"Ali vem a nossa comida pulando" (V. Hans Staden - Cap. 28)

Nova prosa: anos 80-90

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I — Wilson Bueno

Mar Paraguayo (excerto)



: hoy el niño me pôs a ouvir los rumores de la tempestade lunar: en el mormaço de la siesta, pressenti nítido e casi arfante que el chegaria: sombra y dibujo: ávida nádega: mamilos: duros muslos a cavalo: su contorno preciso: la paina castanha del pêlo: muerdo: remuerdome: ñandu: ñanduti: la aguja trabaja: crochê: caracol: curva: la línea: la linha: la araña: ñandu: todo el niño se acuerda en mi: y já me estremece un eriçar de piel y pêlo: soy yo el enigma y lo alforje esfinge: hay que devorarlo a el siempre imprevisto: dibujado en la tanga su sexo ostensivo: mas sobretodo los ojos verdes contra la cara de risa y sol: lo tôrax en los embates del viento y del lamiento: a bailar en la siesta: sueño: soy su araña: álgebra: pronta jibóia: toda me enlambe su língua destra: todo lo unto de cuspo y baba: humores: suores: los miasmas: espasmos: la siesta me pone abrasado el útero profundo: el niño: súbita ñandu: puede que ponga su língua a lenta y me percorra: de los pies al cielo en luto donde vislumbro los rumores de la tempestade lunar: lábio premindo lábio: araña y grêlo: la dança de su boca: ñandu: el arpón de la aguja avança sobre la linha en trenzada línea: antes del nudo los caprichos de la meada: ñandurenimbó: fuerzo su cabeça contra mi boca: borro-lhe batón: el borrador: borrar la linha: la siesta: mi grito: nuca olvidar el gemido que tudo el niño antes de que todo y tudo se transformasse: telaraña, neblina y nuvem en los rumores de la tempestade lunar: de uno solo gemido mortal: mio y dele: la faca en fuego de su lanza: lanzada: punto: nudo: laçada: nudo: lanzada: punto: ñanduti: ñandu: la tela va aborrindo: las luces se pierden en el azul más nocturno: telaraña: ñandu: el niño mañana puede que sea aún outra vez y nuevamente solo la projeción oblíqua de la marafona que apena: ñandu: espreita: esto niño que marcha por las piedras de la calçada sin sequer saber que sobrexisto: acá en el entardecer: sueño de sueño hecho la rubra capitulación de uno ente que solo puede verlo: a el que imponente marcha: dirección del mar: su gusto de concha y sal: teço y teço y teço telaraña ñanduti: renda: rendados: rendêra imaginación fabril: higuêra hora: iguana: ñandurenimbó: en la siesta: hoy en estos martes sufocados miércoles medrados: après-midi: el fauno: tuvo a el niño a dentadas y mordeduras: yo lo tuvo en mi ventre entrañado: ñandu: telaraña: ñanduti: solo el no lo sabe: y sigue en el mar su gusto y sêmen: ni el sexo há de tampar estos traçados: evaporable véu: ñanduti: transparência y luces: ñandu: ñandurenimbó:

breve elucidário guarani

ñandu: aranha; também o verbo sentir e o substantivo sentimento.

ñandu’i : aranhazinha.

ñandurenimbó : teia de aranha.

ñanduti: renda paraguaia, artesanato muito popular no Paraguai.

Ñandutimichi : teiazinha de aranha; teiazinha de aranhinha.

(Fragmento da novela "Mar Paraguayo", Wilson Bueno, Iluminuras, 1992, págs. 47 e 48.)







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II — Ademir Assunção

A MÁQUINA PELUDA (dois excertos)



meu bem dutado reizim

fuf! fuf! fuf! dim duns cinquentanos pra cá u bichu-priguiça mi agarrô i nunqué mais sortá. logu ao acordá metu fogu nas minhas paias di miu i passu inté u meidia só a forgá. passa vaia di arara pras bandas du ladilá, papagaiu pinta i borda cua papagaia nu gaiu, sabiá sabidinhu si assanha i canta lindu di arripiá, i essi zóiu qui a terra di cumê há só zoiandu, zoiandu a zuêra da passarada i essis uvidos só iscutandu. i assim us gonçalves dias vão passandu sem qui a genti indóidi. pópatapataio pra qui, pépotupituio pra li, essa vidinha corri danadinha di boa qui numpode sê mió. mi benzu nu farol da barra, mi crismu na tapera di itapuã i nada di ruim mi cisma quandu bebu a marvada di acauã. pois vosmicê mi veja o qui mi acunteceu: incostô um exu caipira qui nunqué mais mi largá, desdi qui pitei um dubom i incuntrei u condi d’eu cantandu a dona benvinda, cuma cunversa meinviezada nu baile du corte d’arrayol. pois qui u safadu du condi, já mei bêbu, dizia assim cum vozinha bem nouvidinhu da benvinda e todumundu em vorta iscutava: sabe, doninha, qui farinha di suruí, pinga di parati, fumo di baependi, é cumê, bebê, pitá i caí. i us dois si riam até numpudê mais. si riam tantu qui dona benvinda até chegô a sortá aguaceiru pernabaixu. sei não, reizim, mas achu qui us dois tão é di teretetê. i sabi qui daqueli matu da dona benvinda sai cuelho qui nuncaba nunquinha. a danadinha numperdi tempu não, é, perdi não, bem sabi ela qui aquilu qui u homi num metê a terra há di cumê. acoma dizia o filósu: si eva num pecassi, ai di nóis qui numtinha nascidu e nem sabidu daquilu du bom da vida. pois qui mi risponda esse mundaréu di povu aí da corte: u qué qui podi havê di bom sinão gozá do amô di uma muié? di muié ou di homi. é, di homi tumbém, pois qui aqui nestas terras dessi mundão dus diabus discubri qui amô di homi tumbém é bom. i podi todumundu falá pois qui si é bom é bom i ninguém tem nada di vê cum issu, certu? a vida é minha u corpu é meu i u homi num é di ninguém i eu numdevu nada nem pra deus, pois qui u qui divia já apaguei cum tanta paia de miu qui já fumei. comu se diz na gira: pai qui é pai é oxumaré: cabeça di homi, quadri di muié. quem é qui podi dividi u qui a natureza ajunta? tem jeitu não. todumundu aqui sabe da história du jagunçu riubardu qui passô a vida toda atarantadu dus diabus pois qui gostava di um danadu dum cumpadre du seu bandu i qui quandu essi homi qui atindia pelu nomi di diadorim murreu, foru vê qui era homi coisa nenhuma, era muié mesmu, uma bruna linda di murrê. pois aí é qui riubardu chorô comu fêmea i ninguém qui num intendeu nada. intão miriveja cumas aparências inganam. uma purção di linguarudu vivia cuchichandu im vorta da fuguera butandu im dúvida a macheza di riubardu i u coitadu si atrumentava tantu cum eli mesmu qui nunca tevi curage di tocá diadorim. i u qui qui u infeliz levô dessi amô qui era amô di verdadi mesmo? nada, nadinha. só sudade daquilu qui nem chegô a pruvá. pur issu é qui quem num intendi dus caprichus du amô num tem qui butá u bedelho na vida di ninguém. u qui queu aprendi nesti novu mundu é qui u mais importanti da vida é isprimentá tudim. muitu mais importanti duqui u oru ou a prata ou a ismerarda, qué dizê, dipendi da ismerarda, si é qui vosmicê meu reizim intendi du quistou prusiando. pois isplicu: u quistou prusiandu é dividu aus meus hábitus di puliglota, já qui gostu disprimentá todas as línguas qui incontru nestas minhas caminhadas pelu mundu afora. do you understand what i mean, my king?

ah, ah, ah, êh, êh, êh, uh, uh, uh: oba: o exu caipira desencostou, meu gostoso rei. divertido esse caboclo. ah, ah, ah, ró, ró, ró, ró, ró, ró, huuuummmm. só espero que não baixe o argentino, pois não suporto a lengalenga que ele sempre sopra no meu ouvido: "que se pague a diez maravedis cada hoja de pliego entero escrita fielmente de buena letra cortesana, y apretada y no procesada: de manera que las planas sean llenas, no dejando grandes margenes e que en cada plana haya, á lo menos, treinta é cinco renglones, e quince partes en cada renglon". fruf, sai, desencosta, meu rei, meu reino de prazeres: no fundo no fundo não me importo com essa exuzada que desce pelas minhas parabólicas, exceto o argentino com seu nariz empinado e seus caga-regras do bom escrever. gosto que me encosto quando vem a baianada, caboclo véio do recôncavo, senhor das matas e dos montes de vênus: dá uma preguiça boa dos escarcéus. ai, meu paim da corte, como essa cambada da bahia de tantos santos sabe louvar os esperavéus. já disso já provei e continuo insinuando: é por isso que daqui destas praias saem poetas tão malandros de bons. os mouros e os mouriscos dos fados melancólicos precisam topar de topa em tipa moçoilos como o velho gregorião de matos, compadre meu, meu irmão, que do alto desses séculos que devem varar a dezesseis ou dezessete,mas que parecem vinte e até vinte e um, hum, hum, deixavê: sei lá, não importa.



A MÁQUINA PELUDA (excerto)



ei, ei, ei, viva o nosso rei: hippie, hippie, azurra! honk tonk amula! chicundun chicundun chicundun pá!

querido rei dos céus e dos pãos nossos de toda semana santa:

Vossa Alteza precisa conhecer um poeta que folga por estas maviosas terras de Vera Cruz – a qual muitos já querem mudar denominação para Brasil, que rima com varonil, que lembra vara, que remete no plano do significante aos paus que crescem e florescem em quantidade e beleza e que deleite intenso nos têm dado ao se avolumar diante de nossos olhos lupanares. Pois tal poeta, a quem os nativos costumam chamar Pinto Calçudo d’Andrade, tem por hábito nos brindar com versos folgazões e mui audazes como os que como de onde nem quem bem somos:

No Pão de Açucar
De Cada Dia
Daí-nos Senhor
A Poesia
De Cada Dia

chicundum chicundum praratimbum trá: é carnaval é carnaval – viva o rei de portugal, de porto belo ao senegal, viva os peitos velhos da gracinha gal, sob o signo glorioso do santo graal.

Veja o Senhor Rei Mafioso que tenho prensado muintcho em parrar com essas minhas cartas histórridas e me espacializar na composição de marcinhas de karnaval. É fácil, dá dinheiro e alegra a rapaziada do Brás Bexiga e Barrafunda aos manguebeats do Arrecife e arreboys – arre virgem santíssima dos buracos da rua: meus sais!!!

Aliás, tenho me ocupado nos últimos 250 anos em colecionar palavras antigas e modernas para melhor roçar os ouvidos de Vossa Alteza. Quando vejo alguma rebolando pelas trilhas que se aprofundam mata adentro logo me coloco no encalço e as sigo sem modéstia nem desconfiança para mais saber sobre suas vidas secretas: onde moram? com quem dormem? o que as faz tão gostosas? Confesso, porém, que estas danadinhas mui safadas e espertas são. Assim que percebem que estão sendo seguidas pelo escriba da Corte se põem a rebolar com suas tão arredondadas formas de tal modo que muitas acabam conseguindo mais coisas de mim do que eu delas.

Dia desses quase me dei definitivamente mal nesta empreitada. Estava folgando pela praia quando avistei uma linda palavra vestida somente com uma minissaia de penas de tucano e arara. Imediatamente me pus ereto com a cabeça apontada para os céus, os pés fincados no chão, e passei a segui-la por dentro da floresta. Ao chegarmos por detrás de uma moita mui espessa ela como que num passe de mágica do mago Merlin se transformou numa onça preta de garras terríveis, urrou, gemeu, lambeu os beiços e proferiu terríveis palavrões, certamente inadequados para quem antes parecia uma palavramoça tão hermosa. Sorte que fui acometido por uma incomum bravura: arranquei meu paubrasil pra fora e o mantive firme em posição de ataque. Horas depois acordei ensopado de suor. A safada tinha se ido, deixando profundos arranhões nas minhas costas.

(...)

O que posso informar de antepé é que, na semana passada, no ano de ontem ou há quatro séculos, não me lembro bem, pois meus neurônios já não são tantos, o bispo Sardinha virou churrasco. Bem avisei para manter o clero longe deste sítio, pois os nativos adoram carne de padre. O presidente de uma grande rede de fast foods daqui, sr. Touro Sentado num Grão de Areia, já anunciou inclusive que está concluindo os testes para o lançamento de um sanduíche que deve fazer muito sucesso nos estúdios de Vera Cruz: o McPapa. O slogan do novo produto está sendo veiculado intensamente através de sinais de fumaça: "é impossível papar um só". Há também um jingle que as crianças nativas adoram: "papaumama papaumama, papaumaaaaa, oiééé!"

Do alto do século em que me encontro, vejo blau e ouço o blaublaublau das onças tropicais, podendo portanto assegurar aos vossos da Corte Magnífica que três serão os textos fundadores destas novas terras de aquém-mar: 1) estas minhas cartas, o que muito me lisonjeia e massageia os mais profundos dos meus intestinos grassos, 2) a poesia paubrasil, do poeta Pinto Calçudo d’Andrade, o qual dei troça e graça a Vossa Alteza parágrafos atrás e 3) O Catatau, de um maluco chamado D. Pavlvs Leminsczewski que ainda será descoberto e mui estudado entre os doutos da Universidade de Coimbra. Desde já proclamo e reclamo atenção, contudo, a uma espécie de traça conhecida por aqui como Occam, provavelmente oriunda do hábitat das ervas aromáticas que os nativos pitam em seus cigarros de palha de milho, a qual se alimenta de orações subordinadas, verbos intransitivos, vírgulas e letras maiúsculas, e que costuma perturbar, só por sarro ou farra, a ordem vigente das frases diretas, alterando a seqüência convencional dos sujeitos, verbos e predicados, sejam eles objetos secretos ou adjuntos abdominais de tempo lento e espaço rápido.

 

(Publicado por Ateliê Editorial, São Paulo - SP, 1997)







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III — Claudio Daniel

Dona Virgo (excertos)



1. ondas do mar de vigo, verde mar, musgo, mofo, muco; verde malva, jaspe, jade ou junco; vera-olhos-verdes, vera de vigo, onde o veio de tua vulva? vê-la é vício, não vê-la é vírus, seu cheiro: folha de ipê, folha de figo, só folhas; aloés, baobá, broto de bambu, begônia, branco alecrim, visgo. vera viçosa, fremosa, velida, tecido sem vinco; negra ninfa, niña de mama áfrica, de são salvador, filha de oxum, en las calles de vieja españa. onde os teus olhos, onde os teus peitos, moça de virgo? penso em tua pele — não prata, aljôfar ou espuma, mas seda azeviche, seda escura, de brancaflor noturna —, em tua voz, que sus-surra ao coraçon, e em teus olhos, que falam para a alma. praza-vos já que vos veja no an, hua vez d’un dia! só ela, a moura moçela, faz o meu sangue ferver, em vagas, nas veias: a que partiu, sem me ver, sem se dar. e me lancei à viagem, sem temer a voragem, e cruzei terras e mares, atrás dessa dona de mim, que me fez danado, e nulhas guardas migo non trago, ergas meus olhos que choran ambos.

(...)

alba, areia, água, areia, água, areia, areia, areia. onde está a minha sereia? só vejo o céu alvo, algo de algas, mágoa de mágoas. vera, vênus de vigo, molher marinha, eu a sonhei saindo das águas, nudez até o umbigo, nascendo da espuma-esperma do mar de vidro. e caminhei ao longo da praia, nesta manhã, praia de pedras e areia, de escuro mar piscoso sem gaivotas, e só vi a alta grama, a areia, a grama, a areia, o musgo, a lama, a lama, a areia. sem ela, tudo é treva, pó, tudo triste treva, noite em noite dissolvida. amgos, non poss’eu negar a gran coita que d’amor hei, ca me vejo sandeu andar, e com sandece o direi: os olhos verdes que eu vi me fazen andar assi.

(...)

depois de jantar, sem sono, resolvi dar uma volta pela cidade. e fui à taberna montemor, meu senhor, branca casa de pedra erma do tempo de el-rey don afonso, onde se bebe boa cerveja em mesetas toscas circundadas por azulejos azuis, decorados com motivos de marinheiros e monstros do mar. ali encontrei carlos cazali, o fotógra-fo, e perguntei a ele se vira a moçela, a meninha de olhos verdes: — digas-me mandado de mia senhor, ca se eu seu mandado non vir’, trist’ e coitado serei; e gran pecado fará; se me non val. ca en tal ora nado foi que mao-pecado! amo-a endõado, e nunca end’ ouvi al! e ele me respondeu assim: — vera? oh, sim, vera veiga, a irmã siamesa de veneza, top model da stylus, ela tirou fotos em vigo, para uma revista, mas isso foi há dois dias, e já foi embora, meu caro. — ah, dame sans merci, vera bela, magra maga mulata, maja naja noir, em boá de marabu, em popeline, cambraia, musselina; dama em adamascado, dalmático, debrum, merino, gonflé, godet, matelassé; seminua em papel couché, formato tablóide, o rosto ovalino na capa, suas pálpebras cetinosas, os olhos manhosos, a tez de anoitecer em marrakesh. — ela ia a pontevedra, e de lá para compostela, você sabe, a via de santiago. tome conosco um copo de cerveja, e mais um, e mais outro! e eu disse para mim, ao meu coraçon: vai, esquece essa nega galega, niña nagô, núbia dúbia, boca-de-mandinga, e vamos encher a cara! e depois, ah, e depois? posso sair, dizer alô a um poço, ficar de quatro, roer um osso. é isso, seu moço? e frei leonardo, o goliardo, o glutão, o gargalo-de-garrafa, per nostro senhor, falou assim para mim: — ora, pois! deixe essa mera megera, o amigo deve é sair com uma boa putana, com uma fulana de olhos sacanas, loura ou preta, de fartas tetas!, e cantou, em bom latim: veni, domicella, cum gaudio, veni, veni, pulchra, iam pereo! oh, oh, oh!, e cantou, também: ave, formosissima, gemma pretiosa, ave, decus virginum, virgo gloriosa, ave, mundi rosa, branziflor et helena, venus generosa. e celebrou sua eucaristia, o mo-nachus maroto: do vinho madeira, fez sangue de cristo, do pão italiano, carne de madalena, púbicas melenas, madeixas de morena, in nOmine pater, filius et espírito de porco, amém. e nós três comemos-be-bemos-cantamos até a madrugada, a nossa mesa sempre cheia de gros-sas fatias de pão, queijos, carne de carneiro, cerveja e vinho, meu a-migo. éramos a tríade do érebo, da glacial geena. frei leonardo, o pân-dego infançon, contou-nos seus amores por uma nívea-blonde-meninha, moça-flor carismática, fremosinha de sacristia, em seus lácteo-nectáreos quinze anos, que muito ofereceu e pouco cedeu, entre cantos de salmos e contas do rosário. o caso valeu ao réprobo frade censura episcopal e ameaça de expulsão da ordem; o cônico conego blasfemou conosco a genealogia do bispo geriátrico, e, de ofensa em ofensa, can-tou: nunca se deus mig’averrá, se mi non der mia senhora; mais como mi o corregerá? destroia-m’, ante ca morra. om’é: tod’aqueste mal faz, como fez já, o gran malvaz, en sodoma e gomorra. ei-lo agora ante nós, libertino sem batina, bonachão sem credo. carlos-cazzo-ca-zali, o viúvo das esposas que não teve, don juan imperito de mucamas de madamas, é o colecionador de nomes para o albergue-de-vênus de suas mimosas moçoilas: boneca, boqueca, bodega, pagode, pandora, paqueta, viola, violinha, violeta d’amore. carlos, mercenário de kodak, longa barba alaranjada, jaqueta de brim, óculos escuros, foi fotógrafo de moda, cobriu a guerra da bósnia, clicou defuntos em tiroteio e piranhas do meretrício. eu o achava vulgar, mas ele fez fotos para a stylus, e o suportei pela dica da sina de mia dona. saímos da taberna, às cinco horas da manhã, sob chuva finíssima, e fomos à praça don dinis; sentamos num banco de pedra, em frente ao chafariz netúnico-ninfático, e a última garrafa passou de mão em mão, entre risadas e piadas obscenas, até que carlos cazali fez um desafio, propôs uma tençon, e aceitei a contenda. o vilão começou, cantando: gil eanes brás morreu con amor en seus cantares, par santa maria, por ua dona que gran ben queria; e, por se meter por mais trobador, por que lh’ ela non quis (o) ben fazer, feze-s’ el en seus cantares morrer; mais resurgiu depois ao tercer dia. o frei riu, o gajo riu, os dois riram, riram de prazer de pilhéria, mas eu, gil eanes, respondo bá com bá, e bi com bi, e respondi: carlos cazali, parou-se-vos mal: per ante o demo do fogo infernal, por que con deus, o padre spirital, minguar quisestes, mal per descreestes? e ben vej’ ora que trobar vos fal, pois vós tan louca razon cometestes. e o tzigano mundano disse-me então: esto fez el por ua sa senhor que quer gran ben; e mais vos en diria: por que cuida que faz i maestria, enos cantares que fez, á sabor de morrer i e des d’ar viver. esto faz el, que x’o pode fazer, mais outr’ omen per ren nono faria. ah, carlos-sabugo, rebento-refugo, digo-lhe isso: e pois razon (a) tan descomunal fostes filhar, e que tan pouco val, pesar-mi-á en, se vos pois a ben sal ante o diaboo, a que obedeecestes. e ben vej’ ora que trobar vos fal, pois vós tan louca razon cometestes. o gaiteiro, então, ao final da tençon, sacou navalha escocesa; não sou adamado, meu bom amigo, peguei a garrafa, quebrei-a, encarei o canalha; mas frei leonardo, acordado do porre, num salto pôs-se entre nós, e tudo ficou acabado. após o embate, voltei ao chastel, sem prez nem joy, sem deus, dom ou dona; e enojei-me de gil, o porco, traedor, imigo de mim, per mia malaventura. non me posso pagar tanto do canto das aves nen de seu son, nen d’amor nen de mixon, nen d’armas. ah, afonso x, que bem sabia trobar! cantigas compôs à santa maria, don pelegrin, a la madona col bambino, mulier vestida de sol, coroada d’estrelas; e, por sua fé, do mouro tomou granada. eu não sei mais cantar, meu amigo, e por que cantaria? já eu non ei por quen trobar e já non ei en coraçon, por que non sei já quen amar. sem a fremosa dama louçana que me doma, zero a soma, perco tudo e resto mudo. e pensei: que fazer para limpar o coraçon, para merecer o amor da núbia, o nímio dulce amor da minha núbil fada? e, per nostro senhor, resolvi caminhar até santiago, seguir a ninféia ribeirinha, madona oriana négresse, com sincera devoção, com délicatesse, pois nada mais desejo, digo em minha prece, além do olhar da bela, que bailou entre as flores. com’ antr’ as pedras bon rubí sodes antre quantas eu vi. no dia seguinte, pus-me na estrada, em direção a pontevedra; e lá aconteceu algo estranho e raro, que non direi, que non direi, que non direi.



(Inédito do autor.)







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IV — Nélson de Oliveira

Doce dilema azul de bolinhas amarelas



O homem baixo de cabelos negros, vestindo camisa amarela de botões azuis, chamou o guarda negro de cabelos baixos, vestindo camisa azul de botões amarelos, e lhe disse:

— Por favor, policia. Aquela mulher azul de cabelos amarelos, vestindo blusa baixa de botões negros, xingou meu neto, Armando Lero, de "camisa rosa", por chutar o rabo (o furo entre as pernas) de sua cadela coxa, Ana Barbosa.

— Calma, meu bom amigo amarelo de cabelos baixos. Deixe tudo comigo. Eu cuidarei pessoalmente dessa Maria Carmela roxa de botões entre as coxas.

E o guarda negro de cabelos baixos, vestindo traje azarelo de botões amazuis, inquiriu a mulher não tão alta de cabelos não tão negros, usando vestido não tão azul de botões não de todo amarelados, a explicar essa atitude baixa de consequências negras pra com o alto Armando Lero de sapatos andaluzes, vestindo cueca vermelha de bolinhas cor-de-burro (quando foge).

— Mas, seu guarda, acontece que o burro (quando foge de sapatos altos) trajando vários botões tipo Rolling Stones, não pode avermelhar a cueca negra de cores azuis!

— Tem razão, madamezinha alta de cueca baixa, trajando burro amarelo de bolinhas azaluís. Aquele homenzarrão baixo de careca negra, vestindo vários botões vermelhos de camisa cor-de-burro (quando foge, mas se arrepende e volta), não pode defender seu neto camicase de camisa rosa, usando cabelos amarelos de azuis negros.

E o guarda baixo de cabelos negros, vestindo traje amarelo de botões azuis, voltou até o homem azul de cabelos baixos, usando camisa negra de botões amarelos, e lhe disse:

— Meu senhor, vou ter de prendê-lo por difamar aquela cueca vermelha de mulher alta, usando Armando Lero baixo de camelos cor-de-burro (quando se arrepende de haver voltado e foge pela segunda vez).

— Ora, seu guarda. E os meus direitos andaluzes de cidadão alto, vestindo calção baixo de cabelos azuis?

— Bem... eu...

Porém, a mulher negra de sapatos vermelhos, usando vestido amarelo de b abados caramelados protestou:

— Exijo que o senhor, seu guarda burro (de Q.I. baixo), ponha fim nesse dilema azul de bolinhas amarelas!

Mas o homem baixo de cabelos negros, vestindo camiseta camicase tipo Luís XV, chamou o guarda negro de cabelos baixos, vestindo camisola azul de botões amarelos, e furiosamente lhe disse:

— ...

Sendo assim, o oficial de justiça (um desses guardas de bolinhas burras e cuíca azarela) só pôde fazer uma coisa: prendeu todos e a si mesmo em sua cela alta de grades negras, com paredes baixas e camelos vermelhos.

— De uma coisa tenho certeza. Não, senhor! Daqui nenhum burro irá fugir, até chegar a Páscoa



(Publicado no Suplemento Literário de Minas Gerais n.º 37, maio/98)







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V - Elson Fróes

Roseano veio, voltou



Chegou-se a vez.

Sentira a carne puída de fatos, de escolher o alongar-se noutro ser, de contar anos e prestar contas do aprendizado. De sua própria substância, projetar de hoje os dias que vindo, até na sua contra sorte bem-vindos, deveria compor. Disse ao vento saber o curso e foi, a contragosto familiar, seguir estudos longínquos. O prometido retorno nem dera, coroado de achaques e negativas, nem remira gratitude: presto partiu. Dói demais e mau, só perdido, amor nem firme desatado. Aí de quem dói se dor atrai! Ela luzia enfim tortura de vaga lembrança, no rancor ancorado no coração. Luz fria, outra aquece: havia o esquecer. O que é desta coisa? No concreto de outra vida em conserto de alegrias idas - até as vistas! Ainda recitou de um carmen ancestral: O aceno ao viajor,/ o oceano e a jornada!

Roseano, alma solta no distar pressões, pessoal e livre caindo nas graças de si, em foz a voz dando vez chegou a tocar paraíso. Tinha o esquecido de si, de seu melhor sem retoques, sem traição de afetos. Viu-se no âmago do amor consigo conseguido. Ao centro, dividido de ver no espelho duvidar Narciso, além do desejo deformado na força impessoal, espúrio que ora purgava, dês o berço montado de burro fôra - apear depressa! Urgiu-se ágil, estancando desencantos, caiu-se em si, por tanto eu jorrado fora em tempos antes, de todos nem mesmo o íntimo trocado em miúdos não era. Era o olho dos outros, o gosto alheio, o rosto impróprio, feito de forma estranha, extra imposto, intra falseado. Nisto salve-se aquele além que ali revisto queima: queria ensinar-se, em si nascer, inseminar-se de tudo novo quanto desse, até o fim das forças. Límpido, de eriçar libido, como o vento nas folhas de grama, o indivisível, a contrato de risco e atrito, soprando doce como das nuvens as refiguras mutáveis, serpeando assaltos, o fole divino a empenhar oxigênese!

Mas a graça não grassa à toa, grátis. Antes de vingar, de vigorar, de vir à vista, vige o prazo de mérito, de por depósitos acumular virtudes, ao cúmulo de transbordar do ser. E de alçar asas, pormenores avolumou no lume da alma. E se precipitou por mares nunca, vogando de choque em seu íntimo, navegados nem sabidos, rotas escondidas por onde escamoteado passara sem perceber o que reluz felicidade. Ouro e aura, conhecer-se, aurora infindável...

Eis que foi adormecer no remir para acordar devedor. Crivado em dúvidas, saltou dos trilhos. Sempre dito desviado, de vário fim desvaria sua história, narrativa náufraga: se agarra o fio, rompe a memória. Mas, no mais, não rezar prazer era sina. Inconsciente de acomodar-se no incêndio, cedendo ao fim por princípio, tal príncipe sem reino, edificou castelos no ar de todas as graças, mas desgraçou-se nenhum que todos repeliam.

Vóo sin azos/ alá dos espazos! Da velha cantiga esquecida cantou. Não sabido repente rolou de volta o amor, amargor de ondas revoltas. Roeu-se de não viver conforme o seu desejar as coisas postas, revirando-lhe puro ardor de saudades. Ninguém sequer consegue, com pilares de fumaça, sem sustento: insuportou a sentença. No pilão dos fatos triturou quereres, tristurou-se de sem par nem pais. Requeria o não querido, e, traindo-se, subtraiu-se dali.

Voltou para furor de susto, só alegria. Queria que, ria-se, mesmo nas farpas fosse reposto no seio familiar e no coração da amada ex. Expatriado de volta, aureolado de outro, refinado nos modos de ser nenhum, felicidade finca raízes e fica edificando triz de fé que não crê tristeza por fim. Soubera o quanto resgata a sorte dos fatos no arvorecer retorcido da saudade.

Trouxe frutos. Assim dorido na luz o anseio refinava o desejar, como lhe aquece. Se a brisa que passa atiça, vivas brasas sob as cinzas vibram. Conferindo lucros da ocasião, pois que todo nome quer sobrenomes, inchava-se. Sub-repticiamente não percebido, ele no gostar de desgostos procurava. Para ser incomodo dava-se cobrar afetos, empenhado no amor absurdo, sabia e calculava. Não queria o troco da indiferença, punha-se mais à frente e sob o pisar-lhe em rejeição forçando acidentes.

Feliz aos trancos, tanto seu fel de rancores, predicava-se com o feitiço, confeitava ambicioso o doce dos lábios no roer-se do desejo. A falta faz falar a mais alta paixão e calar a razão. Aclarava-se no romper da aurora. Imprimia-se primores, ridendo! castigat mores: o que podia o amor, seu poder de fantasia e horror.

Roçar de espinhos e pétalas, a espera lhe espeta o espetáculo. Encena e afinco redobra para véu descortinar-se. Prática de esconderijos, ela sabia manejar sorrisos com palavras, senão que o olho iscava primeiro rimas internas: de magnetismo tinha, carisma, as armas. Se dúctil, seduzia dulcíssima. Deixava-lhe nos farrapos a alma, crivada em farpas, o sus de sua falta. Predicada em pecados, lançava-o no vício, que o imaginar e arder desejos lambem-se nas mesmas brasas, labaredas. Pronto e presto no labirinto perdeu-se. Solitude. Lentamente abrindo-se-lhe o interno inferno, consumido o espontâneo motivo de viver, revirou-lhe avessos todo sentir e pensar. Serpenteou o bote do azar, o karma a pagar. O não suposto impondo norma e preço.

E lá ela radiava a adiar o paraíso, que a dor de cá se adormece além à sombra de sonho. Ela, aliás a luz, aquece e vibra impalpável. E por não aceito, só por contra, e pró, por conta de um término sempre indefinido, as coisas perdiam valor, a alma pendia, perdurando por pouco e tanto. Em bárbara e oca cantilena: Danação a brisa abrasa/ uma festa de ardor/ farpas cravadas dentro/ peixe esquivo em nada/ esta dor que me arpoa/ malabariso nas entranhas...

Queimando a boca, a palavra depôs aos ventos, no sopro do tempo, cautério, ora derramado o ardor que emprestou ao sonho. E leia-se a lei: alia-se o desejo ao sem. Ali degenerando no gozo do mundo, recarregando saudades de si deixado longe. Por medo das nuvens?

Eis que nada, doou-se à dor, deu-se indomável que medo não medrou. Queimou o véu da imagem, espantou dormência: - Peco se escolho no espelho meu lado mais bonito!

E deu-se que à hora da aurora sumiu-se, liquidada sede.



 (Inédito do autor.)




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Û Ý ´ ¥ Ü * e-mail: Elson Fróes