Edgar Allan Poe:
versos e reverberações
Lucia Santaella
O
s impactos quase sísmicos, que o norte-americano Edgar Allan Poe deixou de provocar no seu próprio país para provocá-los no que houve de melhor na poesia francesa da segunda metade do século XIX e inícios do XX, já dispensam alongados comentários quanto à grandeza hoje indiscutível do gênio poeano.
Na triade seqüencial daqueles que estão dentre os maiores poetas que a França trouxe à luz (Baudelaire, Mallarmé e Valéry) reverberam as influência de Edgar Allan Poe. Nessa medida, a Poética da Modernidade, inaugurada por Baudelaire, levada às últimas consequencias por Mallarmé e ressonante na poesia-pensante de Valéry, está inseminada pelos gérmens lançados por aquele rebelde americano que percebendo agudamente as mutações (crises e re-adaptações homeostáticas) que os avanços da ciência, tecnologia e industria iriam acarretar para o mundo das artes, foi o primeiro a entranhar as mutações, desentranhando-as em novas formas de sentir e de criar.
Nada mais bem lembrado, portando do que uma publicação-homenagem do mais famoso poema (Corvo) poeano, em edição trilíngüe, acompanhado da Filosofia da Composição, diálogo (poesia/ensaio crítico-metalingüístico) que compõe a mais perfeita "dialética interpenetrada" dos intercâmbios e trocas complementares entre criar e pensar, sentir e criticar, entre a inspiração e a vigilância, a liberdade e a disciplina, a beleza e o rigor.
O Corvo foi publicado, pela primeira vez, em 29 de janeiro de 1845 no The Evening Mirror. Um mês após sua publicação, o editor da Americam Whig Review, resenhando o poema, já percebia nele um dos mais raros e bem sucedidos exemplares da exploração dos recursos peculiares que o ritmo da língua inglesa oferece para a criação da melodia, medida e som com vistas a produzir um almejado efeito de sentimento. Conclui que muito da melodia de O Corvo emerge da aliteração e do uso cuidadoso de sons similares em lugares incomuns: entre a música e a poesia. Em síntese, o que aí esta implícito é aquilo que o poema
aciona sem reservas ou comedimentos: a disseminação das rimas e dos revérberos de som e sentido por todos os recessos de cada verso e dos versos entre si.
Não por acaso Ch. Baudelaire sentiu agudamente a bicada do Corvo poeano, lutando para transpor para a sua própria língua, naquele jogo de perdas em uns pontos, compensadas por ganhos em outros pontos, que fazem da tradução uma tarefa de aprendizagem e descoberta dos contrapontos entre forças e fragilidades de que é feito o tecido de cada língua, e que só se revelam no confronto entre línguas que a tradução poética leva ao limite.
Mas a fascinação exercida por essa ave aliterante cruzou fronteiras e foi encontrar em Fernando Pessoa mais um poeta que tomou a si o desafio de fazer soar em português o canto, desenhado de ecos, em versos e reversos, do corvo emblemático. O teor de preciosidade do poema pode ser avaliado na medida equivalente da grandeza dos escritores que se expuseram ao seu apelo. No Brasil: Machado de Assis.
A evocação de uma "lembrança sem nunca ter fim" (Never-ending Remembrance) com que a intensão de Poe pretendeu envolver o final de seu poema, parece ressoar nos ouvidos dos grandes poetas que, respondendo à evocação, através da tarefa tradutória, de fato, fazem do poema uma lembrança sem fim.
Não por coincidência R. Jakobson, lingüista o mais lucidamente sensível às sutilíssimas filigranas fônicas, lexicais e gramaticais que a linguagem poética põe em jogo, escolheu o fragmento final de O Corvo como um dentre os terrenos privilegiados para expor suas investigações. Dentre as inúmeras engenhosas figurações de som-sentido (consecução do sentido no desenho material do som) que Jakobson evidencia no tecido do poema, cumpre por em evidência aquela que se tornou célebre por seu caráter exemplar dos procedimentos poéticos utilizados por Poe. O Corvo (RAVEN) repete, ao longo do poema, no lamento monótono do refrão, a expressão "Nunca Mais" (NEVER MORE). Ora, RAVEN (R.V.N.), demonstra Jakobson, é a inversão fonológica perfeita de NEVER (N.V.R.). Nessa medida, a palavra NEVER, desolado refrão que o pássaro imutavelmente repete, constitui numa imagem invertida da própria palavra RAVEN (Corvo). O corvo não podia dizer outra coisa, senão virar seu próprio nome pelo avesso.
Fica nisto um exemplo da engenhosidade de Poe, enquanto remetemos o leitor para uma das leituras mais preciosas na textura poética poeana, escrita por Haroldo de Campos ("Poe, engenheiro de avessos", em A Operação do Texto, ed. Perspectiva, SP), na qual, inclusive, a tradução que Fernando Pessoa realizou de O Corvo é examinada e vista como uma instância privilegiada da atividade crítica.
Com isso, passemos ao intertexto do poema com a Filosofia da Composição, na qual Poe, ardiloso e irônico "designer" de avessos, preparou para o leitor mais um jogo reverso.
Em abril de 1846, A Filosolfia da Composição apareceu na Graham's Magazine. Como uma espécie de golpe desmistificador contra a ideologia romântica reinante do poeta-vate que cria sob os efeitos quase mágicos do "lance santo raro da inspiração", n'A Filosofia da Composição, E. Poe despudorada e provocantemente põe a nú, passo a passo, o programa minucioso das intenções conscientes, das buscas elaboradas, das escolhas precisas e das medidas mais eficazes através das quais O Corvo foi gerado.
Abrindo as cortinas que as vaidades de seus contemporâneos mantinha zelosamente cerradas, E. Poe desvela os bastidores do processo criador, surpreendendo, mais uma vez, o leitor com uma revelação das mais inesperadas: o "modus operandi" de sua criação vinha em sentido inverso, começava pelo fim: "Prefiro começar com a consideração de um efeito". Ou seja, a prieira escolha, aquela que determinará todas as subseqüentes, é a escolha do efeito, unidade de impressão que o poema devera ser capaz de provocar ao ser consumado.
Como não poderia deixar de ser, muitas reações de repulsa produziu A Filosofia da Composição sobre os guardiões do mistério inefável da criação. Poetas e artistas, no entanto, encontraram nessa filosofia do compor a mais perfeita fenomenologia da criação como exercício lúcido, atento e vigilante que, longe de esterilizar o processo criador, ao contrário, alimenta a sensibilidade com a seiva da inteligência.
Mal poderia prever E. A. Poe, no entanto, que sua conjugação dialética da crítica e criação viria a se constituir naquilo que deu corpo e envergadura a todo o fazer poético da modernidade, este que se erigiu sob o signo da poesia como ser-sensível-autopensante: imagem valeriana da Serpente a morder sua própria cauda.
SP, 13 de outubro de 1985.
Lucia Santaella
in O Corvo, Ed. Expressão, pág. 7-9, 1986.
(Texto gentilmente cedido
pela autora para este site)
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