Leminskino (um filme para ser lido)
por Sylvio Back
Cineasta de "Aleluia Gretchen" escreve um poema-roteiro sobre o escritor de "Catatau"
Sequência 0
Interior/Noite. Sala de estar-biblioteca numa casa em
Curitiba. Anos 80.
Cena alfa:
De cócoras sobre roto tatame, um homem de seus 40
anos, vestido de judoca (quimono ornamentado com
haicais de Issa Bashô Alice) medita olhos de peixe fisgado,
tez e nez de "polonais" mestiço, juba africana.
Numa das mãos, copo de cerveja sem espuma; noutra,
caixa de fósforos com mirra enfiada no miolo do
tampo; de uma das extremidades às vezes ele aspira
vapor como se de um narguilé rimbaudiano fora.
Articuladas à sua concentração outras figuras
sorrateiramente intrometem-se na ação tentando
protagonizá-la.
No chão espelhado de tagarelas tatuagens de antanho,
ideogramas à Eisenstein esganando o "diktat",
iluminuras cristãs soturnas como sói dedo em risco.
Do alto tenda de sangue pólvora suor essência de cona,
cerca viva de esperma e relva da juventude se movem
brilhosos répteis de pesadelo.
Atados a prego máscaras de poetas zombeteiros
impacientes com os deuses, epítetos enclausurados no
mote, mulheres pudendas e os inimigos idos e vindos
além dos penetras de praxe augurando agouro.
No ambiente turbante "zombies" mal disfarçados e
demos largados.
A fúria dos acordes "zen-haitec" de Ryuichi Sakamoto
corroem a cerimônia-transe do magnífico samurai das
araucárias.
Papiros vasculhados, suspense de fonemas, livros
pirogravados de Mishima, Rosa, Propp, Malone,
Beckett, Petrônio, Fante.
Na cabeceira do rio Liffey da linguagem catatau de
poemas rimagens do inédito hieróglifos e gravetos
semânticos inda sem pai nem mãe.
O rock de Cruz e Sousa: carma áureo.
Trótski Borges Pound Cristo cantos crípticos.
Lennon e as chagas que exorcizam utopias baleadas
pelas costas.
A estrela-menina da terra sem males lê a estrofe
dependurada no ilustre caraíba: uma biblioteca de
Alexandria a salvo da fagueira Curitiba.
Tão rápido quanto as fugas ao léu para redecorar as
narinas e ouvir o vento dos sonhos níveos, ele posta-se
hirsuto no centro da sala azado para o combate invisível
e inviável.
A mais terrena das solidões acode às suas pupilas, mas
finge êxtase mastigando a gelatina das bochechas.
Os lábios singram palavras mudas e amuadas
estridentes.
Suave e felino põe-se movies, la terra trema.
Sobre círculos mínimos, como uma cantárida mutilada,
dá sobrepassos de goleiro, arca os braços do pênalti
sequer há flechas ou alvos.
Há golpes e goles, golfadas e estocadas.
O punho estala: aos poucos maré alta de músculos veias
nervos em ponto de bala, nosso herói começa a levitar,
os artelhos sujos da noite balouçam, mortalmente,
nonados.
O aguerrido "warrior" de súbito aderna, cambaleia, a
carcaça ameaça tombar.
E como que assoprado por algum duende impensado
vê sua vontade aloprar energia centrípeta, incoercível,
incontornável, ininputável.
Galinha sem cabeça, pomba-asteróide.
O bigode-Rasputin perde o prumo não o rumo.
No entanto, tudo é sonrisas.
Maior o redemoinho do corpanzil maior o rumor da
carne e d'alma uma alegria do primevo arreganho fetal.
Fora do "self", prisioneiro de atávica lumière, ele agora
é uma velocíssima e formidável adaga multicolor
multifacética multiprofética.
Existência e tenência uma coisa só.
Urdiduras do verbo e os interstícios do signo.
Infância e maturidade desossadas.
Desejos e o que nem chegou a vingar.
Vícios e versos meros anelos.
Numa fusão lenta misto de véu e céu um bem
temperado feixe holográfico entumesce a tela.
Ectoplasmando recorrentes casulos de angústias medos
dores fictícias, o nosso personagem emite um belo
berro de puro gozo.
FIM
Sylvio Back é cineasta e poeta. Autor de 36 filmes, está finalizando o
seu décimo longa-metragem, "Lost Zweig".
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