo o Brasil aos 500 anos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000 (premiado pela ABL, distribuído aqui e em Portugal) e Imagens Femininas Negras, em Paraíso, de Morisson, Recife: Editora FASA, 2000. Atualmente, dedica-se à formação do livro: Antologia de Contos Italianos no Brasil.

 

matéria gentilmente cedida para este site
originalmente em Literatura, no site da revista Etcetera, novembro’02/janeiro’03.

 

 

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