Medusa Gostaria de começar nossa entrevista apontando para o meio em que ela está sendo conduzida: o e-mail. Como você acha que esta Idade Mídia – mas também de guerras étnicas e capitalismo selvagem – está afetando a linguagem da poesia escrita hoje (especialmente nos EUA)? Como você acha que os poetas estão reagindo à chamada globalização?
Jerome Rothenberg O fato de estar conduzindo esta entrevista por e-mail não é mais surpreendente ou ameaçador do que se fosse por telefone, digamos, ou por carta, como no começo do século. Pelo contrário. A primeira coisa que me impressiona sobre nossa situação é que estamos nos comunicando entre a Califórnia e o Paraná – e fazendo isso rapidamente e com o luxo de ser na forma escrita – como estaríamos se fosse de viva voz, embora os custos de uma entrevista detalhada por telefone sejam mais proibitivos. Com um pouco mais de esforço também poderíamos veicular o que estamos fazendo através da internet, sem ter que depender de aprovação ou a intervenção de um editor que pudesse ser hostil ou indiferente ao nosso projeto. Só nesta semana estive em contato com a França, Alemanha, México, Grécia, Iugoslávia e Inglaterra – a maioria via e-mail, outros via fax & telefone. Poderíamos também – através de uma rede ou comunidade da qual fizéssemos parte – nos encontrar em lugares para os quais poetas como nós podem ser transportados além das fronteiras que são feitas para nos manter separados.
É impossível apresentar o trabalho de um modernismo
radical ou inovador sem mapear ao mesmo tempo alguns traços dos velhos mundos, trazidos novamente ao presente & vistos assim como se da primeira vez, para ajudar a nos mostrar onde estamos
O que isso faz é promover uma globalização (não “globalismo”, algo que sempre quis & que não me assusta). Mas ela também nos isola – em nossa cibervertigem – de problemas que em algumas instâncias citadas por você ainda nos dizem respeito. O problema com a maior parte das tecnologias – incluindo a poesia em sua finalidade “low-tech” – é que elas têm duas faces. Como muitos outros meios (ou mídias), elas podem ser usadas de formas boas e más – até de formas malignas, ou o que costumávamos pensar,
à la Hannah Arendt, como a máxima “banalidade do mal”. Se a mágica dos velhos bruxos & xamãs podia ser usada para propósitos bons (magia branca) ou maus (magia negra), o mesmo vale pra tudo aquilo que classificamos como “mídia”.
Assim, a internet nos fascina enquanto poetas pela súbita facilidade de publicação e disseminação através de uma rede mais vasta do que outros meios nos propiciam como indivíduos. Por outro lado, a rede também age como um meio para um mercantilismo igualmente expansivo e, o que é ainda mais lamentável, para as formas mais horríveis de ódio racial e sexual (entre outras), com conseqüências ainda por serem determinadas. Ou talvez haja um equilíbrio: o que queremos, de um lado, e uma contínua banalização da palavra & do pensamento, do outro. Também reconheço – como todos nós – a intromissão cada vez maior de uma monocultura, e que creio ser mais percebida fora dos EUA, devido à crescente hegemonia do inglês e a americanização da mídia popular. Voltando, no entanto, para meu próprio despertar após a Segunda Guerra: lembro-me de estar tomado por uma sensação de desconforto – um sentimento sobre uma linguagem que havia sido corrompida pela propaganda e pelo excesso de slogans inconse-qüentes – e mais insidiosamente por estar mais onipresente no tempo que se seguiu, pelas vacuidades da propaganda (embora bem-feita) & o papel cada vez mais banalizante do jornalismo-como-entretenimento. Isso fez alguns de nós olhar para a poesia como a “outra” linguagem – uma linguagem que questiona a linguagem, que questiona a banalidade da linguagem como escora para a banalidade do mal. As novas tecnologias nos dão uma abertura muito maior, parecendo deixar esta alteridade aparecer. Isso é ainda uma linguagem e um processo de pensar o “outro” que eu prefiro, porque traz um conjunto de poéticas em minha mente. Mas tenho que admitir que o empurrão maior está vindo da direção oposta, ou seja, da banalidade do mal.
Medusa A conexão entre linguagem & realidade tem sido um grande foco de seu trabalho poético. Parece que percorremos um longo caminho desde as “Portas da Percepção” de Blake até as “Windows” de Bill Gates.
Rothenberg Para mim, a questão da “linguagem & realidade” tem relevância, pois há tempos estou engajado num projeto envolvendo uma interação de formas de linguagem & representação muito novas & muito antigas. Acho que um dos principais fascínios da poesia – mesmo (ou talvez) especialmente para muitos de nossos poetas mais “experimentais” – tem sido o sentido de engajamento num processo – um modo de pensar & dizer – que até recentemente era universal, tanto em termos de tempo quanto de espaço. O fator tempo é uma medida da antigüidade da poesia e a emergência de uma “nova” poesia, nos últimos cem ou duzentos anos, tem sido quase sempre acompanhada por declarações de recuperação ou redescoberta no cerne de cada nova intenção. Isso fica bem claro na poesia norte-americana, onde alguém como Ezra Pound, a quem tomamos como radical – estruturalmente radical a partir dos
Cantos –, insiste em recuar o quadro temporal & expandi-lo horizontal ou culturalmente para uma série de momentos inaugurais: primeiro os ritmos anglo-saxões fundidos com viagens homéricas e xamânicas do “Canto 1”; daí em seus outros escritos posteriores como os
Cantares chineses, a lenda africana d’
O Alaúde de Gassire, como reportada por Frobenius, além de poemas eróticos do Egito Antigo e a recuperação de poetas provençais e romanos negligenciados. É isso que coloca Pound em conflito com Marinetti & os futuristas: há uma “história da tribo”, como Pound chamou, mas curiosamente – naquela mente fascista – era a história de uma tribo muito maior do que nações & raças privilegiadas nos levaram a crer.
O mesmo espírito de novidade & transformação em relação ao passado & ao presente (o que eu costumava chamar de “uma contínua tentativa de reinterpretar o passado poético do ponto de vista do presente”) instigou o trabalho de muitos de nós na América do pós-guerra – Charles Olson, Robert Duncan, Gary Snyder, Robert Kelly, Anne Waldman, Armand Schwerner, entre os maiores, na minha perspectiva. E havia outros também, fora dos EUA: Tristan Tzara (com seu projeto de coletânea de poemas da África e do Pacífico Sul), os surrealistas (que montaram um
bureau de pesquisa – sob a gerência de Artaud! – voltada para esta direção), os poetas franceses da Negritude e seus desdobramentos no “novo mundo” hispânico. Os futuristas russos são possivelmente exemplares aqui. Diferente dos italianos com os quais eles dividem o nome, os russos escavam entusiasticamente suas próprias pré-histórias -- o passado sendo para eles uma parte necessária de todo aquele futuro. Malevich era um tipo de artista popular antes de virar um suprematista, e seus livros artesanais, bastante toscos e bonitos, bebiam na fonte de uma forma ancestral, de baixo custo e popular de se fazer livros. E Khlebnikov e Kruchonykh são uma mistura de ficção-científica costurada com zaum numa espécie de glossolalia futurista. Lembre-se que Khlebnikov fazia a conexão entre o xamanismo e os cantos religiosos, com palavras-sons indecifráveis.
Medusa Nos últimos anos apareceram nos EUA várias antologias de poesia norte-americana contemporânea:
From the Other Side of the Century, de Douglas Messerli,
Postmodern Poetry: A Norton Anthology, de Paul Hoover,
American Poetry Since 1950: Innovators and Outsiders, de Eliot Weinberger, e a sua, em parceria com Pierre Joris,
Poems for the Millenium. Por que essa urgência em antologiar neste fim-de-século?
Rothenberg Há essa “urgência em antologiar”, como você coloca, e há também a minha urgência em antologiar, o que vem acontecendo há algum tempo (desde os anos 60, pra ser exato). Pode-se facilmente dizer que o fim de um século – neste caso um fim de milênio também – é sempre uma ocasião retrospectiva. Porém, as três antologias que você menciona em particular representam também a (re)aparição de um certo tipo de trabalho depois de um período no qual ele esteve grosseiramente mal-representado. Nos anos 60 e 70 houve um florescimento de coletâneas experimentais e de vanguarda – o que eu chamei em outra parte de antologias-manifesto. As memoráveis, no meu modo de ver, foram
The New American Poetry, de Donald Allen,
An Anthology of Concrete Poetry, de Emmett Williams, e a antologia da Fluxus (editada por LaMonte Young, com assessoria de Jackson Mac Low).
O sucesso da antologia de Allen, em particular, encorajou as grandes editoras a se abrirem para novas poéticas – no meu caso a Doubleday e a Random House, que publicaram
Technicians of the Sacred, Shaking the Pumpkin, A Big Jewish Book e
America A Prophecy, todos trabalhos feitos no período de uma década. Claro que estes trabalhos tinham um alcance fora do presente, mas os passados que eles representavam eram fortemente coloridos por um sentido de transformações radicais de poesia & poética, e eles foram apresentados lado a lado com trabalhos contemporâneos bastante tardios e experimentais. E nos anos 80, mesmo com as grandes editoras se negando a publicar essas antologias-manifesto, os chamados “poetas da linguagem” foram capazes de usar a antologia como um meio de manifestar & mostrar seus novos pontos de partida. Nos anos 90, contra um pano de fundo de cuidadosas antologias didáticas – uma reação
underground se constituiu –, um grupo relativamente pequeno de escritores e leitores buscava obras que representassem & atualizassem as mudanças desde 1960. Embora a poesia “média” se firmasse, a tomada do poder esteve longe de ser completa. Muitos de nós, que vínhamos atuando em alguma forma de espaço público, achamo-nos capazes de agir: Douglas Messerli, através de sua editora Sun & Moon; Paul Hoover, convencendo a ultratradicional editora Norton da necessidade de uma grande antologia “pós-moderna”, e Pierre Joris e eu, através de um acordo com uma grande editora universitária.
Medusa Como surgiu a idéia da antologia
Poems for the Millenium?
Rothenberg Tanto Pierre Joris quanto eu vivíamos com a sensação de que o que nós mais valorizávamos na poesia de nosso tempo – o que compartilhamos com muitos outros – havia sido quase sistematicamente omitido ou marginalizado das antologias e histórias literárias então correntes. Isso era verdade não só em relação ao presente imediato mas também ao passado mais recente. Resumindo: não só ao “pós”-modernismo mas ao modernismo que o precedeu (os grandes movimentos
Se a mágica dos velhos bruxos & xamãs podia ser usada para propósitos bons (magia branca) ou maus (magia negra) o mesmo vale pra tudo aquilo que classificamos como ‘mídia’
da primeira metade do século XX, por exemplo). Enquanto apreciávamos o trabalho de poetas individuais e isolados, queríamos trazer os grandes movimentos de volta à cena: Dadá, Surrealismo, Futurismo, a Negritude africana e caribenha, o trabalho dos “objetivistas” norte-americanos. Com essas ausências, faltava também um sentido dos poetas como configuradores de suas próprias poéticas. A mistura de poesia e poética foi algo que trabalhamos para resgatar, bem como o sentido da poesia como centro de um programa, um elenco de proposições operando na esfera pública. E, escrevendo nos Estados Unidos –, agora, na virada do século e do milênio – achamos também vital insistir (novamente) nas dimensões globais da poesia moderna e “pós”-moderna – depois de algumas décadas de insistência na centralidade e hegemonia de um suposto “momento americano”. Ao fazer isso, incorporamos a distinção entre “modernismo” & “pós-modernismo” no subtítulo de nosso livro.
Medusa Numa entrevista recente dada à revista brasileira
Cult, o poeta Haroldo de Campos, que aliás você inclui no segundo volume de
Millenium, disse: “Eu não aceito o termo pós-moderno. Acho que nós ainda estamos na modernidade, a não ser que se entenda que Mallarmé já é pós-moderno em relação a Baudelaire”. Você acredita num pós-modernismo em poesia e poética? Como você situa sua antologia no contexto deste debate?
Rothenberg Agora há a vantagem cronológica de se distinguir uma metade de século da outra. Na antologia deixamos claro que víamos uma continuidade entre as duas metades – às vezes oposicional, às vezes evolutiva. Meu próprio encontro com o pós-modernismo – agora deixo as aspas de lado – se deu na metade dos anos 70, através de uma entrevista com o crítico e editor William Spanos. Naquele ponto, certamente, eu me sentia como integrante de uma revolução poética contínua – “pós-nada”, como
Escrevendo nos EUA – agora, na virada do século
e do milênio –, achamos também vital insistir (novamente)
nas dimensões globais da poesia moderna e pós-moderna
– depois de algumas décadas de insistência na centralidade
e hegemonia de um presumível e suposto “momento americano”
Jackson Mac Low colocou certa vez – e achava que o termo pós-modernismo era um termo dos críticos e não dos poetas. (Nenhum dos poetas que conheci naquele tempo se autodenominava assim.) Por isso, insisti – e continuaria a insistir – que pós-modernismo era um termo maldefinido por depender de uma definição prévia de modernismo, e que tal definição ainda estava por ser encontrada.
Mas, com o passar dos anos – à medida em que o pós-modernismo tornou-se parte de nosso tempo e, embora indefinido, de nosso vocabulário –, fiquei mais propenso a usá-lo como uma extensão particular de uma forma do primeiro modernismo – aquele mais experimental e abertamente revolucionário –, que estava freqüentemente em conflito com a versão institucionalizada às vezes corrente. E vim a encarar modernismo e pós-modernismo como se fossem gêmeos – proximamente relacionados mas prontos, como sempre, para questionar os direitos de nascença do outro. Por isso sempre cito a afirmação de Tristan Tzara nos dias de Dadá: “Você está errado ao pensar que Dadá é uma escola moderna. Ela está mais na natureza de uma quase religião budista de indiferença... Os verdadeiros dadaístas são contra o Dadá”. Isso era pós-modernismo, como eu via, e acho que era isso o que o Haroldo de Campos tinha em mente ao citar Mallarmé & Baudelaire. Só que eu expandiria essa visão em relação a Tzara e Mallarmé à obra de minha própria geração em relação a Tzara, e à de alguma geração posterior em relação à nossa.
Medusa Sua antologia tem um enfoque global e abrangente, com o objetivo de traçar a história internacional da poesia de vanguarda nos últimos cem anos. Que pensamentos passam por sua cabeça quando você olha esta antologia ao lado de antologias “etnopoéticas” como
Technicians of the Sacred ou Shaking the Pumpkin? Que paralelos mais imediatos vêm à sua mente entre procedimentos poéticos ditos “primitivos” e contemporâneos?
Rothenberg O que não disse ainda sobre
Poems for the Millenium é que, enquanto a antologia retraça a história internacional da poesia desde o século 19, nós vemos boa parte da poesia reunida em
Technicians of the Sacred e Shaking the Pumpkin como
parte desta história. Para começar, nos dois volumes de
Millenium incluímos seções com trabalhos etnopoéticos, levando-se em conta que aqueles trabalhos vieram à luz ao mesmo tempo que o modernismo experimental – em particular aqueles trabalhos reunidos na seção de poesia oral do segundo volume (Maria Sabina, Robert Johnson, Tom Waits, Dizzy Gillespie, Eduardo Calderón, Miss Queenie, entre outros) – e considerando que eles têm sido nossos contemporâneos neste século que termina. (Outros, claro, são de um passado que é mesmo passado.) “É impossível”, dizemos em
Millenium, “apresentar o trabalho de um modernismo radical ou inovador sem mapear ao mesmo tempo alguns traços dos velhos mundos, trazidos novamente ao presente & vistos assim como se da primeira vez, para ajudar a nos mostrar onde estamos.”
No prefácio de
Technicians – a primeira das grandes antologias e a que me arremessou na etnopoética – eu relaciono um número de paralelos entre (como você coloca) “procedimentos poéticos primitivos & contemporâneos”. O que aparece mais claramente é a relação da poesia oral tradicional com a moderna reinvenção da poesia – tanto cantada quanto falada – como uma arte vocal & performática. A “nova poesia norte-americana” de algumas décadas – abastecida com as energias de Olson & Ginsberg & outros – enfatizava o papel da voz & da respiração enquanto a base física e corporal da composição e enquanto um ato liberador e espiritual. A contraparte “escura” disso dá no que um poeta-companheiro meu, Clayton Eshleman, chama de “realismo grotesco”, ou de “grotesco americano”: “Um mergulho no baixo corpo; não no corpo do indivíduo, no ‘ego burguês’, mas no corpo de tudo: um excesso de decadência, fertilidade, nascimento, crescimento, morte” (conforme interpretado por Eliot Weinberger em
Poems for the Millenium). Deste ponto de vista fazemos conexões entre Rabelais & Sade (entre os primeiros europeus), os “trapaceiros” primais & palhaços sagrados ou – seguindo a dica de nossos predecessores surrealistas – nos sonhos & visões que são nosso patrimônio enquanto seres humanos. E com isso também conectamos a preocupação com a arte determinada-ao-acaso (ou indeterminada/determinada) – como o
I Ching chinês e várias formas africanas de adivinhação – com a poesia e a arte de Jackson Mac Low e John Cage – vindo ao foco onde Cage, definindo “indeterminância”, declara:
Se houvesse uma parte da vida escura o bastante para afastá-la da luz da arte, eu queria estar nessa escuridão, tateando às cegas, se necessário, mas vivo...
Em tudo isso vejo um questionamento de deus & do mundo – crucial para o nosso trabalho como o compreendo e necessário para qualquer aceitação final (ou rejeição) de um mundo e de um deus dedicado à morte e ao sofrimento. E acho que é neste ponto que o “primal” e o “contemporâneo” se tocam. Como nas palavras de um velho canto dos índios Crow, “endereçado” – nas palavras de Robert Creeley – “ao vazio”:
o que queremos é real
o que queremos é real
não nos engane |
Medusa Você viveu numa reserva indígena nos anos 70, dedicando-se a traduções experimentais de poesia dos índios Sêneca. Como foi essa experiência? O que você aprendeu com esse contato?
Rothenberg Ter vivido onde vivi foi algo que aconteceu sem qualquer aviso prévio. Eu fui levado pela poesia – para mim uma outra linguagem em constante processo de ser criada & re-criada – a fim de procurá-la em suas diversas manifestações. A primeira busca – como ocorreu com muitos de meus contemporâneos – se deu através dos livros e de outras formas de transcrição que já estavam lá. Eu ansiava por traduções e queria conhecer a poesia em todas as suas linguagens & tempos & lugares. Este é o impulso atrás de
Technicians: encontrei semelhanças em todo tipo de poesia que conheci – sobretudo visionária e experimental – e encontrei também um elenco de poesias que nunca soube que existiam. Fiquei tão atônito por ter encontrado poesia em lugares e culturas onde menos se esperava que ela existisse que comecei a vê-la em toda parte entre os povos tribais e os chamados “primitivos”.
Eu já estava nessa busca quando me correspondi e então conheci Gary Snyder. Através de Snyder fui levado a Stanley Diamond: um poeta e antropólogo que possui uma visão radical e unificada de quais são as energias poéticas & intelectuais atrás do que chamamos de “primitivo”.
O fator tempo é uma medida da antigüidade da poesia & a emergência de uma “nova” poesia, nos últimos cem ou duzentos anos, tem sido quase sempre acompanhada por declarações de recuperação ou “re”descoberta no coração de cada nova intenção
E foi Diamond quem me mandou para a reserva dos índios Sêneca – uma tribo ou nação iroquesa no canto oeste do estado de Nova York – para encontrar a mim mesmo, como Charles Olson sempre dizia, participando da história como um ato de “ver por si mesmo”. Fomos para a reserva no fim de 1967 e algumas semanas depois retornamos para as cerimônias de inverno – eventos que reuni na versão final de
Technicians. Foi um momento em minha vida que nunca previ nem planejei, mas com conseqüências que ultrapassam uma década ou mais.
Shaking the Pumpkin nasceu durante as freqüentes visitas à reserva, e as partes mais experimentais foram feitas em colaboração com cancionistas tradicionais como Richard Johnny John e Avery Jimerson. Também durante o tempo em que morei lá – de 1972 a 1974 – terminei meu livro de poemas
Poland/1931 e comecei
A Seneca Journal, que precisou de um distanciamento maior para ser concluído. Participei de rituais de canto sêneca secular com a Sociedade de Cantores, o que levou meu sentido e experiência de performance a uma área totalmente nova.
Eu fiquei tocado, encantado mesmo, com os rituais aos quais fui admitido, embora ficasse bem claro que eu não era de forma alguma admitido. Os rituais de máscaras do inverno ainda estão vívidos em minha mente, e a Dança Negra – com suas mulheres cantoras/dançarinas em escuridão quase completa (portanto invisíveis) – é algo que ainda não encontrei páreo em lugar nenhum. Com isso, houve uma entrada, embora tímida, num mundo que eu não conhecia anteriormente. Muitas pessoas (a maioria já falecida) me mostraram como o trabalho que fazemos pode moldar e até mudar nossas vidas e mentes. Tudo isso – não só as cerimônias, mas a vivência do dia-a-dia da tribo – me deu coragem para embasar meu trabalho no lado vivo daquele
continuum entre arte & vida. Essa experiência foi naturalmente um grande impulso para livros como T
echnicians e Shaking – a idéia de que os lances que fazemos, pensando serem de uma perspectiva de vanguarda, já tiveram suas contrapartes nas culturas de todos os lugares. Para mim, isso queria dizer que podíamos pensar nosso trabalho – mesmo em seu lado mais ultrajante e inovador – como um ato de recuperação – uma reivindicação de nossos direitos enquanto poetas. De uma vida de poesia na qual todos pudéssemos compartilhar. Se os poetas surrealistas podiam adotar como emblema as palavras de Lautréamont – de que a poesia era feita por todos, não por um – muito mais ainda era possível explorar em nosso próprio tempo. Eu diria que isso é algo que ainda pode ser aprendido hoje, mais os inúmeros modos de pensar e falar que as velhas culturas conheciam e praticavam: uma riqueza de meios que ainda buscamos em suas fontes. Para a minha geração e muitos dos poetas presentes em
Millenium, essa tem sido uma proposição necessária. Mas houve um tempo também em que senti isso escapar, substituído pela idéia de que a poesia só poderia existir à margem. Inerentemente realista a uma perspectiva contemporânea, isso nega, no entanto, que, ao fazer o que estamos fazendo, estamos nos conectando com a grande corrente poética – para inserir uma poesia real no centro de nossas vidas.
Medusa No Brasil, é comum ouvir afirmações sobre a impossibilidade de uma vanguarda hoje, ao mesmo tempo em que se fala de uma suposta pobreza ou carência da produção poética contemporânea. Acho que
Millenium traz uma posição mais positiva, enfatizando as “revoluções da palavra” ainda possíveis, e não seu fim. Pensando especificamente nas tradições experimentais globais reunidas na antologia, você acha que movimentos po(li)éticos ainda são possíveis e desejáveis hoje? E se eles existem, onde estariam acontecendo?
Rothenberg Estou convicto de que aquelas “revoluções” são inerentes à poesia como a temos feito e continuarão a sê-lo num futuro previsível – pelo menos enquanto idéias de liberdade & transformação continuarem a fazer parte de nosso ponto de vista sobre tudo. Digo isso sem certeza alguma, pois revoluções são uma área na qual a autoridade – a sabedoria ou a vontade de realizá-las – é uma coisa para os mais jovens. Revolução (se esta palavra ainda tem algum valor) é algo mais que uma mudança de estilo ou moda. Então, quando você joga com as palavras e surge com uma palavra-valise como “po(li)ética”, você está batendo na característica dual (poética e política) do que um dia foi a vanguarda e, certamente, a vanguarda da arte e da poesia que se formaram em movimentos. Para os poetas dos primeiros dias do modernismo experimental – futuristas & surrealistas & dadaístas – a ambição era transformar a sociedade & a consciência ao mesmo tempo. Só quando a transformação social foi separada da transformação poética (sob as pressões do comunismo, pela esquerda, e do fascismo, pela direita) é que o projeto da vanguarda foi posto em xeque.
No período do pós-guerra, os poetas de
Tanto Pierre Joris quanto eu vivíamos com a sensação de que o que nós mais valorizávamos na poesia de nosso tempo – o que compartilhamos com muitos outros – havia sido quase sistematicamente omitido ou marginalizado das antologias e histórias literárias então correntes
vanguarda não colocariam a poesia tão rapidamente “a serviço da revolução”, como queriam os surrealistas. O tom geral, nas palavras do poeta Christian Dotremont, do movimento Cobra, era o de ser contra “todos os ismos, contra tudo que implicasse um sistema”. Para muitos isto significava uma política contra uma política, mas com uma inclinação para a esquerda e mantendo, sobretudo, uma liberdade de ocasião – onde e quando agir. E as ocasiões incluíam uma ampla oposição à guerra & às formas ressurgentes de nacionalismo e racismo, bem como um redespertar do sentido do poeta como um porta-voz para pessoas & espécies que estavam ameaçadas.
O resultado, na altura dos anos 60, foi a aparição de uma nova “dialética da liberação”, política e pessoal, marcada por um sentido de resistência, de ruptura (em palavra & ato, mente & corpo), enquanto retinha uma concepção mais-que-formalista do poema como veículo-de-transformação. Como escreveu Allen Ginsberg, extraindo de uma fonte mais antiga: “Quando o modo da música muda, os muros da cidade tremem”. E como dizem os “poetas do pós-guerra” japoneses: “Trazer a totalidade de volta à poesia”. Em todo caso, era onde eu encontrava poesia naqueles dias do pós-guerra e da Guerra Fria. Mesmo num movimento como, digamos, o dos “poetas da linguagem” norte-americanos – a ênfase caindo naquela palavra-chave chamada “linguagem” – os temas fundamentais continuam sendo políticos & existenciais.
A questão das revoluções da palavra e de como hoje elas poderiam existir me leva de volta à sua primeira pergunta: o futuro da poesia na era do computador. Eu insistiria – mas com limitações postas sobre essa urgência – que o globalismo da internet abre a possibilidade de uma vanguarda mundial. Mas as limitações, dado o domínio do inglês e outras línguas hegemônicas, envolvem a ameaça a particularidades culturais e regionais. Contra isso, a internet talvez ofereça uma nova arena para modos visuais, performáticos e interativos, movendo-se (às vezes, pelo menos) em múltiplas direções culturais. O número de sites e home pages na rede é de fato tão imenso, que ao observar o trabalho experimental já engatilhado – a facilidade técnica em sua construção – fica-se com a sensação de um futurismo que chegou a seu futuro.
SÉCULO VINTE ILIMITADO
Jerome Rothenberg
ao acabar a corda do século vinte
o dezenove re-
começa
é como se nada tivesse acontecido
embora os que o viveram pensassem
que tudo estivesse acontecendo
o bastante pra dar nome a um mundo & um tempo
seguro em sua mão
ilimitado última ilusão
como a perfeita máscara da morte
|
Rodrigo Garcia Lopes (Londrina/PR, 1965) é autor do livro de entrevistas com artistas e escritores norte-americanos Vozes & visões: panorama da arte e cultura norte-americanas hoje (SP, Iluminuras, 1996). É autor dos livros de poesia Solarium (SP, Iluminuras,1994) e Visibilia (RJ, Sette Letras, 1997) e Polivox (RJ, Azougue, 2001). Traduziu Sylvia Plath: poemas, Iluminuras – gravuras coloridas, de Arthur Rimbaud (ambos pela Iluminuras, em 1991 e 1994) e Mindscapes: Poemas de Laura Riding (SP, Iluminuras, 2001).
matéria gentilmente cedida para este site
in Medusa nº 5, pág.
6-11, junho-julho, 1999.