A poesia de Valéry
O som e as ideias. A expressão e o conteúdo. São esses os elementos básicos de que a língua se nutre; sobre eles é que o tradutor se debruça e os que mais desafiam sua capacidade de fazer uma travessia - da língua-fonte para a língua-alvo - sem maiores sobressaltos. Vale dizer, escapar da pecha infamante, mas seguramente injusta, de que todo tradutor é um traidor. Alguns, não todos. O adágio célebre - traduttore, traditore - é sonoro, mas insisto, injusto. Se a traição não é ato digno de elogios, a quebra da fidelidade pelo tradutor nem sempre é dolosa. Culposa, talvez. Há atenuantes. É aceitável, mesmo que não preferível, uma tradução pouco rigorosa da obra de um autor como Halldór Laxness, de uma literatura quase inacessível, a islandesa, do que nada. Afinal, quantos falantes do idioma islandês há no mundo? E o que dizer de um escritor de língua tuva (ou tuvana), falada por uma etnia mongol? Como desfrutar da obra de artistas da palavra, escrita em idiomas de pouco ou nenhum trânsito fora das fronteiras de seus criadores, sem o recurso à tradução?
Espinhosa, portanto, é a tarefa do tradutor. Um profissional da área, Geir Campos, também poeta, lamentou que os tradutores são sempre injustiçados, pois só se lhes apontam os erros, nunca os acertos. Millôr Fernandes, tentando consolar o queixoso, ponderou que acerto não tem graça... A lamúria vem de longe. Muitas décadas atrás, Valery Larbaud, poliglota autodidata, dominando seis idiomas, aprendidos ainda na juventude, autor da primeira tradução do "Ulisses" de Joyce para a língua francesa, notou que o tradutor não recebe reconhecimento pelo seu ofício, cabendo-lhe sentar-se no último lugar, vivendo apenas de esmolas (em alguns casos, a expressão pode até não ser apenas metafórica...), preenchendo as mais humildes funções, desempenhando os papéis mais apagados. "Servir", diz ele, é a divisa de um tradutor: "ele não pede nada para si mesmo e põe toda a sua glória em ser fiel aos mestres que escolheu, fiel até o aniquilamento de sua própria personalidade intelectual. Ignorá-lo, recusar-lhe toda consideração, não o mencionar na maioria das vezes, senão para o acusar - muitas vezes, sem provas - de haver traído aquele que quis interpretar, desdenhá-lo mesmo quando sua obra nos satisfaz" ("Sob a invocação de São Jerônimo", Editora Mandarim, 2001, p.13). Octavio Paz, por seu lado, no precioso opúsculo "Traducción: literatura y literalidad", observou que todo texto é único, mas é igualmente a tradução de outro texto, porque, argumenta o poeta e pensador mexicano, a própria língua já é uma tradução - primeiramente, tradução do mundo não-verbal; depois, porque todo signo e toda frase são traduções de outro signo e outra frase. Enfim, resume Paz, em certa medida toda tradução é uma criação, e, por isso, por si só forma um texto único. Traduzir é transfundir. É verter. É transvasar. O tradutor é um artífice; é o artesão que articula a passagem de um código linguístico a outro, que injeta o sangue de uma língua na outra. Esses são os procedimentos adotados por todo tradutor em seu mister. O tradutor faz as palavras translocarem-se de um código para outro. Uma boa tradução não é transparente, é translúcida. Quer dizer, embora deixe passar a luz, deve evitar a visão nítida do objeto, a língua-fonte, para iluminar por completo a lingua-alvo. A língua-fonte transparece. A língua-alvo aparece. E o tradutor consegue essa proeza quando alcança a suficiente correspondência entre as duas línguas. Ou isso, ou a tradução se resumirá à acomodação de um léxico a uma estrutura linguística que lhe é estranha; algo comparável a um músico que use harmonias jazzísticas para, por exemplo, encaixá-las na melodia do baião. Nesse caso, na mais amena das hipóteses, o resultado soará extravagante. E essa é uma das armadilhas da tradução, contra as quais somos prevenidos pelo mestre Paulo Rónai em seu clássico "A tradução vivida", entre as quais ele arrola as ciladas dos homônimos e dos parônimos, os perigos da polissemia, as ilusões do instinto etimológico e as emboscadas dos "falsos amigos" "A tradução é fundamental desde a Torre de Babel, isto é, desde o momento em que as mais diversas línguas passaram a ser faladas em nosso planeta", esclarece outro mestre do ofício, Erwin Theodor ("Tradução: Ofício e Arte", Ed. Cultrix, 1976, p. 11). Numa das epístolas neotestamentárias, mais exatamente numa carta paulina (IICo 12:4), está dito que há palavras inefáveis, portanto fora da capacidade do homem de repeti-las. Mas, lembra Theodor, op. cit., p. 14, "existindo a língua, existe também a tradução". Logo, tudo, diante disso, é traduzível. Voltamos, então, ao problema da fidelidade. Pierre Menard, nos mostra seu criador Jorge Luís Borges, fracassou no intento de consagrar-se como um tradutor da fidelidade total. Quis reconstituir o Quixote de Cervantes, mas deu com os burros n'água. Brenno Silveira, como os já aqui citados, também tradutor e teórico da tradução de alto coturno, em "A arte de traduzir", adverte que a tradução não se resume a conhecer uma língua estrangeira e reescrever o texto em língua vernácula palavra por palavra, frase por frase. O tradutor precisa de outros atributos, como cultura ampla, não apenas literária, mas histórica, entre outros conhecimentos, além, claro, de talento artístico, pois traduzir é uma arte. A fidelidade de uma tradução, às vezes, se vê ameaçada por episódios biográficos do autor traduzido e ignorados pelo tradutor. Brito Broca, crítico literário dos mais afamados em sua época, comentando a tradução de Gondim da Fonseca para o soneto "Voyelles", de Rimbaud, em nota incluída no livro "Horas de leitura", INL, 1957, fez reparos à versão para o português do último verso. Com efeito, O l'Omega rayon violet de Ses Yeux, Gondim, escolhendo deixar de lado a homossexualidade do poeta francês e presumindo que o objeto de sua admiração fosse uma mulher, traduziu-o assim: "O, Omega, fulgor lilás dos olhos d'Ela". Ora, o verso não indica claramente a quem Rimbaud se dirige. Há defensores, na área da poesia, de uma coisa chamada "transcriação", processo que, alega-se, superaria os percalços do velho ato de traduzir. Tudo se resumiria, no caso, a priorizar a forma, relegando o sentido a um segundo plano. Aceita a tese, caberia ao transcriador recriar integralmente o poema. É uma escolha, claro, e, como tal, discutível. Eric Ponty não se alinha entre os transcriadores. Prefere simplesmente filiar-se ao grupo dos tradutores. E, assim como Renan recomendava escrever apenas sobre aquilo de que gostamos, Ponty só traduz os poetas de sua preferência. Paul Valéry é um deles. E se não é obrigatório, é recomendável haver afinidade entre o tradutor e a obra. E essa comunhão estética entre o tradutor e o traduzido, deixadas as possíveis diferenças de lado, está patente nos poemas aqui recolhidos. Valéry, devoto, à sua maneira, de Mallarmé, é poeta pouco afeito a facilitar a vida do leitor, pois a poesia, disse ele, n'a pas les moins du monde pour objet de communiquer à quelque notion déterminée. O poeta prefere, acima de tudo, os significantes. É poesia sobre poesia. O resto é com o leitor. Valéry viu a poesia como uma forma de a linguagem articular aquilo que os gestos, os beijos, as lágrimas, os suspiros só muito obscuramente conseguem exprimir. Sob o lema de Mallarmé, segundo o qual o ideal é sugerir e não nomear um objeto, pois nomeá-lo é quase anular o gozo do poema (para quê identificar um leque? basta sugeri-lo: Ce blanc vol fermé que tu poses/Contre le feu d'un bracelet), Valéry buscou extrair das palavras todo o seu poder de sugestão, embora, diferentemente de seu modelo, manteve a versificação tradicional.(Valéry, já houve quem o dissesse, não era verdadeiramente um modernista, nem no estilo nem na poética; quanto à Mallarmé, um dos bonzos dos modernólatras que cultivam a alegada crise do verso, uma espécie de S. João Batista das vanguardas poéticas do século XX, assim reverenciado por seus admiradores, sua leitura deixa sempre, salvo no leitor menos atento, o gosto de uma artificialidade lírica). Ainda caminhando na senda mallarmaica, o autor de Le cimetière marin desbastou sua poesia de toda forma de sentimentalismo, rejeição comparável a seu repúdio à egolatria romântica. Mas essa poesia, a de Valéry, carrega uma musicalidade ausente (ou pouco relevante) em Mallarmé e expressivamente atuante em Rimbaud e Verlaine. Aliás, é deste último o apelo: de la musique avant toute chose... E é esta música que o tradutor Eric Ponty capta. João da PenhaEscritor e jornalista, traduziu os poetas russos Sierguei Iessiênin, Alieksandr Blok, Marina Tsviêtáieva e Anna Armátova |
O Cemitério marinho(Decassílabo versos com rima)
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