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meia-vista
metade fechada, metade aberta
de um lado para dentro, de outro para fora
dos livros à cidade
minha meia-vista perpassa de um passo
o salto da memória
ao aqui-agora:
tudo o que vi antes aponta
o dia distante, típico,
escondendo, à vista longínqua,
dentros onde a vida acontece,
se esquece, perece ou se enquadra
na memória
° ° °
tremeluz
A nossa alma possui uma fenda que, quando se
consegue tocar, lembra um valioso vaso descoberto
das profundidades da terra
Cada forma é tão instável como uma nuvem de
fumo. A mais imperceptível alteração de uma de
suas partes transforma-lhe a essência.
Kandinski
verdades eternas
atingem-se com um sopro
como um dardo ao alvo
arma-ar sobre o éter
insuflando a chama:
é o tremor instável
ou a extinção de um só golpe
almas mudam
ou emudecem
ao sabor do vento
° ° °
factu / fictu
para Bóris Schnaiderman
pois é, bóris
"mais uma vez, o fato cru aparece
mais forte que qualquer criação artística"
a notícia no meio da memória:
CADÁVER DE MENINA NO TREM FANTASMA
(personagem cúmplice do destino?)
obra viva, definitiva, máxima
de autor bestial, primevo que ignora
o simulacro, a ilusão da palavra?
° ° °
retidão
para a vida ser reta
é preciso abandonar
todas as curvas
para a vida
ser reta é preciso abandonar
todas as curvas
para a vida ser reta é preciso abandonar
todas as curvas
para a vida ser reta é preciso abandonar todas as curvas
° ° °
pedreira
para Paulo Leminski
o tempo pós
o fez diverso:
pedra
eterna, fixa
dura, pesada
imóvel, muda
cega, surda
mas perene
sólida
como sua vida
poesia pura do tempo
pedra-chama
teimando eternamente
como alma consistente
° ° °
a pedra volátil
A trombada do fim do mundo
(...) Um cometa baterá em Júpiter (...)
(...) Se fosse na Terra a vida acabaria -
e isso pode acontecer
revista Veja, 13 de julho de 1994
pedra de fogo furo do abismo
olho de soco projétil sísmico
pedra que voa sem ar sem nada
a esmo certo além da chegada
umbigo atômico elo infernal
bafo de satã vento do mal
vapor de pedra alma do avesso
dentro de fora fim do começo
começo do fim dias contados
destino volúvel do passado:
nosso dia chegará volátil
sem data sem dia inevitável?
a pedra do chão cairá do céu
um céu pesado enorme e cruel
crescendo de dentro do final
um gérmen alheio original?
° ° °
essência falsa
as lojas de essências da rua tabatingüera
e da rua silveira martins
na sé em são paulo (e afins)
são um modelo mítico da nossa era:
o totem da verdade caído por terra
dá lugar ao frenesi da imitação
um por um de cada aroma que era
é agora quase tal qual, a não ser por um senão
a marca vira tipo
e o que era espécime se torna espécie
cada nome vira público
e o que era único se torna série
o milagre da multiplicação
se instala para qualquer um
e o que era distante da mão
cai na mão como um fato comum
a fórmula do tal perfume
se obtém sem entrave
mas sua essência permanece posse
falsa de algum dono falso da chave
tudo se chama como se quer
e é tudo como se fosse;
além do perfume, o whisky, o cognac, o liqueur
se fazem sem o tempo de amadurecer
a coloração se faz com caramelão
o sabor com o aroma, o açúcar, o álcool
a química da depuração da simulação
criando a realidade dúbia, virtual do igual
nestes tempos de reproduções
mesmo as palavras, mesmo as ações
o que se diz, o que se faz
ora é ora não é ou é o que se faz o que se diz
cada coisa que se denomina
pode ser o simulacro do que se designa
ou o que se resigna como o simulado:
o verbo sublimado e recondensado em significado
° ° °
cidade-luz
metrópole: elétricos
astros encobrem escuros
buracos de pedra
(1983)
° ° °
céu de mil e uma noites
Se eu
não fosse poeta
seria astrônomo
por certo.
Maiakóvski (trad. A. de Campos)
olho o céu e vejo um céu antigo
como aquele que eu tenho comigo
desde que o mundo era o meu umbigo
um céu de tecido azul escuro
com os pontos de luz em furo e uma
meia meia-lua de futuro
nesga, um rasgo fino reluzente
numa renda quase transparente
com o vulto do clarão ausente
crescente sobre o pano profundo
que conquista um negrume de fundo
quanto mais e mais cai com o mundo
e se consome o vermelho púrpura
(desvanece a cor à ausência pura)
quanto mais e mais o brilho fura
música das esferas
gire a música em todas as esferas:
passeie no som das ondas que ferem
a pedra, na voz do vento que ergue
a terra, no silêncio que se perde
na imensidão, no canto dos canários,
no piu dos pintos, no guinchar dos ratos;
vagueie na verberação dos arcos,
no retinir estridente dos pratos.
atinja o profundo do poço e o cimo
de tudo, do verso ao reverso íntimo
do ser, toda magnitude e o mínimo
do mundo, do seu começo ao seu fim.
gire a música em todas as esferas:
(de não a sim, dos outros até mim)
do mais perto ao eterno dos confins
° ° °
ondeio
(cantiga)
como restar-se um grão na avalanche
do tempo?
como inscrever um a na mancha
do cimento?
como riscar a nuvem
de acontecimentos?
como manter-se onda no uivo
dos ventos?
° ° °
todo dia
fico à procura, poesia
de uma fresta no meu dia
em que quieta se encaixe, viva,
e sobreviva ao mesmo dia
de tijolos iguais, vazios,
feitos do que se pensa mínimo,
dia-a-dia feito em ciclos
vãos, refeitos de vícios
° ° °
fazer fazer-se
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
C. Drummond de A,
é, drummond, existem palavras
que se desejam um poema
mas se ora posso perscrutá-las
ora só me vêm num dilema
os conflitos de seus sentidos
por vezes me paralisam
e o que podia ser sentido
é pensado em desavisos
quando, no entanto, se improvisam
e me vêm sem aviso prévio,
armam-se emaranhado vivo
que me pedem por intermédio
mas ser o meio não me isenta
de fazer sim valer-se um verso
que por si só só se contenta
se se me dita e eu converso
° ° °
(des) classificado
poema solitário
liberal
bem dotado de metro
enxuto
busca rimas raras
(para não dizer ricas)
não-comprometidas
afins com versos e reversos livres
para compor uma redondilha
maior
descartam-se, por pura veleidade,
exdrúxulas e priapeus;
e, por impura vaidade,
de troqueus só se aceitam os meus
1998
° ° °
a luz da visão
nas palavras os buracos
negros são os traços sulcos
que engolem a luz, convulsos,
e a matéria do meu ato
riscos finos são a boca
do abismo: elo-início
findo o precipício
seu ser afunda
o sentido
que redunda:
laço-umbigo
em si corcunda
o eu que retumba
tragado devolve
o ser que some e
revive conforme
a luz que o inunda
° ° °
viagem
a imagem de uma estrada longa
a qual não sei onde vai dar
me arrebata como uma onda
sem início, espaço ou lugar:
sem tempo, sem ter pra onde ir
a visão me alarga o horizonte
em vez de acorrentar-me ao ontem
traz-me agora o que está por vir
a sensação de plenitude
se abre numa estrada aberta
e todo sinal de inquietude
retransforma-se em descoberta
a aspiração não cabe em mim
e se dá asas só assim:
sem saber por que foi que vim
ela me abarca no sem-fim
° ° °
eu
viver a minha vida
e viver a dela, a dele, a deles,
viver as vidas
que me convidam
a convivê-las:
sobrar sobras de um só,
restar partes de um par,
ser fragmentos da mente
iludidos de estarem unidos,
pretenciosos de se terem recíprocos,
juntos em uníssono
vida dividida
à cata da identidade
repartida
° ° °
fresta
fechar as comportas da fala
e abrir uma fresta
por onde passa
só o que resta
da mistura concentrada:
uma possibilidade
uma vontade
um quase
nada
Û Ý ´ ¥ Ü | * e-mail: Elson Fróes |