Qualigrafeira
(sobre Catatau de Paulo Leminski)*

Tarso M. de Melo


A meta em cena...

"...um rigor delirante ou um delírio rigoroso..."

Entre seus 24 e 31 anos, o poeta curitibano Paulo Leminski dedicou-se a dar corpo ao que, depois, defenderia como a única idéia de sua vida: "uma vida é curta para mais de uma idéia". Esta – René Descartes no Brasil – veio em forma de conto, que não a comportou. Depois, o definitivo Catatau, 213 páginas ininterruptas. Na capa, sob o título em vermelho, cenas de luta registradas por um escravo anônimo, na sala de uma tumba no Egito, 2000 a.C. Atrás do livro, o nome do autor, sobre o registro de uma dupla sepultura de Homo sapiens do tipo negróide. Ligando as duas capas – imaginadas por Leminski, executadas por Miran (?) – uma lombada branca e em branco. O volume ainda apresenta outras duas imagens, nas últimas páginas: um famoso retrato de René Descartes (o mesmo que, numa versão pop art, é capa da segunda edição) e uma "foto" assim legendada: "Vrijburg, a Recife dos holandeses (séc. XVII)". Poema? Prosa poética? Romance? Nada disso. O que Leminski buscava era a "fusão destas coisas todas, ou, na melhor das hipóteses, uma superação dessas categorias como poesia e prosa".

Quase quinze anos após o lançamento, quando organizou a segunda edição do Catatau, Leminski deu a dica para aqueles que insistissem em classificar a obra, colocando sob o título, a advertência um romance-idéia. É por estas e outras que o livro carrega tarjas como "incompreensível", "ilegível", etc. Sentenças injustas, mas que parecem elogios calorosos, comparadas às duas colunas da revista Veja, sob o título Porre verbal, onde o resenhista se dedica a repelir um autor, cujo primeiro livro, diga-se de passagem, contava apenas quarenta dias de vida, ou seja, antes mesmo que alguém pudesse elogiar. De minha parte, movido pela mesma vontade desse ilustre resenhista – a de ter escrito o Catatau, é claro – serei mais simpático.

Partindo das várias afirmações, conclusões, declarações, defesas, pistas, pegadas e tudo o mais que encontrei em depoimentos e entrevistas de Leminski, tento explanar algumas das possíveis leituras do Catatau. Para tanto, favoreci-me imensamente de Descordenadas artesianas e Quinze pontos nos iis, textos do próprio autor, que acompanham a segunda edição, onde trata do histórico e da estrutura do livro. A certos textos, alguns deles acolhidos também pela seção Alguma fortuna crítica, da segunda edição, esta minha análise sempre deverá muito, bem como a outros posteriores que, acredito, Leminski não hesitaria em acolher. Destes textos, traçarei aqui um rápido perfil:

 

Fala da importância do Catatau para a cultura nacional, como "divisor de águas", "clássico da língua portuguesa", reconhecendo o trabalho de linguagem leminskiano ao lado de Guimarães Rosa, Ezra Pound, James Joyce, Hilda Hilst, etc, mostrando muita intimidade com a idéia e com o texto, o que se percebe em pérolas de entendimento como: "Não há o que contar. Tudo acontece no nível da linguagem."

Cuidando das bases históricas, explica o período em que o livro se ambienta, para depois buscar parentescos literários, sendo o primeiro a mostrar mais fundamentadas essas relações, e a lembrar da influência do estilo ficcional de Jorge Luís Borges. Através da historiografia, este ensaio esclarece os motivos que costuram o livro, sendo bastante relevante o seu pioneirismo na análise sistemática do Catatau.

Uma visão do livro com o foco no uso de provérbios, analisando a importância do jogo com estas frases populares para sua estrutura. Releva os choques entre a intuição e a filosofia, para justificar o afastamento do Catatau do plano puramente literário, por questionar as conclusões de toda uma tradição filosófica ocidental, com excertos da sabedoria popular.

Haroldo de Campos

Este texto, após breves pinceladas nos assuntos já tratados pelos anteriores, traz a inovação de relacionar o livro de Leminski ao Viva o povo brasileiro de João Ubaldo Ribeiro, defendendo esse vínculo por encontrar em ambos o tema da antropofagia, sendo devorada, no primeiro, a lógica ocidental e, no segundo, a História do Brasil.

Propondo a leitura do Catatau como "intrincada tessitura de sentidos que entrelaça História, Filosofia, Ciência e Literatura", dispensando a análise ligada somente a aspectos verbais, esse ensaio indica como Leminski vai minando seu texto com vários conceitos, pondo em cheque as certezas e verdades absolutas com frases que aparentam ser meramente jocosas.

 

Neste Alguma fortuna crítica, Leminski incluiu ainda algumas outras repercussões do seu livro, referências e textos que acima não mencionei, por não terem tratado de nada muito diferente daqueles, pioneiros em suas análises. Entre estas referências, principal destaque merecem o uso do Catatau como personagem de Larva, romance de filiação joyceana do espanhol Julian Rios, e a homenagem prestada por Caetano Veloso na canção Outras palavras.

Na tentativa de clarear um pouco esta floresta chamada Catatau, revelando e fundindo tudo, como atalho para minhas opiniões, anteponho ao estudo breves observações, informando sobre histórico, título, dedicatórias, epígrafes, etc., pois para a completa satisfação com a leitura deste rigor delirante/ delírio rigoroso de Paulo Leminski, toda informação será válida. Esta na hora de dar à onça de beber...

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1.1 Aconteceu-lhe...

Em 1966, Paulo Leminski lecionava história e redação em cursos pré-vestibulares. Durante uma aula sobre as Invasões Holandesas no nordeste brasileiro, ao explicar sobre a vinda de cientistas, cartógrafos, etc., nas tropas que estabeleceriam a Companhia das Índias Ocidentais, lembrou-se que entre os ilustres que cercavam o Príncipe Maurício de Nassau, estava o fidalgo René Descartes. Subitamente, a idéia de sua vida: se este francês, representante do pensamento analítico ocidental, aportasse aqui por estas terras ensolaradas? Leminski interrompeu a aula para "anoitar" a idéia.

Um fato engraçado para ilustrar o que passou pela cabeça de Leminski: conta-se que em Ouro Preto, nos bailes da realeza, aos moldes da aristocracia francesa, usavam-se aquelas cabeleiras postiças, as perruque, cuja goma utilizada para dar suporte, não se entrosava muito bem com o ardente sol de nossas Minas Gerais. Ou seja, aquela cola projetada para sustentar as perucas, respeitando as poucas exigências do clima da Europa, aqui derretia e escorria pelos tão maquiados rostos daqueles que, só por isto, inconsoláveis e taxativos, diziam que a "civilização", por estas terras, seria inviável. Algo me diz que Leminski conhecia essa história, que oportunamente relatou-me a atenciosa Sylvia Tamie Anan.

Esta hipótese virou a "noveleta/nuvoleta" Descartes com lentes, que teve vida curta, para nossa sorte. Inscrevendo-a num concurso de contos, Leminski ganhou mas não levou, o que soube por carta do crítico Fausto Cunha, quase vinte anos depois. Cunha, um dos cinco juizes do I Concurso de Contos do Paraná em 1968, conta que se esforçou para reconhecer Leminski como um dos cinco agraciados, mas outro juiz, Leo Gilson Ribeiro, estava internado incomunicável naqueles dias, mandando seu voto por telegrama, onde não colocava o título do conto escolhido, e ao invés de "Kung" (pseudônimo de Leminski), escreveu "Kurt", que também existia entre os concorrentes. Esta falha é a mãe do Catatau, que teve entre seus primeiros entusiastas o próprio Leo Gilson Ribeiro.

Cabe aqui uma rápida análise – tecida com suposições – das metamorfoses que levaram o embrião Descartes com lentes (a "fase-conto" do texto) a ser o Catatau. Na fase-conto, Leminski usa parágrafos e um discurso mais linear. Já no Catatau, o parágrafo é um só, o que anula sua função. O parágrafo existe para ser uma seção do texto, que traga e resolva em si uma idéia e seu sentido. Criando um parágrafo que é todo o texto, mais de duas centenas de páginas, que envolve tudo o que poderia ser secionado, Leminski despreza a disposição que os parágrafos oferecem ao texto, e mostra – também por este lado – que seu texto traz e resolve apenas uma única IDÉIA e seu SENTIDO.

Ainda falando de Descartes com lentes, pode-se reparar como Leminski "enxuga" radicalmente algumas frases para reutilizá-las no Catatau. Por exemplo, o que era "como é do meu hábito de verdes anos, medito deitado nas primeiras horas da manhã só me fazendo à rua muito tarde, já sol de meio-dia", vira "desde verdes anos, via de regra, medito horizontal manhã cedo, só vindo à luz já sol meiodia". O estilo é outro, muito mais rápido, direto. Na fase-conto não há uma resposta gráfica ao uso das lentes. Depois da palavra telescópio, o texto continua seguindo ‘normalmente’. Enquanto no Catatau, após a palavra luneta, tudo o que está ao alcance da lente vai explodindo em maiúsculas: "do parque do príncipe, a lentes de luneta, CONTEMPLO A CONSIDERAR O CAIS, O MAR, AS NUVENS, OS ENIGMAS E OS PRODÍGIOS DE BRASÍLIA..."

O período dedicado à confecção do seu "Circo de Horrores lingüísticos", na vida de Paulo Leminski, foi marcado pela irrupção de características importantes de sua pessoa e de sua obra. É nesta época, por exemplo, que começa seu relacionamento com a poeta Alice Ruiz, para logo nascer seu filho Miguel Ângelo, morto após dez sofridos anos na vida do casal. É tambem por volta de 1970 que Leminski toma seus primeiros porres, mora em comunidade, aprende a tocar violão para compor, entra em contato com as drogas, etc. São os anos de ditadura no Brasil, quando Leminski vivia de dar aulas, mesmo sem ter concluido nenhum curso universitário, largou "Direito no segundo ano e Letras no primeiro várias vezes". É quando nasce Áurea, segunda filha do casal. Leminski vai para o Rio de Janeiro atrás de oportunidades, consegue algumas revistas, o Pasquim, o Última Hora, etc. Volta para Curitiba, moram apertados, perde seu pai, tem problemas financeiros, Miguel tem várias crises, brigas com Pedro, seu único irmão, etc.

As dificuldades atrasam o Catatau, enquanto Leminski, profundamente ligado aos ideários da Poesia Concreta e da Tropicália, se especializa em História do Brasil no período de dominação holandesa, estuda o português seiscentista, a língua dos invasores, a de seus ancestrais (a mesma de Arciszewski, o polonês que é esperado no livro) e um pouco das línguas dos vários colonos, além de relembrar o latim, dos seus tempos de seminarista. Todo esse conhecimento, essa exatidão, para poder contextualizar nas bases de nossa História, uma "aventura textual" onde dissolveria e liquidificaria todas as categorias convencionais de literatura.

As coisas um pouco melhores, Leminski termina seu sonho, um livro que carregou por oito anos, pesando cada palavra e reescrevendo cada página. Sentindo-se mais à vontade, vai trabalhar com publicidade e negocia a edição com o "pessoal da agência". Consegue, e os problemas agora são outros, superados por Alice Ruiz: "Ninguém consegue montar nem pestapar o Catatau porque não tem parágrafos e as palavras não são velhas conhecidas. Eu tomo lições de pestape, diagramação e assumo esse trabalho". Deu tudo certo. É no dia 19 de dezembro de 1975, a partir das 19 horas, com coquetel na livraria Ghignone, rua XV, 423, Curitiba, Paraná, que a Grafipar Gráfica Editora Ltda. começa a distribuir os cinco mil exemplares da primeira edição do Catatau.

 

1.2 ...por vários rumos...

A palavra catatau virou título do livro, provavelmente, em agosto de 1969, quando Alice Ruiz recebe carta de Leminski, do Rio de Janeiro, comunicando o nome do "romance" que, desde que a conhecia, carregava embaixo do braço. Esta palavra foi escolhida pela variedade de significados que guarda, podendo ser toco-de-amarrar-jegue no interior de São Paulo ou pênis no Rio de Janeiro. Catatau, como qualquer dicionário informa, pode ser castigo, pancada, zoada, falatório, todas estas, palavras que agrupam várias acepções. Ainda, uma espada velha, uma espada pequena e curva, catana, uma coisa grande ou volumosa, um tijolo, um anão, um cagabaixinho, fumega, ximbute, ou simplesmente a onomatopéia de queda, ca...ta...tau!

Esta polissemia era tudo que Leminski precisava, um título que espelhasse a inclassificabilidade estilística, sem deixar de comunicar. Como o Catatau, que alguns pensam incomunicável, só porque comunica demais, e ao mesmo tempo.

Sob o título, colocou a advertência "...usque consumatio doloris legendi" – algo como "leitura penosa até a consumação", se não me trai o latim – desde já avisando ao leitor que, aquele modesto volume em suas mãos, não era simples entretenimento. Ainda antes de começar o livro, um lembrete, sob a expressão repugnatio benevolentiae, onde Leminski diz ao leitor que "vire-se" e resiste à bondade de "ministrar clareiras" para seu texto-selva, depois de ter passado quase uma década em edificação.

Esse misto de intolerância e exigência no tratamento com o leitor, simboliza a liberdade que se conferiu o poeta com o livro pronto, a rebeldia de quem estava certo das qualidades de seu produto, e não acreditava na necessidade de guias, mapas, bulas, etc., para ser compreendido, tendo dito até que o escreveu "para profissionais, para especialistas... escritores... críticos... professores de literatura... quartanistas de Letras."

Em entrevistas e depoimentos, Leminski voltou atrás aos poucos, um tanto por paixão pelo projeto Catatau, outro por freqüentes e equívocas críticas que recebia, culminando este recuo com a inclusão, na edição de 1989, de textos que esclareceriam vários propósitos, o que, na verdade, em nada prejudicou a obra, apenas facilitou o acesso do leitor à parte documental, aliviando-o de procurar os "fios da meada" e, assim, atentar mais à linguagem, este o verdadeiro intuito de Paulo Leminski, desde o início do projeto.

Reitero: toda essa conexão, essa cumplicidade, entre tudo que cerca o Catatau, tornou indispensáveis a consideração e a análise de qualquer informação. Mesmo aquelas que pareçam simplesmente floreios, como dedicatórias e epígrafes, que muitos sequer costumam ler. Neste labirinto de enganos deleitáveis tudo significa. É o que Leminski planejou: um livro com perfeição até em seus defeitos, acertos até mesmo em suas arestas, nada para ser relevado. Tudo muito relevante.

 

1.3 Como puderam viver sem isso...

Ter dedicado o livro a seu pai, acredito, não foi paternalismo de Paulo Leminski. Assim dedicando, e agradecendo conjuntamente pelo sangue de Krzysztof Arciszewski, ele estaria dando muitas dicas aos cegos recrutados neste tiroteio.

Acompanhem: o pai de Leminski era filho de colonos poloneses, o primeiro destes a chegar ao Brasil foi Arciszewski, justamente o polaco que é esperado o livro todo, é o europeu que traria de volta a lógica cartesiana, mas chega bêbado – como Descartes já estava – frustrando o filósofo, que esperava esclarecimentos, e não outras dúvidas, vendo nestas alterações de consciência, um emblema de falência da imposição de rigores europeus sob a Linha do Equador, como se previsse as adaptações necessárias para a vida dos europeus aqui, de que seriam frutos, não só Arciszewski, mas, sobretudo, Paulo Leminski o Velho, Paulo Leminski Filho e, é claro, o Catatau.

É pelo Saber, Querer, Ousar e Calar que o livro é também dedicado a Alice Ruiz. Acredito que a obscuridade deste "poema" de Leminski, resida na intimidade dos oito anos, até então, de convivência. Todas estas palavras apontam para vários lados, não entregam nada, não definem, ainda mais encadeadas desta forma, quatro verbos, iniciados em maiúscula, como se elevando-os à arte, ao que aprendiam com o Oriente, sempre tão caro a este casal.

Outros livros de Leminski são dedicados a Alice, poeta, mãe de seus três filhos, vinte anos juntos, escolhendo, reescrevendo, passando a limpo vida e obra. Uma destas dedicatórias, Em direção a Alice, cúmplice nesse crime de lesa-vida chamado poesia, doze anos após o Catatau, diz tudo. Não tem por que explicar. Entenda.

O livro é ainda dedicado a Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, os pivôs teóricos da Poesia Concreta, claro, importante para o texto, e até para a idéia do livro. Quando a fluência do texto parece um pouco mais lógica, Leminski não está cedendo propriamente a Descartes, mas à sua veia cartesiana de poeta tocado pela Poesia Concreta. Quando declarou, em carta a Régis Bonvicino, que o Catatau não foi feito para ser entendido "à luz do plano-piloto", foi sabendo que, no seu caso, descendente da Poesia Concreta, o que não resistiria ao sol, à "geléia geral", eram os métodos cartesianos postulados no plano piloto para a poesia concreta – texto-guia do movimento brasileiro – tendo pensado, primeiramente, em dedicar o livro a Caetano Veloso e Gilberto Gil, o que seria mais lógico, mais "relacionável".

Um "desavisado" que, encontrando o livro, lesse a dedicatória a líderes da Tropicália e folheasse o texto de ar carnavalesco, como "literatura tropicalista" o catalogaria. O mesmo não acontecendo, ao ver dedicado aos "patriarcas" (assim Leminski chamava Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari) algo tão disforme, tão diferente, tão nitidamente tropicalista.

 

1.4 Lavo minhas mãos no sangue da vítima...

Marcgravf, d’Autrecourt, Boccioni, Marshall Urban e Descartes epigrafam a primeira edição do texto "travesti" de Leminski. Para a segunda, cortou Boccioni (falando sobre o valor da decomposição e da deformação para as formas) e Marshall Urban (analisando, em Descartes, a exigência de uma linguagem universal em todas as línguas), para incluir uma frase da Histoire de Philosophes de Vergez e Husiman, contando algumas curiosidades da vida de Descartes na Holanda. Desconheço o critério para esta modificação, mas considero importantes à análise, apenas as frases que constam da edição de 1989 do Catatau. Que seja feita a vontade de Leminski.

Restaram, então, Marcgravf, d’Autrecourt, Vergez e Husiman, e Descartes. Estas frases – que, defendo, devem ser analisadas assim, descontextualizadas – descrevem, respectivamente, uma ave-monstro, a interpretação subjetiva do universo, a biografia holandesa de Descartes e a segurança que o sujeito terá em seu meio, ilustrada pela hipótese de um cego trazer um não-cego para lutar no escuro.

Em linhas gerais, quase tudo o que acontece a Renatus Cartesius (latinização do nome francês, como se fazia à época) em Vrijburg, a cidade livre, ilha de Antonio Vaz. Cartesius atravessa todo o texto assustado com a fauna e a flora brasileira, que satura a noção de universo que trouxe da Europa, onde sempre preferiu ser mais "espectador" que "ator", se vendo obrigado a conviver num meio completamente diferente, que o incomoda, sentindo-se indefeso, despreparado, certamente se perguntando onde aplicar a matemática. Ou seja, nestas epígrafes está toda a base para a "anedota" leminskiana – Descartes no Brasil. O resto está na linguagem. Daí o Catatau.

 

2

Para melhor gozar deste "parque de locuções, ditos, provérbios, idiomatismos, frases-feitas", o leitor deve compreender alguns passos: Paulo Leminski sonhou um fato e sua situação, inventou uma "forma" de narrar, fundindo as técnicas disponíveis e criando outras, que partiam das bases mais diversas (prosa, poesia, comunicação de massa, etc.), e assim arranjou antiguidades e modernidades num texto de vanguarda, cuja "norma máxima" é o inesperado. Entrem.

 

2.1 ...de uma exatidão absoluta.

A estrutura do Catatau é propositadamente simples, talvez a única coisa clara. O metódico filósofo Renatus Cartesius numa selva brasileira, esperando seu "guia" Krzysztof Arciszewski, nobre polonês que, penso eu, simboliza a outra parte do desregramento tropical, a parte humana, indiretamente atormentando Cartesius. Seu atraso expõe Cartesius à selva.

A vontade de Leminski era essa: manter por todo o livro uma estrutura cristalina, "mondrianescamente", apenas a tocaia de Cartesius e a ausência de Arciszewski, basicamente uma espera e uma frustração, esta garantindo a existência daquela. O texto, a espera e a frustração intrinsecamente ligados, de forma que a chegada, ao mesmo tempo, suspende a frustração, anula a espera e acaba o texto. Efeito dominó.

Clara redundância: enquanto Cartesius espera, Arciszewski não vem. E é essa estática que garante o avanço da linguagem, o carnaval lingüístico promovido por Leminski. Dos acontecimentos propostos, apenas um acontece: a espera, que se prolonga impedindo a chegada do explicador, das explicações, dos esclarecimentos, etc. Todos os acontecimentos estão fixos, nada acontece, então tudo pode acontecer na linguagem. Eis a avalanche discursiva do Catatau.

 

2.2 ...dimensão elevadíssima de ininteligibilidade.

São vários os fatores que contribuem para dificultar a leitura do Catatau. Todos eles na linguagem. O texto não apresenta, nas exatas palavras de Antonio Risério, "as barreiras eruditas que tornam quase impenetráveis os textos joycianos, exigindo verdadeiras provas de atletismo intelectual". Leminski organizou tudo para que as dificuldades residissem apenas na leitura, sem exigir consultas a enciclopédias, bibliotecas ou centenas de dicionários. Tudo o que é preciso saber, o texto diz, de uma forma ou de outra, na maioria das vezes de outra... Um exemplo: as citações em outras línguas, não exigem ser traduzidas, pois representam apenas o polilingüismo praticado à época, o desencontro de línguas, ou seja, entender a função desses estrangeirismos para o texto é não entender suas línguas.

Leminski considerava o Grande sertão: veredas de João Guimarães Rosa, o mais perfeito romance brasileiro de todos os tempos. E, óbvio, influenciou o Catatau, que pretende estar "um passo ou um palmo" à frente da invenção em Rosa. Leminski não escreveu um "romance", mas um romance-idéia. Idéias são coisas particulares, subjetivas, não se divide a autoria de uma idéia, não existe idéia conjunta, mas idealização conjunta, o que é completamente diferente. E só têm forma se dada pelo "idealizador", possibilitando a intelecção alheia. Leminski sabia, escreveu seu texto como uma idéia, repleto de elipses, para bom entendedor, com "abismos de frase para frase", para ser preenchido, complementado, não pela lógica do texto comum, mas por outras idéias, imaginações, juízos, memórias. Daí seu afastamento do Grande sertão: veredas, que não ultrapassa a inteligibilidade do texto, apenas a eleva a graus altíssimos. O texto de Leminski alcança a ininteligibilidade no plano textual, de romance, para passear por outras esferas, não inteligíveis, mas idealizáveis.

O trabalho verbal é, possivelmente, a justificativa para as equiparações com outros livros, por exemplo, Galáxias de Haroldo de Campos. O procedimento é o mesmo, a prosa beirando a poesia. Mas Galáxias é um "livro de ensaios", viagens, muitas coisas acontecem, desvia-se. O livro de Haroldo de Campos é aberto estruturalmente, são cinqüenta textos, poderiam ser quinhentos. Os acontecimentos vão costurando um nexo racional, as peças vão se unindo, biografando o autor, progredindo. No Catatau há a dependência de idealização, em Galáxias não. Os meios se assemelham, as mensagens diferem: um não conta nada, apenas ambienta, o outro vai contando, viajando, caleidoscopicamente. As maiores diferenças residem na forma como convivem ordens, cronologias, sucessões. Um tortura Cartesius, o outro tolera. O fluxo em Galáxias é outro, há uma constância, dá para cantar e ser entendido. Caetano Veloso: "circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá..." Cantar uma página do Catatau deve ser um problema sério, por causa da infinidade de supressões, tensões, reentrâncias que carrega, não por falta de musicalidade. Texto difícil, para ser pensado, ponderado, perquirido, suas palavras "voando" raramente diriam algo. Deixo o desafio aos músicos.

O grande problema de estabelecer as influências de um livro, é direcionar o entendimento do leitor, obscurecendo a inovação do influenciado. No caso do Catatau, insistem sempre nas mesmas (e inegáveis) teclas. Tudo bem: James Joyce, Guimarães Rosa e Haroldo de Campos, mas o valor do livro de Leminski não está em alcançar a genialidade destes. O mais interessante é quando ele atrita, força a barra, questiona toda essa inventividade anterior, usando a "oralidade humorística do Mad e do Pasquim". O humor é fundamental para o "tecido" do Catatau, nunca falta um riso, um sorriso, um gracejo, desviando ainda mais do assunto, invertendo o esperado, desesperando, como se consistisse num texto ao avesso, não só a idéia, a estrutura, mas todas as frases e seus valores. Paulo Leminski criou uma usina de trocadilhos, poucas expressões lingüisticas recebem suas próprias formas ou, mais raramente, seus sentidos originais.

A subversão da linguagem comum, das expressões reverenciais, dos ditados populares, etc., é o modo que Leminski encontrou para questionar e abalar vários séculos de filosofia ocidental, representada por Cartesius, mostrando "a eterna inadequação dos instrumentais consagrados, face à irrupção de realidades inéditas". Não dá mais para o francês ficar defendendo a autonomia do pensamento em relação aos sentidos, porque ali ele sente mais que pensa e, ainda assim, existe. Nada se adequa aos seus conceitos, tudo é muito novo e diferente, disforme. Cartesius quer conceituar, mas seu penso, logo existo vai por água abaixo. Tudo ali existe sem pensar ou poder ser pensado.

 

2.3 As perturbações "vanguardistas" do tecido verbal...

O Catatau alcança o Finnegans Wake de James Joyce pelo lado contrário, pelos outros cento e oitenta graus. O livro de Joyce é noturno, usa a linguagem do sonho, revelando como a queda de um homem comum, pode lembrar outras grandes quedas, e fundamentar em ciclos a evolução histórica da Humanidade.

Leminski fez o inverso, na "sua" História não há evolução, apenas um flash de um período, sonhado por um "fanático por Borges e Cortázar", que arma aí seu circo para um espetáculo lingüístico, que jamais seria noturno, pois depende muito do sol (símbolo tropical máximo), uma das causas do delírio de Cartesius. Percebam: se Joyce sonha, Leminski delira; se História, ficção; se uma queda simbólica, uma presença imaginada, etc., etc... As diferenças não acabam nestes etc.

O curitibano leu muito Joyce, leu bem, adorava a prosa de Ulysses, traduziu trechos do Finnegans, além do Giacomo Joyce. Era uma de suas grandes paixões a linguagem do irlandês, usou-a para traduzir John Lennon, o beatle, outra grande paixão. Disse certa vez, não se dedicar à tradução integral do Finnegans Wake, por não querer perder a vida inteira traduzindo, o que outro levou quase duas décadas escrevendo. Preferia ler, e utilizar. Mas Leminski apenas partiu de Joyce, como de Guimarães Rosa, como de Haroldo de Campos. Não procedem críticas, quase sempre pejorativas, para o Catatau, como as de estar muito ligado a ou de dever muito a, porque não dizem nada do que realmente é o livro, apenas tentam provar que algo perde valor por se ligar ou dever a outro, como se após milênios de literatura, alguma obra pudesse nascer sem raízes, por mais tênues que sejam.

As relações entre Catatau e Finnegans Wake são, portanto, referenciais. O livro de Joyce é de 1939, o de Leminski é de 1975. O estilo "macarrônico" é comum a ambos, mas a autonomia da criação do paranaense em relação à do irlandês, supera todo e qualquer vínculo. Leminski não prestou reverências, homenagens, sacrifícios, nem serviu sua cabeça na bandeja do predecessor. Criou, sim, uma obra que é tão importante quanto aquela para a cultura de sua língua, sem esquecer que o Finnegans estende-se à História Universal, enquanto o Catatau revisita a colonização do Brasil ou, no máximo, da América do Sul. As divergências e convergências são nítidas, não há insolvência do Catatau em suas dívidas.

 

2.4 ...o princípio de desorganização.

Contribuindo para elevar ainda mais a dimensão de ininteligibilidade do Catatau, vez por outra, comparece a "entidade puramente sígnica" Occam, embrenhada diretamente na linguagem. Occam é personagem, ou seja, deveria agir na história, fazer com que acontecesse algo, movimentar. Mas nada disso: Occam age, claro, porém com intervenções no discurso, e não no percurso. Confunde a linguagem do livro, sem intervir na "espera". Leminski pensou Occam como "primeiro personagem puramente semiótico, abstrato, da ficção brasileira". Modéstia sua, pois sabia que este "brasileira" poderia muito bem ser "mundial".

Occam é "o próprio espírito do texto", personagem desencarnado que Leminski criou para infernizar ainda mais Cartesius, para agir, reagir, interagir, e ainda assim nada "acontecer". Lembro-me de Boris Schnaiderman – tratando de Agora é que são elas, o outro romance de Leminski – quando, sobre a idéia do Catatau, diz que acontece a Cartesius um "desmilingüir-se em meio ao luxuriante barroquismo da terra". E é Occam o ponto máximo desse "barroquismo". Até mesmo Leminski, tentando uma definição para seu monstro, parece confuso. É a criatura prejudicando o criador, o médico apanhando do monstro. Uma entidade que impõe-se por ser temida. Cartesius evita e respeita Occam, a divindade que desdenha de sua filosofia, perturba, confunde. O monstro barroco, que deixa as coisas ainda mais simultâneas no texto, eleva a "temperatura informacional", multiplicando as camadas de palavras, sobrepondo-as.

Leminski afirmou que Occam "habita as profundezas do Loch Ness do texto", e é quando o monstro vem à tona que as palavras mais se fracionam ou somam-se a outras, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Cartesius tem nas mãos um cachimbo com uma "erva de negros", "riamba, pemba, gingongó, chibaba, jererê, monofa, charula, ou pango, tabaqueação de toupinambaoults, gês e negros minas", e parece ser Occam quem, mais incomodamente, traz o efeito desta erva ao texto, pois quando emerge do "lago" as citações desencontram-se, a fala é muito mais desconexa, como:

"Conseculência confenorme. Constróiturna, semprexemplo.
Interravales inteligentalha desvendez. Pérsiagunta almapriasma,
farofídio estertora escolalápis. Baptistmos exurbebrutamontontes
escalacalipse quasarmazém. Álcoolalá, nervervos. Quaso é a
cegoseguinte acontececoronha. Mon. Homemom. Monge,
tostemonja. O espinhoritmo da manchamusa, corvorpo gorpso
bolachasanguedemula, sapatapasso de tábularolha. O catapulcancro
trancabronca as cobracabroezas: trocatróia por uma bombaocada
para cadaunze. Aquilatacálculo."

Uma pequena mostra do que Occam é capaz, nove linhas de quatro páginas ininterruptas de destrambelho, por assombro do monstro, escritas na língua do "Jabberwocky/ Jaguadarte", o poema que a Alice, de Lewis Carroll, encontrou do outro lado do espelho, com as palavras se sobrepondo, conjugando, entrelaçando, além do agravante de ser invertido, para ler espelhado. Estas criações vocabulares (portmanteau words) são a contribuição do autor das Aventuras de Alice no país das maravilhas para a linguagem difundida neste século por vários autores, que aprenderam tal recurso lendo James Joyce, o primeiro "carrolliano" de que se tem notícia. Um caso estranho é o de John Lennon, joyceano sem ler Joyce: afirmou ter aprendido, tanto o humor nonsense quanto as portmanteau, lendo Carroll, e não Joyce, a quem inevitavelmente atribuiriam a paternidade estilística de seus textos. Mas eu quero apenas lembrar o seguinte: Jabberwocky é o monstro, "rebento tagarela", que surge apenas duas vezes em Through the Looking Glass, enquanto Occam, constantemente, emerge e submerge no "fluxo do texto". Jabberwocky mina a lógica paranóica de Carroll, Occam acentua a carência de lógica no Catatau.

Por mais variadas que sejam as causas de turvação do texto – o clima, as novidades, a maconha, etc. –, quando esta resulta da presença de Occam, a densidade da sombra jogada sobre o livro é incomparável, por ser a mistura de todas as outras causas e, até mesmo, a turvação de cada uma destas.

 

2.5 ...o leitor está à espera, também...

A fidelidade do "tecido" do Catatau à espera, faz com que o leitor também espere Arciszewski. Ou seja, a forma como Leminski conseguiu passar, em seu texto, o sentimento de frustração de Cartesius, prende o leitor àquela avalanche de significantes e significados, restando – a quem atravessa as páginas do livro, encontrando novidade em tudo – desejar também alguma explicação, esta que se chama Arciszewski. A brincadeira é essa: desesperar quem espera enviando sempre o inesperado.

Leminski afirma que a espera é cibernética. Vamos à explicação: para justificar essa classificação para as "esperas" do texto – Cartesius/ Arciszewski, leitor/ explicação – o autor lembra que a informação só será nova quando não resolver as anteriores, quando não trouxer o que se espera, quando for "expectativa frustrada". Ou seja, é na frustração de esperanças presumíveis e prováveis que reside a novidade da informação. Partindo desta definição, ampliando-a imensamente, é que Leminski pode utilizar, no Catatau, o que chama de "isomorfismo" – a equiparação psicológica entre leitor e personagem, ambos carregados de noções, princípios e conceitos, o que faz com que tenham as mesmas esperanças em suas selvas, respectivamente, lingüística e tropical.

Então, o que Leminski consegue é: a história de uma espera, onde toda informação é absoluta, independente e nova, e frustra todas as expectativas de lógica, através do rompimento do nexo narrativo, este que, por sua vez, impede que seja contada qualquer história de uma espera etc., etc., etc. Percebam o ciclo: a estrutura impossibilita a si mesmo, sacrifica-se, a cobra morde o próprio rabo, para possibilitar a reprodução textual de um grande número de coisas emaranhadas, que chamamos, em vários casos, "selva".

Para agravar um pouco mais este resultado, nem tudo que assusta Cartesius vem diretamente da selva. Ocorre ao filósofo, devido às propriedades narcóticas da erva que fuma, um fenômeno chamado "zoopsia", provocando alucinações com animais, insetos, etc., que habitualmente acompanha o delirium tremens alcoólico. Essa "outra" fauna, a do delírio de Cartesius, transforma a selva em "lugar mental", sendo este lado psicológico que permite às duas "selvas" – a do leitor e a do personagem – serem mais uma vez equiparadas. O leitor entra também naquele "lugar mental", onde Cartesius foi colocado pela erva. Uma advertência: talvez não funcione, como antídoto ao delírio do personagem, ler o Catatau sob efeito de alucinógenos, pois a alucinação no livro é apenas garantia para o virtuosismo lingüístico do poeta curitibano que, em nenhuma frase do texto, deixa-se abrir a golpes frouxos.

A leitura é uma variação constante entre torpor e lógica. Esta, na linguagem. Aquele, na "outra lógica" que Paulo Leminski apresenta, ele que admitiu não poder ler todo o texto de uma só vez, por destruir a sua lógica. Imagine só...

A "anedota" da vinda do filósofo para o Brasil foi o fio-da-meada. Passar a selva para o texto – e vice-versa – foi o verdadeiro desafio de Leminski no Catatau, dispondo a rara continuidade entre as frases, de forma que ganhasse maior destaque as quebras da sintaxe discursiva convencional, obstruindo aos "assemelhados" – leitor e personagem – a mania de encontrar "coisas claras", para que pareça obscura, ao já descrente de entendimento, qualquer clareira na "selva". Um tanto exigente, mas deveras eficaz...

 

2.6 ...contemporâneo da era da televisão.

Se no modernista Oswald de Andrade, pela concisão estilística das Memórias sentimentais de João Miramar e do Serafim Ponte Grande, a contemporaneidade diz respeito ao telégrafo e ao cinema, o texto de Leminski é "contemporâneo da era da televisão" por diversos motivos. Quanto a modernistas, observe-se: Leminski não valorizava muito Mário de Andrade, encontrava nele o que chamou de "algumas das coisas chatas da cultura brasileira: ufanismo, ‘macumba para turistas’ e, principalmente, sentimentalismo barato". Gostava do Macunaíma, mas nem tanto. E se insistissem nesta filiação, defenderia Cartesius como o herói de caráter demais, cuja "muiraquitã" seria a Europa, o passado, o teorema de Pitágoras. Óbvia contraproposta à obra do poeta de Paulicéia desvairada. Mas voltemos ao assunto.

Não sei se devo chamar de "cânone" ou "paideuma", a bibliografia que Leminski escolheu para estar na base literária do Catatau, mas sem dúvida Oswald de Andrade deve ser incluído neste grupo. Reparem a semelhança sintática entre "Foi quando instantâneo lembrete do destino chamou-me telefônico para Bambus fazendeiro" e "Desde verdes anos, via de regra, medito horizontal manhã cedo, só vindo à luz já sol meiodia". A primeira frase é das Memórias sentimentais, a segunda é de Leminski, mas tanto a do curitibano poderia ter sido encontrada no romance de 1924, quanto a outra não faria vergonha ao corpo do Catatau. Com muito humor, num depoimento de 1978, Leminski declarou, quanto à literatura brasileira que o influenciou: "Drummond, só uma dose simples para saber que barato que dá. Cabral, por dever de ofício. Oswald, já muito tarde para alterar rumos". Há um detalhe relevante aí, esse "muito tarde" foi dito por um poeta de 34 anos que, aos 31, lançou seu livro, o que não deixa dúvidas: essa alteração de rumos foi anterior ao Catatau, que foi alguns passos à frente por estes caminhos.

Aquilo que chamaram em Oswald de "descontinuidade cênica", "tentativa de simultaneidade", indícios telegráficos e cinematográficos em sua prosa, pode ser encontrado em Leminski com as devidas modificações causadas pela "era da televisão". No exemplo acima, de semelhança entre frases de Oswald e Leminski, transparecem oclusões e elipses que aceleram as idéias na prosa. No modernista, encontra-se uma história, contada com a alta velocidade permitida pela economia vocabular do telégrafo e pelos takes de cinema, enquanto no Catatau a forma como o leitor deve transpor os "abismos" entre as frases é "como na TV, entre ponto e ponto", uma tecnologia muito mais rápida que, como texto, torna-se muito mais lenta, pesada, difícil, pois não são simples supressões de vocábulos, idéias, "cenas", presumíveis contextualmente. A descontinuidade, em Leminski, causa estranhamento entre as frases, e não há um contexto que a resolva, porque, como já foi dito, os "abismos" não serão preenchidos por lógica comum de narrativa. E a simultaneidade, que foi "tentativa" em Oswald, no Catatau é de constante recorrência, sendo, em grande parte, graças à irrupção simultânea de coisas e bichos, que Cartesius não consegue utilizar suas categorias e sistemas.

Uma frase de Oswald, no Manifesto Antropófago, diz mais alguma coisa interessante para nosso entendimento: "... nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós". É esta lógica nossa que Leminski defende, garantindo até um certo engajamento de seu livro nesse ponto, por responsabilizar a insuficiência dos métodos europeus pelo desregramento político-administrativo da América Latina. O que são outros quinhentos...

 

2.7 Não tem segredos. E tem todos...

Acima de tudo, o Catatau é um livro para poetas. Calma, Leminski defendia que "a poesia existe para satisfazer a necessidade de poesia dos poetas", e explicava: "poeta não é só quem faz poesia. É também quem tem sensibilidade para entender e curtir poesia. Mesmo que nunca tenha arriscado um verso. Quem não tem senso de humor, nunca vai entender a piada". Também neste sentido, o Catatau é um prato cheio.

Versos inteiros de vários poemas de Leminski, de outros poetas, haikais traduzidos e frases que dariam versos ou poemas, podem ser encontrados aos montes, dissolvidos pelo texto, até mesmo para deixar a prosa "opaca" como poesia. E, sem maiores esforços, poderíamos entender essa opacidade como "barroquização" da linguagem: um claro-escuro bordado pelos mais variados conceitos sobrepostos, em frases sobrepostas, formadas por palavras sobrepostas. O alvo da poesia, não?

Desde que se conhecia por gente, Leminski era poeta, "ininterruptamente", não seria digna dessa dedicação uma prosa fraca, anêmica, asmática. Tudo em Leminski – ensaios, resenhas, entrevistas, etc. – é forte e altamente poético, nunca ele daria, como dizem, um ponto sem nó. E no Catatau ele multiplicou absurdamente essa carga. Não facilitou em nenhum momento, escrevendo e reescrevendo cada página, para alcançar uma "mensagem afetada de elevado coeficiente de ininteligibilidade", que por informar demais, redunda demais, e distribui irregularmente a legibilidade.

Como um poema, chegando "às raias subterrâneas e canais atávicos da linguagem e do pensamento", movimentando a Língua Portuguesa do suspense ao pressentimento, e vice-versa. Paulo Leminski se colocou inteiro no livro. Qualquer página aberta saberá defender o texto, e nada que se diga dispensará a leitura, para quem quiser ouvir o que realmente o Catatau tem para dizer.

 

Outubro 1997

 

 

*OBS.: Publicado originalmente no jornal literário VIOLA DE COCHO (Ponta Porã, MS), de Abril/maio de 1998

Copyright © 1998 by Tarso M. de Melo


Veja um trecho do Catatau em: Prosa de Invenção no Brasil


 

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