técnicos
do sagrado
etnopoesia por Jerome Rothenberg

 

O Cometa

Ekoi

 

 



(a) Um estrangeiro entra numa aldeia. Ele sobe pela rua principal entre duas fileiras de casas (b b) até chegar à Casa Egbo (c).
(d) É um cometa que tem sido visto pelos habitantes.
(e) Propriedade particular espalhada em desordem – indicando confusão.
(f) Uma cadeira diante da casa do chefe.
(g) A cadeira onde foi colocado o corpo do chefe líder. Sua morte foi prevista pelo cometa.
(h h) Dois pretendentes para o cargo de chefe, agora vago. Os habitantes se reuniram na Casa Egbo para se decidir entre os rivais.

(De ‘Technicians of the Sacred’)


Fonte: P. Amaury Talbot, In the Shadow of the Bush (Wm Heineman, London, 1912), pp. 455. Nota: ‘Esta é uma forma de escrita-secreta & linguagem-gestual difundida entre grupos como o Ekoi, sendo ali propriedade de uma sociedade exclusivamente masculina chamada Ngbe (=Leopardo) & dedicada sobretudo à dança prazerosa dos signos secretos e poderes mágicos’. (Rothenberg, TS, 527)

 

 

 

Visões do Peiote

Winnebago 1 tentava beber café só cuspia dormindo via serpentes imensas gritava & levantava erguia a coberta & espiava quem me chamou? quando soprava o vento ouvia um canto gente cuspia alto alto eu não conseguia dormir via coisas acontecendo num país distante fantasmas no lombo de um cavalo bêbados cinco ou seis deles num só cavalo a canção que cantavam era essa “até eu devo morrer, adeus então pra que a pressa, penso eu” depois a cantávamos como uma canção de bêbado muitas vezes 2 olhando o botão vi uma águia de asas abertas em cada pena um sinal olhava pra mim mas eu olhava ao meu redor pensava se ela sumiria daí quando olhei pro outro lado sumiu
Fonte: Paul Radin, The Autobiography of a Winnebago Indian. University of California Publications in American Archeology & Ethnology, volume 16, Number 7, 1920.
Nota: “O uso do peiote entre os Winnebago data da conversão de John Rave – ‘de 1893 a 94, quando eu estava em Oklahoma com comedores de peiote’ – i.e., com os prováveis fundadores (Comanche e Kiowa) da religião. As presentes linhas são de um homem identificado como S.B., que escreveu sua ‘autobiografia’ em Winnebago. [...] A ‘busca da visão’ é um valor indígena persistente, & o uso do peiote data dos tempos da Pré-Conquista”. (Rothenberg)

 

 

 

Palavras Mágicas

(segundo Nalungiaq)
Esquimó
Em tempos ancestrais quando pessoas & animais viviam na terra, uma pessoa podia virar um animal se quisesse e um animal podia virar um ser humano. Às vezes eram pessoas e às vezes animais e não havia diferença. Todos falavam a mesma língua. Naquele tempo as palavras eram mágicas. A mente humana tinha poderes misteriosos. Uma palavra dita ao acaso podia ter conseqüências estranhas. De repente ela ganhava vida e o que as pessoas queriam que acontecesse, acontecia – só o que era preciso era dizer. Como explicar isso? As coisas eram assim.


(De "Shaking the Pumpkin")


Fonte: In Knud Rasmussen, The Netsilik Eskimos, Report of the 5th Thule Expedition, Copenhagen, 1931.
Nota: “A xamateca Nalungiaq definia-se como ‘uma mulher comum’, tendo aprendido o poder das ‘palavras mágicas’ (= poesia) com um tio, também xamã. O comum era não usar a fala ordinária e sim ‘a linguagem dos xamãs, em que todas as coisas & seres eram chamados por nomes diferentes do que eram conhecidos’. A consciência esquimó é notável por sua compreensão do processo poético básico”. (Rothenberg, SP, 405)

 

 

 

Eventos do Cachorro Louco

Crow


1. Aja como um cachorro louco. Use faixas & outras roupas finas, carregue um chocalho & dance pelas ruas cantando canções de cachorro louco depois que todo mundo estiver dormindo.

2. Fale ao contrário: diga o oposto do que você quer dizer & em troca faça os outros dizerem o oposto do que eles querem dizer.

3. Brigue como um maluco por ter corrido até um inimigo & se oferecer pra ser morto. Cave um buraco perto de um inimigo, & quando o inimigo cercá-lo, pule em cima dele & o rechace.

4. Pinte-se de branco, monte um cavalo branco, cubra os olhos dele, e faça-o se jogar numa ribanceira escarpada & pedregosa, até os dois se arrebentarem.




(De ‘Shaking the Pumpkin’)


Fonte: Robie H. Lowie, The Crow Indians, Holt, Rinehart & Winston, 1935.
Nota: “Os eventos lembram atividades dadaístas, digamos, bem como os gestos políticos dos provocadores, malucos, etc., dos anos 60. Mas o fenômeno era também um aspecto da vida guerreira dos índios da planícies bastante enraizado, semelhante aos padrões tradicionais dos japoneses & outros”. (Rothenberg, SP, pág 195)

 

 

 

Depoimento de Orpingalik,
xamã Esquimó



Canções são pensamentos, cantados com a respiração quando as pessoas são movidas por grandes forças & quando a fala ordinária não é mais suficiente. O homem é movido como a banquisa de gelo singrando à deriva pela correnteza. Seus pensamentos são dirigidos por uma força que flui quando ele sente alegria, quando ele sente medo, quando ele sente tristeza. Pensamentos podem enxurrá-lo como uma enchente, fazendo sua respiração arfar & seu coração palpitar. Algo como um abatimento no mau tempo o deixará degelado. E vai acontecer da gente, que sempre se achou pequena, se sentir menor ainda. E vamos ter medo de usar as palavras. Mas vai acontecer das palavras que precisamos virem sozinhas. Quando as palavras que queremos usar brotarem de si mesmas – temos uma nova canção.


(De ‘Technicians of the Sacred’)


Fonte: Knud Rasmussen, The Netsilik Eskimos (Copenhagen, 1931), p.321.
Nota: "Orpingalik era um xamã, poeta & caçador da tribo dos esquimós, notável por sua inteligência & por sua sagacidade. A respiração, o hálito, é mais visível de onde ele vem (na linguagem dos xamãs Netsilik uma pessoa viva é ‘alguém que solta fumaça’. Curiosamente, em Netsilik a palavra anerca significa simultaneamente ‘respiração’ e ‘poesia’. A extraordinária definição de poesia de Orpingalik – "Canções são pensamentos cantados com a respiração” – descreve um tipo de composição como o ‘verso projetivo’: a redescoberta de uma poética-da-respiração que marcou uma tendência importante da ‘nova poesia norte-americana’ dos anos 50 em diante”. (Rothenberg, TS, 563)

 

 

 

Três Poemas Percussivos

(Ilhas Trobiand, Nova Guiné)
Introdução sezètu se`zètutu sezezagarasèku selùtutu sagàra sagàra sagàra sagàra sagàra zèku Dança Dugon sezezelùtu sezètutu zelètutu sagarazètutu sagarazètutu zèku zèku zèis selùtu zèku sagarazèis zezezelùtu Dança Wallaby sèzèzèzèsagarazèlu sezelùtu seizelùtu sagarazètu seizelùtu sagarazètu


Fonte: In Ulli Beier, “A Note on the Drum Language of the Trobiand Islands”, Alcheringa, new series, vol I, n.o. I (1975): 108 - 109.
Nota: “Ao contrário dos tambores falantes africanos, o costume trobiand é uma imitação dos ritmos dos tambores pela voz humana. ‘Embora criada como um auxílio de memorização ou didático’, escreve Ulli Beier, ‘a linguagem percussiva tem sua própria beleza pungente, como a poesia em alguma língua arcaica’. E acrescenta: ‘É possível falar toda uma seqüência percussiva, da mesma forma que o povo Iorubá na Nigéria pode batucar todo um recital de poesia’. E Rothenberg: “Os três exemplos estão relacionados com os ritmos percussivos usados para a dança kesawaga: uma cerimônia executada por quatro tambores”. Rothenberg chama a atenção do leitor para o paralelo com a poesia sonora (ou sonorismo) deste século. (TS)


 

 

Traduções do original: Jerome Rothenberg
Traduções do inglês: Rodrigo Garcia Lopes

 

matéria gentilmente cedida para este site
in Medusa nº 5, pág. 12-15, junho-julho, 1999.

 

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