"Ali vem a nossa comida pulando" (V. Hans Staden - Cap. 28)

Prosa de Invenção no Brasil

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Esta antologia é um pequeno mosaico da prosa experimental no Brasil, desde o trabalho pioneiro do antropófago Oswald de Andrade, na década de 20, até as mais recentes fabulações centradas na metalinguagem.

Como diz Haroldo de Campos em seu livro A arte no horizonte do provável, a modernidade abalou a distinção tradicional entre prosa e poesia em favor da noção de texto e colocou em xeque a divisão clássica dos gêneros literários.

Essa concepção do fazer textual tem por paradigma a novelística joyceana (o Ulisses e o Finnegans Wake) — ponto de partida de quase todas as experiências formais subsequentes. (Outras influências: a prosa futurista de Marinetti, Dada e o surrealismo, o trabalho teórico de Jakobson, Bakhtin e posteriormente os críticos estruturalistas).

No texto de invenção, o enredo é secundarizado e o uso da paródia e dos jogos vocabulares próprios da função poética são os alicerces fundamentais da composição.

A ordem lógico-gramatical é perturbada pelas transgressões sintático-morfológicas e a própria maneira de ler o texto é alterada de forma radical. Em obras como Galáxias, por exemplo, há uma multiplicidade de possíveis seqüências de leitura, o que incorpora o elemento aleatório à rigorosa arquitetura estrutural, questionando ainda o próprio conceito de livro.

A nova fabulatória (ou confabulatória...) é uma clara ruptura com os princípios do realismo/naturalismo do século XIX — como verossimilhança e historicidade —, que, no Brasil, dominaram nossa ficção, em especial na década de 30 (permanecendo hoje como um ectoplasma kitsh, sobretudo na ficção comercial).

Por subverter os modos do "bom dizer" (a morna modorra mediana dos medíocres), a vereda inventiva ainda ocupa uma posição marginal em nossa literatura, dominada pelo provincianismo vocacional de jurisconsultos, salmistas, stalinistas e candidatos a Sidney Sheldon.

Porém, é essa prosa visceral, sanguínea, que nutre e estimula o que há de melhor, nos dias de hoje, em nossa produção literária (por exemplo, Panteros, de Décio Pignatari, e A Máquina Peluda, de Ademir Assunção). Bem-vindos à insurreição e à tempestade.



Olavo Tolentinho



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I — Oswald de Andrade

Memórias Sentimentais de João Miramar (excertos)




PORTO SAÍDO



Barracões de zinco das docas retas no sol pregaram-me como um rótulo no bulício de carregadores e curiosos pois o Marta largaria só noite tropical.

A tarde mergulhava de altura na palidez canalizada por trampolins de colinas e um forte velho. E brutos carregavam o navio sob sacos em fila.

Marinheiros dos porões fecharam os mastros guindastes e calmos oficiais lembrando ombros retardatários.

A barriga tesa da escada exteriorizou os lentos visitantes para ficar suspensa ao longo dos marujos louros.

Grupos apinharam o cais parado.




LADEIRA DO MUNDO



Em Las Palmas ficaram entre barbas alpestres e kodaks moças projetos ascensionais.

Nuvens encastelaram-se sobre aventureiros que demandavam São Paulo.

Dacar negrejou na pura perda de uns olhos verdes que eram o meu diário de bordo.

Padres polacos cantaram para as ondas ferretes enquanto partidas de xadrez explicavam a eternidade.

E a terra natal espiou por um farol na noite enfarada.




FIO DE LUZES




O vento batia a madrugada como um marido. Mas ela perscrutava o escuro teimoso.

Uma longe claridade borrou a esquerda na evidência lenta de uma linha longa.




ÓRFÃO



O céu jogava tinas de água sobre o noturno que me devolvia a São Paulo.

O comboio brecou lento para as ruas molhadas, furou a gare suntuosa e me jogou nos óculos menineiros de um grupo negro.

Sentaram-me num automóvel de pêsames

Longo soluço empurrou o corredor conhecido contra o peito magro de tia Gabriela no ritmo de luto que vestia a casa.




CASA DA PATARROXA



A noite O sapo o cachorro o galo e o grilo Triste tris-tris-tris-te Uberaba aba-aba Ataque e o relógio taque-taque Saias gordas e cigarros




66. BOTAFOGO ETC.



Beiramarávamos em auto pelo espelho de aluguel arborizado das avenidas marinhas sem sol.

Losangos tênues de ouro bandeiranacionalizavam o verde dos montes interiores.

No outro lado azul da baía a Serra dos Órgãos serrava.

Barcos. E o passado voltava na brisa de baforadas gostosas. Rolah ia vinha derrapava entrava em túneis.

Copacabana era um veludo arrepiado na luminosa noite varada pelas frestas da cidade.




NATAL



Minha sogra ficou avó.




SEASON



Rosas vermelhas buscaram Madama Rocambola na gare cautelosa do Brás. Tapetei bungalow longíquo e pianal para as duas emboscadas em Perdizes.




158. RECREIO PINGUE-PONGUE



Miramar a vida é relativa O acontecimento não teria sido Se nascesses só Sem a mãe que te deixou virtudes caladas O acontecido te ofertou A filhinha de olhos claros Abertos para os dias a vir És o elo duma cadeia infinita Abraça o Dr. Mandarim E soma ele ao azul desta manhã Louçã





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II — Patricia Galvão (Pagu)

Parque Industrial (excertos)



          Línguas maliciosas escorregam nos sorvetes compridos. Peitos propositais acendem os bicos sexualizado no sweter de listas, roçando.

(...)

          Aquele pierrot feminino está cheirando éter. Aprendeu. Uma baiana imensa ronca num degrau.

          — Não olhe praquele sujeito da baratinha!

          — Vê lá se eu vou deixar aquele batuta por causa de você!

          — Vem embora! Anda!

          — Não vou. Me deixa!

          Uma facada. Um grito. Viúva alegre. Um lençol. Desapareceram as rodelas vermelhas de carmim dentro do carro branco de sinos.

          A borboleta de lantejoulas, caída de um cabelo frouxo, espeta as antenas duras na poça de sangue.

          O carnaval continua. Abafa e engana a revolta dos explorados. Dos miseráveis. O último quinhentos réis no último copo.

          — Moço, me dá um rolo?

          A rua Bresser está iluminada. Os garotos de bigode de alho catam confete no chão.

          — Mas cara-do! Cu ras-gado!

(...)

          O Viaduto do Chá estremece sob os bondes raros. Corina quer morrer. Morrer com o seu filho. Revê o estremecimento agônico da coleguinha que se suicidara no ano passado, estatelada nos paralelepípedos da Rua Formosa, depois do vôo. O sangue da outra, a cabeça quebrada, os ossos esmagados.

          A sua roupa chove com a chuva. Volta taciturna para o mesmo banco. Procura. Não acha a nota que ele lhe atirara.

          Um bando álacre se diverte na chuva. Três homens e uma mulher. A pé. Passam. Convidam-na por troça. Corina adere, vai junto. Como máquina. Se embebeda, fuma. Percebe na fumaça os dentes de ouro da mulher que é loura. Ri também. Se excita. Quer todos os machos de uma vez.

          No dia seguinte, um sujeito lustroso a leva para um bordel no Brás.

          — Vestida assim, ninguém te quer.

          Abre-lhe a blusa, rasga-lhe o soutien e a empurra para as vitrines da porta.

          Nas vinte e cinco casas iguais, nas vinte e cinco portas iguais, estão vinte e cinco desgraçadas iguais.

          Ela se lembra que com as outras costureirinhas, caçoava das mulheres da Rua Ipiranga. Sente uma repugnância, mas se acovarda. Faz entre lágrimas, como as outras.

          — Psiu! Benzinho! Vem cá! Te dou o botão...

          Aumenta pouco a pouco o vocabulário erótico.

(...)

          O barman cria cocktails ardidos. As ostras escorregam pelas gargantas bem tratadas das lides que querem emancipar a mulher com pinga esquisita e moralidade.

          Uma matrona de gravata e grandes miçangas aparece espalhando papéis.

(...)

          Os tecelões espumam de ódio proletário. As fileiras pobres se engrossam numa manifestação inesperada diante da fábrica. Mãos robustas e mãos esqueléticas avançam para a limousine de luxo do grande industrial que está parada. O chaufeur elegante fugiu. Vidros e estofados se esfarelam nas mãos da massa que se vinga.

          — Esta gasolina é o nosso sangue!

(...)

          Tiros, chanfalhos, gases venenosos, patas de cavalo. A multidão torna-se consciente, no atropelo e no sangue.

(...)

          Corina amanhece no panorama agreste e provinciano da chácara festiva da Penha.

          O sol frio enche de luz os cachos lambuzados e sombrios. O twed cinza do casaco comprido tem as cintilações verdes repuchadas pelo uso. Dois corações de carmim enchem de animação o rosto furado de espinhas. Os olhos espichados da antiga costureira são agora desconfiados e atrevidos. Sumiu-se nos farrapos das pestanas a brejeirice terna de antes. Vê entre os eucaliptos novos raparigas novas que ensaboam com mãos roxas fardas de brim. Uma criança de pernas finas mostra uma calcinha suja de terra escapando da saia de pingos. Os dentes orgulhosos de outro tempo sorriem falhos e amarelos num carinho. A menina foge. Mergulha as mãos na tina de espuma. A mulata friorenta ajeita o casaco levantando a gola alta até o nariz. Observa parada as lavadeiras de cócoras e ajoelhadas trabalhando.

(...)

          O Tietê turvo. Barcas ancoradas e andando cheias de troncos e homens grossos com camisas altas cor de canela. Ajeitam-se.

          A balsa roncando na engrenagem enferrujada. Na moita molhada enxarca a fazenda barata do casaco de forro gasto. Os cabelos negros se encaracolam nos cipós. Terra, pedaços de carvão.

          O Paco fossa como um porco os seios estéreis de Corina.

(...)

          Corina ouve uma voz conhecida sob uma casquete grande.

          — Pepe?

          — Puxa Corina! Você está esculhambada.

          — Oh porqueira! E você? Como vai Otávia? E os outros?

          — Nem me fale naquela tipa!

          — Ela te deu o fora?

          — Ela, uma vírgula. Eu é que não quis saber de uma chiveta que dá para todo o mundo.

          Os dois, agarrados, vítimas da mesma inconsciência, atirados à mesma margem de combinações capitalistas, levam pipocas salgadas para a mesma cama.



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III — Mário de Andrade

Macunaíma (excertos)



          No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.

          Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar, exclamava: — Ai! que preguiça!... e não dizia mais nada.

(...)

          E estava lindíssima na Sol da lapa os três manos um louro um vermelho outro negro, de pé bem erguidos e nus. Todos os seres do mato espiavam assombrados. O jacarèuna o jacarètinga o jacaré-açu o jacaré-ururau de papo amarelo, todos esses jacarés botaram os olhos de rochedo pra fora d’água. Nos ramos das igàzeiras das aningas das mamoranas das embaúbas dos catauaris de beira-rio o macaco-prego o macaco-de cheiro o guariba o bugio o cuatá o barrigudo o coxiú o cairara, todos os quarenta macacos do Brasil, todos, espiavam babando de inveja. E os sabiás, o sabiàcia o sabiàpoca o sabiàúna o sabiàpiranga o sabiàgonga que quando come não me dá, o sabiá-barranco o sabiá-tropeiro o sabiá-laranjeira o sabiá-gute todos esses ficaram pasmos e esqueceram de acabar o trinado, vozeando vozeando com eloquência. Macunaíma teve ódio. Botou as mãos nas ancas e gritou pra natureza:

          — Nunca viu não!

          Então os seres naturais debandavam vivendo e os três manos seguiram caminho outra vez.

          Porém entrando nas terras do igarapé Tietê adonde o burbon vogava e a moeda tradicional não era mais cacau, em vez, chamava arame contos contecos milréis borós tostão duzentorréis quinhentorréis cinquenta paus, noventa bagarotes, e pelegas cobres xenxéns caraminguás selos bicos-de-coruja massuni bolada calcáreo gimbra siridó bicha e pataracos, assim, adonde até liga pra meia ninguém comprava nem por vinte mil cacaus. Macunaíma ficou muito contrariado. Ter de trabucar, ele, herói... Murmurou desolado:

          — Ai! que preguiça!...

          Resolveu abandonar a empresa, voltando pros pagos de que era imperador. Porém Maanape falou assim:

          — Deixa de ser aruá, mano! Por morrer um caranguejo o mangue não bota luto! Que diacho! Desanima não que arranjo as coisas!

(...)

          Os manos entraram num cerrado cheio de inajás ouricuris ubussus bacabas mucajás miritis tucumãs trazendo no curuatá uma penachada de fumo em vez de palmas e cocos. Todas as estrelas tinham descido do céu branco de tão molhado de garoa e banzavam pela cidade. Macunaíma lembrou de procurar Ci. Êh! Dessa ele nunca poderia esquecer não, porque a rede feiticeira que ela armara pros brinquedos, fora tecida com os próprios cabelos dela e isso torna a tecedeira inesquecível. Macunaíma campeou campeou mas as estradas e terreiros estavam apinhados de cunhãs tão brancas tão alvinhas, tão!... Macunaíma gemia. Roçava nas cunhãs murmurejando com doçura: "Mani! Mani! Filhinhas da mandioca..." perdido de gosto e tanta formosura. Afinal escolheu três. Brincou com elas na rede estranha plantada no chão, numa maloca mais alta que a Paranaguara. Depois, por causa daquela rede ser dura, dormiu de atravessado sobre os corpos das cunhãs. E a noite custou pra ele quatrocentos bagarotes.

(...)

          As cunhãs rindo tinham ensinado pra ele que o sagüi-açu não era sagüim não, chamava elevador e era uma máquina. De-manhãzinha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiadas sopros roncos esturros não eram nada disso não, eram mas cláxons campainhas apitos buzinas e tudo era máquina. As onças pardas não eram onças pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram máquinas. Os tamanduás os boitatás as inajás de curuatás de fumo, em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios-luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjetas postes chaminés... Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina! O herói aprendendo calado. De vez em quando estremecia. Voltava a ficar imóvel escutando assuntando maquinando numa cisma assombrada. Tomou-o um respeito cheio de inveja por essa deusa de deveras forçuda, Tupã famanado que os filhos da mandioca chamavam de Máquina, mais cantadeira que a Mãe-D’água, em bulhas de sarapantar.

(...)

          Tinha turquesas esmeraldas berilos seixos polidos, ferragem com forma de agulha, crisólita pingo d’água tinideira esmeril lapinha ovo-de-pomba osso-de-cavalo machados facões flechas de pedra lascada, grigris rochedos elefantes petrificados, colunas gregas, deuses egípcios, budas javaneses, obeliscos, mesas mexicanas, ouro guianense, pedras ornitomorfas de Iguape, opalas do iagarapê Alegre, rubis e granadas do rio Gurupi, itamotingas do rio das Garças, itacolumitos, turmalinas de Vupabuçu, blocos de titânio do rio Piriá, bauxitas do ribeirão do Macaco, fósseis calcáreos de Pirabas, pérolas de Cametá, o rochedo tamanho que Oaque o Pai do Tucano atirou com a sarabatana lá do alto daquela montanha, um litóglifo de Calamare, tinha todas essas pedras no grajaú.

          Então Piaimã contou pra francesa que ele era um colecionador célebre, colecionava pedras. E a francesa era Macunaíma, o herói. Piaimã confessou que a jóia da coleção era mesmo o muiraquitã com forma de jacaré comprada por mil contos da imperatriz das icamiabas lá nas praias da lagoa Jaciuruá. E tudo era mentira do gigante. Vai, ele sentou na rede mui rente da francesa, muitp! e falou murmuriando que com ele era oito ou oitenta, não vendia não emprestava a pedra mas porém era capaz de dar... "Conforme..." O gigante estava mas era querendo brincar com a francesa. Quando por causa do jeito de Piaimã o herói entendeu o que significava o tal de "conforme", ficou muito inquieto.

(...)

          — Qual o quê!... Quando urubu está de caipora o de baixo caga no de cima, este mundo não tem jeito mais e vou pro céu.

          Ia pro céu viver com a marvada. Ia ser o brilho bonito mas inútil porém de mais uma constelação. Não fazia mal que fosse brilho inútil não, pelo menos era o mesmo de todos esses parentes de todos os pais dos vivos da sua terra, mães pais manos cunhãs cunhadas cunhatãs, todos esses conhecidos que vivem agora do brilho inútil das estrelas.

          Plantou uma semente do cipó matamatá, filho-da-luna, e enquanto o cipó crescia agarrou numa itá pontuda escreveu na lage que já fora jaboti num tempo muito de dantes:

          NÃO VIM NO MUNDO PARA SER PEDRA





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IV — Clarice Lispector

Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (excertos)



sentou-se para descansar e em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante, faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, não Lóri mas o seu nome secreto que ela por enquanto ainda não podia usufruir, faz de conta que vivia e não que estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela era lunar, faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta, faz de conta que se descontraía o peito e uma luz douradíssima e leve a guiava por uma floresta de açudes mudos e de tranqüilas mortalidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro.

— pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado; ela saíra agora da voracidade de viver. Lembrou-se de escrever a Ulisses contando tudo o que passara,

mas nada se passara dizível em palavras escritas ou faladas, era bom aquele sistema que Ulisses inventara: o que não soubesse ou não pudesse dizer, escreveria e lhe daria o papel mudamente — mas dessa vez não havia sequer o que contar.

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estava na hora de se vestir: olhou-se ao espelho e só era bonita pelo fato de ser uma mulher: seu corpo era fino e forte, um dos motivos imaginários que faziam com que Ulisses a quisesse; escolheu um vestido de fazenda pesada, apesar do calor, quase sem modelo, o modelo seria o seu próprio corpo mas enfeitar-se era um ritual que a tornava grave: a fazenda já não era um mero tecido, transformava-se em matéria de coisa e era esse estofo que com o seu corpo ela dava corpo — como podia um simples pano ganhar tanto movimento? seus cabelos de manhã lavados e secos ao sol do pequeno terraço estavam de seda castanha mais antiga — bonita? não, mulher: Lóri então pintou cuidadosamente os lábios e os olhos, o que ela fazia, segundo uma colega, muito mal feito, passou perfume na testa e no nascimento dos seios — a terra era perfumada com cheiro de mil folhas e flores esmagadas: Lóri se perfumava e essa era uma das suas imitações do mundo, ela que tanto procurava aprender a vida — com o perfume, de algum modo intensificava o que quer que ela era e por isso não podia usar perfumes que a contradiziam: perfurmar-se era de uma sabedoria instintiva, vinda de milênios de mulheres aparentemente passivas aprendendo, e, como toda arte, exigia que ela tivesse um mínimo de conhecimento de si própria: usava um perfume levemente sufocante, gostoso como humus, como se a cabeça deitada esmagasse humus, cujo nome não dizia a nenhuma de suas colegas-professoras: porque ele era seu, era ela, já que para Lóri perfumar-se era um ato secreto e quase religioso.

— usaria brincos? hesitou, pois queria orelhas apenas delicadas e simples, alguma coisa modestamente nua, hesitou mais: riqueza ainda maior seria a de esconder com os cabelos as orelhas de corça e torná-las secretas, mas não resistiu: descobriu-as, esticando os cabelos para trás das orelhas incongruentes e pálidas: rainha egípcia? não, toda ornada como as mulheres bíblicas, e havia também algo em seus olhos pintados que dizia com melancolia: decifra-me, meu amor, ou serei obrigada a devorar, e agora pronta, vestida, o mais bonita quanto poderia chegar a sê-lo, vinha novamente a dúvida de ir ou não ao encontro com Ulisses — pronta, de braços pendentes, pensativa, iria ou não ao encontro? com Ulisses ela se comportava como uma virgem que não era mais, embora tivesse certeza de que também isso ele adivinhava, aquele sábio estranho que no entanto parecia adivinhar que ela queria amor.




De Água-viva (excertos)



É COM UMA ALEGRIA tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém me prende mais. Continuo com capacidade de raciocínio — já estudei matemática que é a loucura do raciocínio — mas agora quero o plasma — quero me alimentar diretamente da placenta. Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o próximo instante é o desconhecido. O próximo instante é feito por mim? Ou se faz sozinho? Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma desenvoltura de toureiro na arena.

(...)

Fixo instantes súbitos que trazem em si a própria morte e outros nascem — fixo os instantes de metamorfose e é de terrível beleza a sua sequência e concomitância.

(...)

E se muitas vezes pinto grutas é que elas são o meu mergulho na terra, escuras mas nimbadas de claridade, e eu, sangue da natureza — grutas extravagantes e perigosas, talismã da Terra, onde se unem estalactites, fósseis e pedras, e onde os bichos que são doidos pela sua própria natureza maléfica procuram refúgio. As grutas são o meu inferno. Gruta sempre sonhadora com suas névoas, lembrança ou saudade? Espantosa, espantosa, esotérica, esverdeada pelo limo do tempo. Dentro da caverna obscura tremeluzem pendurados os ratos com asas em forma de cruz dos morcegos. Vejo aranhas penugentas e negras. Ratos e ratazanas correm espantados pelo chão e pelas paredes. Entre as pedras o escorpião. Caranguejos, iguais a eles mesmos desde a pré-história, através de mortes e nascimentos, parecem bestas ameaçadoras se fossem do tamanho de um homem. Baratas velhas se arrastam na penumbra. E tudo isso sou eu.

(...)

Como se arrancasse das profundezas da terra as nodosas raízes da árvore descomunal, é assim que te escrevo, e essas raízes como se fossem poderosos tentáculos como volumosos corpos nus de fortes mulheres envolvidas em serpentes e em carnais desejos de realização, e tudo isso é uma prece de missa negra, e um pedido rastejante de amém: porque aquilo que é ruim está desprotegido e precisa da anuência de Deus: eis a criação.

(...)

O que diz este jazz que é improviso? Diz braços enovelados em pernas e as chamas subindo e eu passiva como uma carne que é devorada pelo adunco agudo de uma águia que interrompe seu vôo cego. Expresso a mim e a ti com os meus desejos mais ocultos e consigo com as palavras uma orgíaca beleza confusa.

(...)

Não sei sobre o que estou escrevendo: sou obscura para mim mesma. Só tive inicialmente uma visão lunar e lúcida, e então prendi para mim o instante antes que ele morresse e que perpetuamente morre. Não é um recado de idéias que te transmito e sim uma instintiva volúpia daquilo que está escondido na natureza e que adivinho. E esta é uma festa de palavras. Escrevo em signos que são mais um gesto que voz. Tudo isso é o que me habituei a pintar mexendo na natureza íntima das coisas. (...) O mundo não tem ordem visível e eu só tenho a ordem da respiração. Deixo-me acontecer.

(...)

Equilíbrio perigoso, o meu, perigo de morte de alma. A noite de hoje me olha com entorpecimento, azinhavre e visgo. Quero dentro desta noite que é mais longe que a vida, quero, dentro desta noite, vida crua e sangrenta e cheia de saliva. Quero a seguinte palavra: esplendidez, esplendidez é a fruta na sua suculência, fruta sem tristeza. Quero lonjuras. Minha selvagem intuição de mim mesma. Mas o meu principal está sempre escondido. Sou implícita. E quando vou me explicitar perco a úmida intimidade.

De que cor é o infinito espacial? É da cor do ar.

Nós — diante do escândalo da morte.





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V — Guimarães Rosa

De Grande Sertão Veredas (excertos)



          NONADA. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser — se viu —; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo como pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram — era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: Quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente — depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucúia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo há — fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda parte.

(...)

          Arres, me deixe lá, que — em endemoninhamento ou com encosto — o senhor mesmo deverá de ter conhecido diversos homens, mulheres. Pois não, sim? Por mim, tantos vi, que aprendi. Rincha-Mãe, Sangue-d’Outro, o Muitos-Beiços, o Rasga-em-Baixo, Faca-Fria, o Fancho-Bode, um Treciziano, o Azinhavre... o Hermógenes... Deles, punhadão. Se eu pudesse esquecer tantos nomes... Não sou amansador de cavalos! E, mesmo, quem de si de ser jagunço se entrete, já é por alguma competência entrante do demônio. Será não? Será?

          De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas a cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso...

          Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem — ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! — é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco — é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso — por estúrdio que me vejam — é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, asisado e instruído, que acredita na pessoa dele? Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião põe minha valia. Já sabia, esperava por ela — já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças — eu digo. Pois não é ditado: "menino — trem do diabo"? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes... O diabo na rua, no meio do redemunho...





De Tutaméia:
Desenredo



           DO NARRADOR a seus ouvintes:

          — Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. Tinha o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir, e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu.

          Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento. Mas muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas.

          Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável a barquinhos de papel.

          Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só retraido, minuciosamente. Esperar é reconhecer-se incompleto. Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano.

          Até que — deu-se o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se, também, que de leve a ferira, leviano modo.

          Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o dec£bito dorsal, por dores, frios, calores, quiça lágrimas, evolvido ao barro, entre o inefável e o infando. Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos; chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. Reteve-se de vê-la. Proibia-se de ser pseudopersonagem, em lance de tão vermelha e preta amplitude.

          Ela — longe — sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã. Ele exercitava-se a agüentar-se, nas defeituosas emoções.

          Enquanto, ora, as coisas amaduravam. Todo fim é impossível? Azarado fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O tempo é engenhoso.

          Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas já medicado. Vai, pois, com a amada se encontrou — ela sutil como uma colher de chá, grude de engodos, o firme fascínio. Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos. Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escândalo popular, por que forma fosse.

          Mas.

          Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios.

          Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora. De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão.. Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou fugida a mulher, a desconhecido destino.

          Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se histórico, quase criminoso, reincidente. Triste, pois que tão calado. Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. Mas, no frágio da barca, de novo respeitado; quieto. Vá-se a camisa, que não o dela dentro. Era o seu um amor meditado, a prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-se.

          Mais.

          No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã. A bonança nada tem a ver com a tempestade. Crivel? Sábio sempre foi Ulisses, que começou por se fazer de louco. Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade — idéia inata. Entregou-se a remir, redimir a mulher, à conta inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e amar, a gente não se desafaz. Ele queria apenas os arquétipos, platonizava. Ela era um aroma.

          Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe à boca-de-cena do mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água suja. Demonstrando-o, amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. O que não era tão fácil como refritar almôndegas. Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente.

          O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado — plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?

          Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção manifesta. Haja o absoluto amar — e qualquer causa se irrefuta.

          Pois, produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o tempo secou o assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu nevoeiro. O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima. Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos.

          Mesmo a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento.

          Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida.

          E pôs-se a fábula em ata.



De Estas Estórias:
Meu Tio, o Iauaretê
(excerto)



          Mecê tá ouvindo, nhem? Tá aperceiando... Eu sou onça, não falei? Axi. Não falei — eu viro onça? Onça grande, tubixaba. Ói unha minha: mecê olha — unhão preto, unha dura... Cê vem, me cheira: tenho catinga de onça? Preto Tiodoro falou eu tenho, ei, ei... Todo dia eu lavo o corpo no poço... Mas mecê pode dormir, hum, hum, vai ficar esperando camarada não. Mecê tá doente, cerece de deitar no jirau. Onça vem cá não, cê pode guardar revólver...

          Aaã! Mecê já matou gente com ele? Matou, a’pois, matou? Por que não falou logo? Ã-hã, matou, mesmo. Matou quantos? Matou muito? Hã-hã, mecê homem valente, meu amigo... Eh, vamos beber cachaça, até a língua da gente picar de areia... Tou imaginando coisa, boa, bonita: a gente vamos matar camarada, ‘manhã? A gente mata camarada, camarada ruim, presta não, deixou cavalo fugir p’los matos... Vamos matar?! Uh, uh, atimbora, fica quieto no lugar! Mecê tá muito sopitado... Ói: mecê não viu Maria-Maria, ah, pois não viu. Carece de ver. Daqui a pouco ela vem, se eu quero ela vem, vem munguitar mecê...

          Nhem? A’ bom, a’ pois... Trastanto que eu tava lá no alecrinzinho com ela, cê devia de ver. Maria-Maria é careteira, raspa o chão com a mão, pula de lado, pula frouxo de onça, bonito, bonito. Ela ouriça o fio da espinha, incha o rabo, abre a boca e fecha ligeiro, feito gente com sono... Feito mecê, eh, eh... Que anda, que anda, balançando, vagarosa, tem medo de nada, cada anca levantando, aquele pêlo lustroso, ela vem sisuda, mais bonita de todas, cheia de cerimônia... Ela rosnava baixinho pra mim, queria vir comigo pegar o preto Tiodoro. Aí, me deu aquele frio, aquele friiíio, a cãimbra toda... Eh, eu sou magro, travesso em qualquer parte, o preto era meio gordo... Eu vim andando, não no chão... Preto Tiodoro com os olhos doidos de medo, ih, olho enorme de ver... Ô urro!...

          Mecê gostou, ã? Preto prestava não, ô, ô, ô... Ói: mecê presta, cê é meu amigo... Ói: deixa eu ver mecê direito, deix’eu pegar um tiquinho em mecê, tiquinho só, encostar minha mão...

          Ei, ei, que é que mecê tá fazendo?

          Desvira esse revólver! Mecê brinca não, vira o revólver pra outra banda... Mexo não, tou quieto, quieto... Ói: cê quer me matar, ui? Tira, tira revólver pra lá! Mecê tá doente, mecê tá variando... Veio me prender? Ói: tou pondo mão no chão é por nada, não, é à-toa... Ói o frio... Mecê tá doido? Atiê! Sai pra fora, rancho é meu, xô! Atimbora! Mecê me mata, camarada vem, manda prender mecê... Onça vem, Maria-Maria, come mecê... Onça meu parente... Ei, por causa do preto? Matei preto não, tava contando bobagem... Ói a onça! Ui, ui, mecê é bom, faz isso comigo não, me mata não... Eu — Macuncozo... Faz isso não, faz não... Nhenhenhém... Heeé!

          Hé... Aar-rrâ... Aaâh... Cê me arrhoôu... Remuaci... Rêiucàanacê... Araaã... Uhm... Ui... Ui... Uh... uh...êeêê... êê... ê... ê...





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VI — Haroldo de Campos

De Galáxias (excertos)



e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem o que importa não é a viagem mas o começo da por isso meço por isso começo escrever mil páginas escrever milumapáginas para acabar com a escritura para começar com a escritura para acabarcomeçar com a escritura por isso recomeço por isso arremesso por isso teço escrever sobre escrever é o futuro do escrever sobrescrevo sobrescravo em milumanoites milumapáginas ou uma página em uma noite que é o mesmo noites e páginas mesmam ensimesmam onde o fim é o começo onde escrever sobre o escrever é não escrever sobre não escrever e por isso começo descomeço pelo descomêço desconheço e me teço um livro onde tudo seja fortuito e forçoso um livro onde tudo seja não esteja seja um umbigodomundolivro um umbigodolivromundo um livro de viagem onde a viagem seja o livro o ser do livro é a viagem por isso começo pois a viagem é o começo e volto e revolto pois na volta recomeço reconheço remeço um livro é o conteúdo do livro e cada página de um livro é o conteúdo do livro e cada linha de uma página e cada palavra de uma linha é o conteúdo da palavra da linha da página do livro um livro ensaia o livro todo livro é um livro de ensaio de ensaios do livro por isso o fim-começo começa e fina recomeça e refina se afina o fim no funil do começo afunila o começo no fuzil do fim no fim do fim recomeça o recomeço refina o refino do fim e onde fina começa e se apressa e regressa e retece há milumaestórias na mínima unha de estória por isso não conto por isso não canto por isso a nãoestória me desconta ou me descanta o avesso da estória que pode ser escória que pode ser cárie que pode ser estória tudo depende da hora tudo depende da glória tudo depende de embora e nada e néris e reles e nemnada ou nada e nures de néris de reles de raio de raro e nacos de necas e nanjas de nullus e nures de nenhures e nesgas de nulla res e nenhumzinho de nemnada nunca pode ser tudo pode ser todo pode ser total tudossomado todo somassuma de tudo suma somatória do assomo do assombro e aqui me meço e começo e me projeto eco do começo eco do eco de um começo em eco no soco de um começo em eco no oco eco de um soco no osso e aqui ou além ou aquém ou láacolá ou em toda parte ou em nenhuma parte ou mais além ou menos aquém ou mais adiante ou menos atrás ou avante ou paravante ou à ré ou a raso ou a rés começo re começo rés começo raso começo que a unha-de-fome da estória não me come não me consome não me doma não me redoma pois no osso do começo só conheço o osso o osso buco do começo a bossa do começo onde é viagem onde a viagem é maravilha de tornaviagem é tornasol viagem de maravilha onde a migalha a maravalha a apara é maravilha é vanilla é vigília é cintila de centelha é favila de fábula é lumínula de nada e descanto a fábula e desconto as fadas e conto as favas pois começo a fala

(...)

cadavrescrito você é o sonho de um sonho escrever em linguamarga para sobreviver a linguamorta vagamundo carregando a tua malamágica zaubermappe para fazer a defesa e a ilustração de esta língua morta esta moura torta esta mão que corta um umbilifio que me prega à porta a difusa e a degustação de e em milumapáginas não haverá ninguém algum nenhum de nenhúrias que numa noite núltima em noutubro ou em nãovembro ou talvez em deslembro por alguma nunca nihilíada de januárias naves novilunas finisterre em teu porto por isso não parta por isso não porte reparta reporte destrinça esta macarroníada em malalíngua antes que o portogalo algaraviando-se esperante o brasilisco e este babelório todo desbordele em sarrapapel muito fácil teu entrecho é simples e os subentrechos mais simples ainda alguém poderá falar em didascália uma palavra que termina em álea mas o certo é não diferençar entre motivo ou tema nem apelar para mitemas fabulemas ou novelemas ou se perder no encalço da melhor tradução para récit ou do distingo entre novel e novela nem é útil saber se fábula ou conto-de-fadas é o termo que equivale ao russo skaz bichos da seda se obsedam até a morte com seu fio e o corcunda só se corrige na cova não se trata aqui de uma equivalência a mão que escreve que escrava a simplitude do simples simplicíssimo em sancta simplicitas põe de lato a literordura deixa as belas letras para os bel’letristas e repara que neste fio de linguagem há um fio de linguagem que uma rosa é uma rosa como uma prosa é uma prosa há um fio de viagem há uma vis de mensagem e nesta margem da margem há pelo menos margem desliga então as cantilenas as cantilendas as cantiamenas descrê das histórias das stórias das estórias e fica ao menos com este menos o resto veremos uma garrafa ao mar pode ser a solução botelheiro de más botelhas da vida diva dádiva botelha que o futuro futura pela escura via delle botteghe oscure e quando a maré for subindo você virá vindo e quando a manhã for saindo você virá sendo e enquanto a noite for sumindo você estará rindo pois é lindo e ledo e lido e lendo este teu cantomenos este teu conto a menos sem somenos nem comenos este canto mesmo que já agora é teima e não se faz por menos mas nem vem que não tem se não te serve o meu trem se a canoa tem furo por aí é o futuro morre velho o seguro mas eu combato no escuro e pelo triz pelo traz pelo truz tanto faz tanto fez minha sina eu que sei eu que pago pra ver se no dois não acerto jogo tudo no três e ainda tenho uma vez esta história é muito simples é uma história de espantar não conto porque não conto porque não quero contar cantando cantava o sol contando contava o mar contava um conto cantando de terra sol mar e ar meu canto não conta um conto só canta como cantar





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VII — Caetano Veloso

De Alegria, Alegria (excertos)



          Cremúsculo. O sol, a só, despe de si, digo, despede-se, desce pé ante pele, descalço, dá-se e sobe, digo, sob, ou melhor, sobre as bandas cremoças das mulheres alfíssimas do hemisferno nhorte. Kolinas sonrisam no horizonte. Mastros desdesenham-se no ocidonte. Acapulcos e havaís tampouco. Tranquislidade. Moite. Não há dúvida: é chagada a hera dos maiares desgrossos. Não há dúdiva: ele virá, sentará de pé sobre a poldrona enfernizada onde tandos senturam e ferá o elequante discorso: sua eterna dádiva; nossa eterna dívida. Assim pressunto trudo que já estrá aquantessendo encuanto camino por las calles de esta casa grande mansão da minha hotess. Sua majestade, sua desclarada, sua cachorra de minha adolescênica, por que nunca me declaraste nenhum amor enquanto eu era virgem e voraz? Eres una pública. Y yo te quiero, yo te quiero... Mas como eu ia rizendo: alguns mastrodantes circruzavam pela prehisteria na hora da ave-maria. Cai a tarde tristonha e serena, em macio e suave langor, despertando no meu coração as saudades do primeiro amor. Um gemido e se esvai lá no espaço nesta hora de lenta agonia quando o sino saudoso murmura badaladas apropriadas. Braçal, ano dos maus. Brastel, amo dos meus. Passou o ano dos gols. Bravil, anda com ferro e gurgulho a terra onde Maciste, criança, enfrentou João Lúcio Godard: não verás nenhum Paris como este! Olha que shell, que mer, querida, que forgets! Papo furado. Acordar tarde demais é que é fogo. A mulher que eu amo realmente me disse que eu acordasse mais cedo um pouco. Ao crepúsculo é demais. Fossa na certa. Merci bocu. O bandeide da luz vermelha rides again. Qualquer negócio. Hoje em dia, minha filha, tanto faz como tanto fez. Entretanto não adianta resposta.





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VIII — Paulo Leminski

De Catatau (excertos)



Oxaliás, o crifício não cancerne, o perlume ciclusulca... Espiralâmides trextram moluscofusculaturas amassacra-massam as pilhérnias que carcomascam os duélagos do ursucapiau! Marsup! Aurifúlgido, argenticerúleo dentorrostro! Com a brecadabra! Lampadainha em litany, ou em nenhumgatu? Qualqual chor? Um nenhúnflar! Em Quizília, rubicundam o imesmo langaré! Quadrilátero foi ondeontem, o massacrifídio triunfotriu no princípio, testenenhuma na ocacasião, ocacasial! A palatéia ignogra colibristas, e por talismanhã — apalpenas o muselau! Calhauculo: quantos andromedrontários desvenclavestram o ojerizante? Calverdáver, mecanículas onde contagotagiosas? Acoli. Inverneja o descascaso, e cleampulepatrás! Terrestrecelestrelestra, queroquerubim: contitactos, tautuagem... O colopso acasalha a armandíbula. Verdade que óculosculta, e inclusive, eis-me, achancelerado em tétalos, irreversando o que tem tido e vem sendo e, tendo o tempo todo para o ser, chegou cedo. E viva a voz! O queira tal quão o diz o velho anaxímenes, — Zenão, Zenão, sem zênite se caçoa do nadir? Mas também não tanto? Nem por isso, senão, Zenão, não! O plantasma, ostra em claustro deseinvista às apalpebradelas contra Constamprimobra! Alvísceras! E daqui a pouco já é bem mais alhures que onteantem era outrora, e constantemente já! Diz que quem anda como quem não quer, se manda. Dir-te-ei, cansa? Minhas dansálias, quero ensandançar! Em matéria de líquen, falo látex ou fico sílex? Falante a seu talante, o trânsfuga se transfigura!. Blasfo! Aldeia alheia, aldeia e aldeia e meia. Um rápido bosquejo para as apálgebras! Empíreo e império — primeiro, — depois, empório... Debuxos para aqualerolera, na ferraguesta entre guelra e goela — a palra! Desvenda-se à vista do exerxésito e, quer queira, quer não queira, logo, logo o quê? Se bem que um paspaliativo não possa insuflantar a veneranda alfabábula, que malpatrilhadasolsticidade catasepulta num confrontispicilégio, e é contra! Entrecontanto, e não obastante, oba bolas ou babolas, vocifre uma esferência e se perda em cochícheros esféreis, sem demais a mais, embora bolas, ainda não. Se impossivel for, muito menos que nunca a uma soltice, deboxalá! Por mor e mal de meus deslizes de lesa-claridade, ando tendo umas e outras que palavra vou te contar coisas de outro mundo, inclusive embora de vez em quando me dá uma coisa aqui, daqui a pouco, me dá um que-será-será de outra mais aqui, bem assim mesmo; e de mais a somenos, para dar a dobra no cabo dessas, eu sei, ó meu cor de salteador! — não é qualquer que serve, não! — e eis a mais não poder disso.





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IX — Décio Pignatari

De Panteros (excertos)



          De amarelo-ouro, tafetá, domingo de nebliluz, saltava poças pela rua barrenta da matriz, jeito de sinhá rodeada de aias invisíveis. O carro já era um símbolo evanescente, mudara-se da Várzea para o lado sul da ferrovia, Osasco, propriamente, casa de estilo mexicano, rua sendo asfaltada. Durante a missa, Miro buscava entre vultos de pé, de joelhos, sentados, aquele nome que começava a ressoar na cúpula de todos os seus sentimentos, enquanto o padre, incensantemente, italianava réstias de luz. Yara se abaixou para um missal caído, voltou em Cãmara lenta os olhos para ele e sorriu-lhe no coração uma fatal ferida feliz.

(...).

          Quando o vizinho se vestiu de noiva, claridade fria como neblina translúcida de tarde sem sol pelas enormes verdes venezianas meia-folha entreaberta como dique de náusea, retículas brancas de um véu de filó sobrevoaram o espelho de gumes bisotados, mal encobrindo um entrevisto braço adolescente, ao fim do qual desabrochava um ramalhete de jacintos e melindros, tremulamente seguro por unhas sujas esmaltadas de cor-de-rosa, os dedos subitamente decepados por uma mitene roxa: "Animal", disse a sombra censória atocaiada no vão da porta entreaberta: "Animal", ódio rouco. As sobrancelhas grosseiramente depiladas e as pestanas rimelnegras flecharam, como vetores, os olhos de Miro feroz no espelho, e desmaiaram no linóleo, onde dragões chins de verniz investiam contra as próprias caudas tridentadas, num remoinho de escamas verde-e-sépia hipnotizando olhos e véus. "Fora com isso!", mão violenta, e o véu, como um sopro de leite, ingressa, em vôo curto, na vidraça, como a nebulosa nos cristais: Miro arranca-lhe o sutiã, rasgam-se alças, desaba o bojo, um seio de borracha esponjosa desliza pela combinação, fica girando como um pião dormente, entre garras e caudas e presas. Cospe-lhe na orelha, o lóbulo esfria um brinco de saliva, o lábio superior sobe e desce, parece arfar sozinho, as narinas tremem como a provar um cheiro estranho, desaba de bruços na colcha felpuda da cama, cena de cinema, soluços. Sozinha, de si mesma, desabotoa-se a calcinha caleçon lingerie salmon da mãe, desliza, vai mostrando a curva delicada de um pêssego de carne. Breve hesitação. Câmara começa a aproximar-se, devagar.

          Verão de luz cegante a queimar bordas e arestas das coisas, estalou às suas costas o ferrolho do portão, parou na calçada, olhou à esquerda: vinha um caminhão, e à direita: na estação começava a mover-se o focinho negro de uma locomotiva, remoendo ferros sombras vapor d’ água. Súbito, um vira-lata preto cruza a rua frente ao caminhão escapa de roda dianteira apanhado por uma traseira levanta-se como a rir ileso língua vermelha / caminhão corta a cena / estira-se o bicho em ginástica agônica rente à cerca: moído por dentro, a carne escura desaba no calor esvaziado de tempo, distante, sem gesto ou grito. Observador neutro, Miro guardou a imagem na memória, documento em carteira, para eventual uso oportuno. Barulhento chapéu de plumas de carvão, a locomotiva arrasta atrás de si um séquito de gôndolas de gado, Miro se volta para a direita, rumo ao Largo, comprar cigarros.

(...)

          O vestido de palha-de-seda chinesa com vivos azul-turquesa, sapatos de salto alto, meias de seda, combinação salmão, perfume Je reviens, a surpreendente senhora madame mestra de danças, ex-mulher de um poeta modernista, falou bem alto a alguém, para que as suas alunas escutassem e algumas entendessem:

          — L’amour est plus chair que ça!

          Mais e mais macilento e frágil, à medida que mais forte ia ficando o desejo, começou a delirar, filho mofino apenas cheio de vontades: aquela presença a distância, maravilhosa visão (speciosissima), tinha de virar presença física, comida de amor (pulmentum).

          Eis que ouve o deslizar de seus pezinhos (ecce enim sonitus pedum). Afasta as cortinas da alcova (conclave), com uma das mãos, como quem repartisse os cabelos, na outra trazendo uma salva com os pãezinhos (sortiunculas) que acabara de cozer.

          Miro agarrou com fúria aquela palavra (vocabulo Thamar),

          y vió en la luna los pechos durísimos de sua hermana,

e disse:

          — Venha, deite-se comigo, minha irmã (Veni, cuba mecum, soror mea).


Veja também: Nova Prosa, anos 80-90


 

Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: Elson Fróes